Opinião

(In)constitucionalidade do ICMS-Educação

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31 de março de 2024, 17h13

A Emenda Constitucional 108/2020 estabeleceu critérios para a distribuição do produto da arrecadação do ICMS para os municípios, obrigando-os a destinar 10% “com base em indicadores de melhoria nos resultados de aprendizagem e de aumento da equidade, considerado o nível socioeconômico dos educandos”.

Esse incentivo ficou conhecido como ICMS-educação, dada a destinação estabelecida pelo legislador constitucional para esses valores e tem por objetivo a melhoria especialmente da educação infantil e o ensino fundamental, que é de responsabilidade dos municípios, nos termos do artigo 30, VI, da CRFB/1988.

A medida foi inspirada na experiência do Ceará, que desde 2007, por meio da Lei Estadual 14.027/2007, distribui aos municípios 18% do ICMS com base no índice de qualidade educacional (IQE). Com a instituição da política, o Ceará, que em 2005 estava classificado em 18º lugar no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), saltou para 3º em 2019.

Além disso, o estado registra a menor distância entre os mais ricos e os mais pobres na educação, demonstrando um avanço efetivo e com equidade. No entanto, seu sucesso depende da robustez do suporte técnico dado pelos estados aos municípios para que eles consigam atingir os resultados educacionais esperados.

Ainda em relação ao caso do Ceará, há 15 anos, o Estado adota um modelo de utilização de parâmetros não tradicionais para distribuição da quota parte do ICMS. Atualmente, utiliza 16 indicadores [1], normalizações e um sistema de ponderação que retrata os objetivos da política estadual para educação básica. Um ponto relevante é que a Lei 14.023/2007, que instituiu a nova sistemática de rateio do ICMS com critérios qualitativos da educação, assim dispôs em seus artigos 2º e 5º:

“Art. 2° O Índice Municipal de Qualidade Educacional, o Índice Municipal de Qualidade da Saúde e o Índice Municipal de Qualidade do Meio Ambiente de cada município serão calculados, anualmente, a partir de 2008, pelo Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará – IPECE, que os fará publicar até o dia 31 de agosto de cada ano, para efeito de distribuição dos recursos referentes ao ano seguinte.

Art. 5° Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, com efeitos financeiros, referentes à distribuição da arrecadação do ICMS, a partir de 1° de janeiro de 2009.”

Ou seja, entrou em vigor em dezembro de 2007, passou a calcular os indicadores conforme a metodologia em 2008 e produziu efeitos financeiros a partir de 2009, para que os municípios pudessem adequar seus orçamentos e peças de planejamento (PPA, LDO, LOA) às mudanças advindas dessa nova sistemática.

Tânia Rêgo/Agência Brasil

Para além dessa perspectiva pragmática, há diversos questionamentos quanto à constitucionalidade do dispositivo na destinação do produto da arrecadação do imposto para uma despesa específica, o que é vedado expressamente pelo artigo 167, IV, da CRFB/1988. Ocorre que o próprio dispositivo excepciona a repartição do produto da arrecadação prevista no artigo 158, dispositivo que foi alterado pela Emenda para prever o ICMS-educação.

Por essa razão, as discussões se concentram nos indicadores fixados pelos estados para repartição desse mínimo de 10% entre os municípios. A previsão constitucional poderia ser tida como necessária e suficiente para que os Estados decidissem quando iria para a educação de cada um dos municípios situados em seu território. No entanto, da leitura completa do dispositivo, emerge a questão que tem gerado debates sobre a cota atribuída a cada um.

Para melhor compreender o tema, vale destacar a literalidade do artigo 158, §1º, II, da CRFB/1988, com a redação dada pela Emenda Constitucional 108/2020:

“Art. 158. Pertencem aos Municípios:

IV – 25% (vinte e cinco por cento):

a) do produto da arrecadação do imposto do Estado sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação;

§ 1º As parcelas de receita pertencentes aos Municípios mencionadas no inciso IV, “a”, serão creditadas conforme os seguintes critérios:

II – até 35% (trinta e cinco por cento), de acordo com o que dispuser lei estadual, observada, obrigatoriamente, a distribuição de, no mínimo, 10 (dez) pontos percentuais com base em indicadores de melhoria nos resultados de aprendizagem e de aumento da equidade, considerado o nível socioeconômico dos educandos.”

Como os estados fazem a divisão

Primeiro ponto que não suscita dúvidas: o percentual de 10% é o mínimo que deverá ser atribuído aos municípios com base na melhoria da educação e aumento da equidade. Os estados poderão distribuir, se quiserem, até os 35% com base nesses critérios. Amazonas, Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Paraíba, Piauí, Rio Grande do Norte, Roraima, Sergipe, Tocantins previram o percentual mínimo, mas outros 13 Estados previram um percentual superior. São eles: Maranhão (20%), Acre (19%), Amapá, Bahia, Ceará, Mato Groso e Pernambuco (18%), Rio Grande do Sul (17%), Alagoas e Santa Catarina (15%), Rondônia (14%), Espírito Santo e São Paulo (13%).

O Rio de Janeiro ainda não editou lei, apesar de ela estar em discussão na Assembleia Legislativa. O estado justificou o atraso em relação ao prazo dois anos, previsto na Emenda para edição da norma, o questionamento apresentado sobre a regulamentação do Novo Fundeb, o que foi acolhido pelo Ministério da Educação.

A primeira parte do dispositivo — “até 35%, de acordo com o que dispuser lei estadual” — denota a necessidade de lei editada pelos estados para estabelecer a forma de distribuição desses 35%. Entretanto, 10% deverão obrigatoriamente ser entregues segundo nos critérios mencionados no texto, quais sejam, “com base em indicadores de melhoria nos resultados de aprendizagem e de aumento da equidade, considerado o nível socioeconômico dos educandos”.

Portanto, a criação, em lei estadual, de novos critérios para distribuição desses 10% entre os municípios é desnecessária. Essa lei somente seria imprescindível para fixar a forma de repartição para os outros 25%, dado que o texto constitucional já o fez em relação ao ICMS-educação.

Todavia, não foi esse o entendimento adotado pelos estados que editaram suas respectivas leis estaduais, estabelecendo não apenas indicadores daqueles critérios para distribuição desses 10% destinados à educação nos municípios.

Alguns deles apenas reproduziram o que estabelece a CRFB/1988, casos em que apenas reafirmaram, por meio de seus atos normativos, os critérios postos no texto constitucional. Outros criaram indicadores próprios, sem ampliar o rol de exigências do artigo 158, §1º, II, da CRFB/1988. Outros, ainda, as ampliaram indevidamente. Por isso, esta análise é muito relevante.

No estudo realizado pela ONG Todos pela Educação [2], considerando a legislação estadual editada por todos os estados da federação, menos o Rio de Janeiro, os critérios postos para medir melhoria da educação e aumento da equidade em cada município são: nível de aprendizado dos estudantes; evolução da aprendizagem; taxa de aprovação; taxa de participação em avaliações; critérios relacionados à equidade; ponderação na fórmula de cálculo que induza a melhoria da aprendizagem; objetividade da política e potencial de indução a essas melhorias.

Muitos estados atribuem um peso muito baixo aos resultados educacionais (nível educacional e taxa de aprovação), dando ênfase ao número de matrículas na rede pública, o que não necessariamente mede a melhoria da educação nem equidade.

Ocorre que pelas particularidades de cada Estado, a ausência completa de ponderação dos indicadores de qualidade em relação a quantidade de alunos matriculados, pode gerar distorções, como ocorreu em Minas Gerais, que editou a Lei Estadual 24.431/2023, estabelecendo os seguintes critérios a serem cumpridos pelo ente beneficiário para repasse do ICMS-educação: índice de desempenho escolar, índice de rendimento escolar, índice de atendimento educacional e índice de gestão escolar: [3]

Minas Gerais sequer contempla um indicador de mensuração da evolução da aprendizagem, tendo regulamentado a Lei Estadual por meio de Resolução[4] . Isso ultrapassa a mera consideração de taxas de aprovação dos estudantes, sem o que não se pode inferir a existência “de melhoria nos resultados de aprendizagem”, exigida pelo texto constitucional. Por essa razão, a lei mineira também deve ser considerada inconstitucional.

A Paraíba, por sua vez, prevê indicadores sem conferir a eles os pesos de cada um para cálculo da cota parte de cada município. Desse modo, não é dada transparência ao método de divisão do percentual relativo aos ICMS-educação, o que também poderá ser objeto de questionamento. Falta transparência também ao cálculo previsto na lei catarinense.

Competição por recursos

A transparência na fonte dos dados, fórmulas utilizadas e base dos dados prejudica os municípios ao “competirem” pelos recursos, sendo que ainda vale mencionar que a base de dados, geralmente aferida pelo censo escolar — Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, é preenchida sem maiores orientações ou revisão dos dados pelas escolas e secretarias municipais. Isso revela outro problema que pode impactar a distribuição do ICMS-educação.

Vale destacar um outro ponto que poderá gerar a inconstitucionalidade da legislação estadual: estabelecer os indicadores e a forma de cálculo em ato normativo infralegal. O artigo 158, §1º, II, da CRFB/1988, prevê expressamente “de acordo com o que dispuser lei estadual”, não podendo os estados abrirem mão dessa espécie normativa nem delegar a tarefa à norma diferente de lei.

A Emenda Constitucional 108/2020 significa um redesenho da distribuição do produto da arrecadação entre os municípios. O percentual de repasse obrigatório, calculado pelo valor adicionado fiscal (VAF), que leva em consideração as operações de circulação de mercadorias e prestações de serviço de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação realizadas em cada território, foi reduzido de 75% para 65%, o que já implica perda de arrecadação especialmente para os municípios com maior volume dessas operações e prestações de serviço.

Houve um aumento do percentual cuja repartição fica a cargo dos estados, segundo critérios por eles estabelecidos, de 25% para 35%, sendo que ao menos 10% ficam reservado ao ICMS-educação.

Para sanar as insatisfações criadas em decorrência dessa redução de receita para alguns municípios, foram editadas leis prevendo regras de compensação financeira, o que pode desnaturar a própria ideia dessa forma de repartição do produto da arrecadação do imposto, enquanto política indutora destinada à melhoria da educação e aumento da equidade. Isso foi feito no Amapá, mas outros Estados cogitam a possibilidade.

Desse modo, ao criar indicadores específicos para a distribuição daquele percentual de no mínimo 10% entre os municípios, conforme “melhoria nos resultados de aprendizagem e de aumento da equidade”, os estados deverão fazê-lo por meio de lei, editada pela Assembleia Legislativa. Além disso, caso venham a ampliar indevidamente esses requisitos, postos no artigo 158, §1º, II, da CRFB/1988, ou deixem de estabelecer quaisquer indicadores necessário à aferição desses critérios postos no texto constitucional, a lei estadual deverá ser considerada inconstitucional.

 


[1] Instituto de Pesquisas Educacionais Cearenses (2020)

[2] Disponível em: https://todospelaeducacao.org.br/wordpress/wp-content/uploads/2023/10/estudo-tpe-icms-educacao-nos-estadosdocx.pdf Acesso em: 28/02/2024.

[3] Quadro elaborado pelas autoras, a partir dos dados constantes do site: https://fjp.mg.gov.br/consultar-repasse-do-icms-aos-municipios-mineiros/ Acesso em: 20/03/2024.

[4] Disponível em: https://www.educacao.mg.gov.br/wp-content/uploads/2023/10/Resolucao-Conjunta-SEE-FJP-n.o-12-2023-Public.-31-10-23.pdf Acesso em: 20/03/2024.

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