Ambiente jurídico

O STF e a edição de novos tipos de licenças ambientais não previstos na legislação federal

Autor

  • Talden Farias

    é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

19 de novembro de 2023, 12h21

Na sessão virtual ocorrida de 3 a 10 de novembro de 2023 o STF julgou a ADI 5.014/BA, sob a relatoria do Ministro Dias Toffoli, tendo considerado improcedentes os pedidos feitos pela PGR, declarando assim a constitucionalidade dos arts. 40, 45, VII e VIII e 147 da Lei 10.431/2006, a qual dispõe sobre a Política de Meio Ambiente e de Proteção à Biodiversidade do Estado da Bahia. Basicamente, foram travadas duas discussões: a primeira diz respeito à possibilidade ou não de criação de novos tipos de licenciamento ambiental, nos termos dos incisos VII e VIII do art. 45 da lei, e a segunda à possibilidade ou não de ocorrência de retrocesso social em matéria de participação e controle popular, consoante a previsão dos arts. 40 e 147.

Spacca

O presente artigo se propõe a analisar a possibilidade da edição de novos tipos de licenciamento ambiental, além daqueles estabelecidos pela legislação federal, tomando como base o julgamento da ADI 5014/BA. Dessa forma, a parte da discussão envolvendo o retrocesso social, que levou em consideração a alteração da redação dos arts. 40 e 147, não será objeto de estudo neste texto. Cumpre lembrar que o acórdão ainda será publicado, e que possivelmente ainda haverá a interposição de embargos de declaração pelas partes legitimadas.

Na ADI sob análise, a PGR questionou especificamente a Licença de Regularização (LR) e a Licença Ambiental por Adesão e Compromisso (LAC), pois a petição inicial defendia que o Estado se excedeu na sua competência legislativa uma vez que a legislação federal não prevê tais figuras. Com isso, tais dispositivos padeceriam de inconstitucionalidade formal, pois teriam ido de encontro aos tipos federais:

Art. 45 – O órgão ambiental competente expedirá as seguintes licenças, sem prejuízo de outras modalidades previstas em normas complementares a esta Lei:

(…)

VII – Licença de Regularização (LR): concedida para regularização de atividades ou empreendimentos em instalação ou funcionamento, existentes até a data da regulamentação desta Lei, mediante a apresentação de estudos de viabilidade e comprovação da recuperação e/ou compensação ambiental de seu passivo, caso não haja risco à saúde da população e dos trabalhadores;

VIII – Licença Ambiental por Adesão e Compromisso (LAC): concedida eletronicamente para atividades ou empreendimentos em que o licenciamento ambiental seja realizado por declaração de adesão e compromisso do empreendedor aos critérios e pré-condições estabelecidos pelo órgão licenciador, para empreendimentos ou atividades de baixo e médio potencial poluidor, nas seguintes situações:

a) em que se conheçam previamente seus impactos ambientais, ou;

b) em que se conheçam com detalhamento suficiente as características de uma dada região e seja possível estabelecer os requisitos de instalação e funcionamento de atividades ou empreendimentos, sem necessidade de novos estudos;

c) as atividades ou empreendimentos a serem licenciados pelo LAC serão definidos por resolução do CEPRAM.

(…)”

O STF decidiu que as modalidades de licença ambiental questionadas se enquadram dentro da competência legislativa concorrente dos Estados prevista no art. 24 da Constituição Federal de 1988, uma vez que o § 2º desse dispositivo dispõe que a competência legislativa federal sobre normas gerais não exclui a competência legislativa suplementar estadual 1. Isso implica dizer que os Estados não precisam seguir à risca aos tipos criados pela União, podendo complementar a legislação federal tendo em vista o atendimento às peculiaridades e necessidades regionais, conforme destaca o seguinte trecho do voto do relator:

Nesses termos, observa-se que as duas licenças constantes nos incisos VII e VIII do artigo 45 da Lei nº 10.431/06, situam-se no âmbito normativo concorrente e concretizam o dever constitucional de suplementar a legislação sobre licenciamento ambiental à luz da predominância do interesse no estabelecimento de procedimentos específicos para as atividades e empreendimentos do Estado da Bahia”.

Realmente, parece ter existido uma compreensão equivocada da PGR acerca da competência legislativa da União e dos demais entes federativos em matéria de licenciamento ambiental. A despeito do licenciamento ambiental trifásico previsto no art. 19 do Decreto 99.274/1990, que regulamenta a Lei 6.938/1981 (Política Nacional do Meio Ambiente), e no art. 8º da Resolução 237/1997 do CONAMA, vale a pena ressaltar que esta resolução já previa a possibilidade de adoção de procedimentos e tipos diferentes:

Art. 12. O órgão ambiental competente definirá, se necessário, procedimentos específicos para as licenças ambientais, observadas a natureza, características e peculiaridades da atividade ou empreendimento e, ainda, a compatibilização do processo de licenciamento com as etapas de planejamento, implantação e operação.

§ 1º Poderão ser estabelecidos procedimentos simplificados para as atividades e empreendimentos de pequeno potencial de impacto ambiental, que deverão ser aprovados pelos respectivos Conselhos de Meio Ambiente.

§ 2º Poderá ser admitido um único processo de licenciamento ambiental para pequenos empreendimentos e atividades similares e vizinhos ou para aqueles integrantes de planos de desenvolvimento aprovados, previamente, pelo órgão governamental competente, desde que definida a responsabilidade legal pelo conjunto de empreendimentos ou atividades.

§ 3º Deverão ser estabelecidos critérios para agilizar e simplificar os procedimentos de licenciamento ambiental das atividades e empreendimentos que implementem planos e programas voluntários de gestão ambiental, visando a melhoria contínua e o aprimoramento do desempenho ambiental”.

O objetivo disso é atender as especificidades técnicas de determinadas atividades e de situações, o que muitas vezes só pode ser feito no plano estadual ou municipal haja vista as peculiaridades regionais ou locais, o que está de acordo com o entendimento do STF nas ADIs 4.615/CE e 6.288/CE. É evidente que a competência do CONAMA para estabelecer normas e critérios para o licenciamento ambiental, prevista no inciso I do art. 8º da Lei 6.938/1981 e no inciso I do art. 7º do Decreto 99.274/1990, deve ser interpretada à luz do art. 24 da Constituição Federal e não o contrário.

Isso significa que pode e deve haver espaço para a atuação normativa de outros níveis federativos, uma vez que o licenciamento ambiental pode se dar tanto no âmbito da União quanto dos Estados e dos Municípios, consoante dispõem os arts.7º, 8º e 9º, respectivamente, da Lei Complementar 140/2011. Não obstante a falta de referência ao Município no art. 24 da Constituição Federal, o inciso I do art. 30 dispõe sobre a competência deste ente para legislar sobre os assuntos de interesse local, o que, obviamente, também inclui a competência para legislar sobre meio ambiente e sobre licenciamento ambiental, como o STF já decidiu anteriormente nas ADIs 2.142/BA, 6.602/SP e 6.288/CE.

A respeito da LR, embora todas as atividades poluidoras devam se submeter ao licenciamento prévio em razão do que dispõe o caput do art. 10 da Lei n. 6.938/81, há inúmeros casos em que somente depois a regularização ambiental é procurada, seja por irresponsabilidade do responsável, por falta de conhecimento da lei ou mesmo porque mudou o entendimento dos órgãos ambientais acerca do caráter poluidor da atividade. Por conseguinte, nem sempre o mecanismo está relacionado a uma irregularidade, podendo estar atrelado a uma mudança de concepção por parte da Administração Pública ou da legislação ambiental.

Apesar de não dever ser a regra, o licenciamento de regularização ou corretivo deve ocorrer quando a adequação for tecnicamente possível, o que deverá ser atestado pelo órgão ambiental competente. Impende dizer que a lei estadual questionada exige, no inciso VII do art. 45, a apresentação de estudos comprovatórios da recuperação e/ou compensação ambiental de passivos ambientais, bem como da inexistência de ameaças à saúde da população e dos trabalhadores. É claro que isso não exime a apuração da responsabilidade criminal e administrativa, uma vez que a conduta de ausência de licença ambiental é classificada como crime e como infração administrativa ambiental, respectivamente, pelo art. 60 da Lei 9.605/1998 e pelo art. 66 do Decreto 6.514/200.

É importante destacar que esse procedimento sempre foi aplicado pelos órgãos ambientais dos mais diferentes níveis federativos, afinal de contas a própria legislação ambiental prevê figuras como o Termo de Compromisso (art. 79-A da Lei 9.605/1998) e o Termo de Ajustamento de Conduta (art. 5º, § 6° da Lei 7.347/1985). Inclusive, o transcrito art. 12 da Resolução 237/1997 do CONAMA já instituía, em seu caput, essa modalidade de licenciamento ambiental, a qual de fato precisa de uma regulamentação mais detalhada. A decisão do STF certamente contribuirá para o amadurecimento do instituto, pois de agora em diante os Estados e Municípios terão mais liberdade para regulamentar o assunto.

Se é verdade que no plano ideal a correção não deveria existir, pois o licenciamento deveria sempre anteceder o empreendimento, na prática o instituto tem um papel relevante a cumprir trazendo para a regularidade ambiental aquelas atividades à margem do controle e das políticas ambientais. Diante disso, ao fim e ao cabo, o que mais chama a atenção é o fato de a PGR ter questionado o tipo, por se tratar de uma prática amplamente consolidada e com fundamentação legal indiscutível.

Já no que diz respeito à LAC, trata-se de um tipo de licença ambiental que gera muitas discussões em razão do fato de o procedimento ser automático e auto declaratório, posto que não ocorre a análise humana prévia, o que desperta receio quanto à ocorrência de danos ambientais irreversíveis ou de difícil reversão. Foi com o intuito de evitar ou diminuir tais riscos que a lei estadual questionada exigiu, no inciso VIII do art. 45, o cumprimento dos seguintes requisitos: a) conhecimento prévio acerca dos impactos ambientais da atividade; b) conhecimento detalhado do território onde a atividade pretende se instalar e operar; c) o enquadramento da atividade por resolução do conselho estadual de meio ambiente.

Isso indica que o controle ambiental, nesses casos, ocorre muito mais na escolha das atividades, na análise dos riscos e no levantamento das características do território sob testilha, do que no próprio procedimento em si. É preciso, no entanto, fortalecer a fiscalização do chamado pós-licenciamento ambiental, pois a mera assinatura de termo de adesão e compromisso do empreendedor às pré-condições do órgão licenciador não é o suficiente para assegurar o respeito aos padrões de qualidade ambiental estabelecidos. Do contrário, a LAC poderá se tornar uma mera burocracia, sem um papel efetivo na proteção do meio ambiente.

Talvez a grande dúvida deixada em relação à LAC seja a sua extensão, pois o inciso VIII do art. 45 da lei estadual aplica o instituto às atividades de baixo e médio potencial poluidor. Isso conflita com o entendimento do próprio STF na ADI 6808/DF, que foi julgada como parte da denominada “Pauta Verde” e que analisava a constitucionalidade dos arts. 6º-A e 11-A, III da Lei n. 11.598/2007, que tinha por objetivo facilitar o registro e a abertura de empresas consideradas como de médio risco ambiental. Nesse caso, o STF entendeu que o procedimento automático nas atividades econômicas de risco médio contrariaria o princípio da precaução ambiental, de modo que apenas nas atividades de baixo risco isso seria permitido, tendo a ADI sido julgada parcialmente procedente no sentido de dar interpretação conforme a fim de excluir a aplicação do instituto ao licenciamento e à autorização ambiental. Ambas as decisões se deram em sistema de controle concentrado de constitucionalidade, produzindo então efeitos erga omnes.

Faz-se necessário, portanto, que o STF adote um entendimento uniforme sobre o assunto, até porque não houve tempo suficiente nem nenhum fato social relevante que justifique a mudança de interpretação quanto à aplicação da LAC às atividades de risco médio. De toda sorte, ainda que o acórdão não tenha sido publicado muito menos o processo tenha transitado em julgado, a ADI 5014/BA reforça a competência dos demais entes federativos para legislar sobre meio ambiente, e em especial sobre licenciamento ambiental, ao tempo em que ajuda a consolidar a LR e a LAC, ainda que permaneça alguma dúvida quanto à sua aplicação ou não às médio potencial poluidor.


1 Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: (…) VI – florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição; (…) VIII – responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; (…) § 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais. § 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados. § 3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades. § 4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário (…).

Autores

  • é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE, pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

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