Opinião

Os crimes do primo rico e do primo pobre

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17 de novembro de 2023, 15h19

Todos são iguais perante a lei” [1] diz o pórtico da Constituição da República de 1988, reproduzindo axioma básico da democracia. Isso, no papel, já que em boa medida mesmo a lei pode ser fonte de desigualdade substancial.

O ideal constitucional não se limita à aplicação (executiva ou judicial) das normas postas, mas, também, à sua própria gênese, ou seja, ao engenho legiferante.

Além da igualdade perante a lei, é essencial que este valor esteja introjetado na própria lei.

Não se desconhece que a igualdade na lei, conquanto entrelaçada ao atributo da generalidade da norma jurídica (aplicabilidade erga omnes), para ser material, há de ser relativa até mesmo em prol da qualidade do ordenamento, de modo, inclusive, a induzir o (re)equilíbrio entre os desiguais, na esteira do célebre enunciado aristotélico [2], encampado por Rui Barbosa: tratamento igualitário aos iguais e desigualitário aos desiguais na medida de suas desigualdades [3].  É isso que legitima, por exemplo, as chamadas normas de política afirmativa, destinada ao resgate igualitário num contexto temporal ampliado.

Existe farta construção teórica [4] sobre o que seriam os legítimos fatores discriminantes (inerentes à própria razão de ser da atividade legislativa), temática que refoge ao escopo deste texto. A reflexão que se pretende aqui diz respeito ao expediente sistêmico que ignora os objetivos de equidade no material legislativo produzido: seus propósitos subjacentes mais profundos (em geral, inconfessos), uma ação estratégica conservacionista de longo prazo, instrumentalizada através de leis (inclusive ou especialmente penais) que sedimentam desigualdades, de modo a perenizar as posições de privilégio dos segmentos sociais dominantes (sobrerrepresentados, inclusive, na representação parlamentar).

Em termos de legislação penal, o que há é um verdadeiro mito da igualdade, muito distante da realidade dos diplomas normativos [5]. E é exatamente sob esse mito que se abriga o tratamento desigualitário dispensado aos crimes de pobre se comparados aos crimes de ricos em todas as esferas de criminalização.

O maior rigor no tratamento do sistema penal dirigido aos integrantes das classes mais carentes (e vulneráveis) tem origem desde a tipologia adotada pelo legislador penal, passando pela quantificação em abstrato das sanções, pela abordagem e persecução policial, pela forma de execução das medidas e prisões cautelares, pelas exigências pré-processuais e processuais, pela frequência de oferta ou não de benesses despenalizadoras, pelo percentual de condenações, pela dosagem em concreto das penas, pela frequência de recursos processuais e sua proporção de (in)sucesso, pelo desenrolar da execução penal, e chegando, enfim, ao problema da reintegração do egresso à sociedade.

Grosso modo, a desigualdade na lei penal pode ser subdividida em três aspectos: 1) a lei não é igual para todos (não há igualdade na lei); 2) as probabilidades entre os violadores da norma de sofrer a persecução penal não são iguais (há seletividade, que resultam em cifras negras deliberadas); e iii) as consequências do processo de criminalização divergem conforme o pedigree do envolvido (desigualdade perante a lei).

Quanto ao primeiro aspecto, com foco no arcabouço normativo, são detectáveis desvios propositais — às vezes pretensamente sutis [6] — em relação ao ideal isonômico. Essas normas penais desigualitárias constituem precisamente o primeiro mecanismo a selecionar os destinatários do sistema penal [7]. É na lei que se dá a instância primária de seleção dos apenáveis e apartáveis do convívio social.

O tema da desigualdade no sistema normativo penal obviamente não é novo, tampouco se trata de exclusividade nacional.

Exemplos da prodigalidade e desfaçatez da produção desigualitária normativa podem ser chocantes.

Imagine-se um empresário gestor de determinada indústria de laticínios que, para otimizar os lucros, determina sejam misturados ao leite 5% (cinco por cento) de soro lácteo, muito mais barato. Suponha-se que um funcionário dessa mesma empresa, no decorrer de várias madrugadas, usando uma chave falsa, em companhia de um ajudante, venha retirando dos enormes tanques uma ínfima parcela do leite e colocando em seu lugar igual quantidade de soro lácteo para encobrir seu ato ilícito (em percentual, por exemplo, equivalente a 0,1% do total). Descoberta a empreitada, responderia o funcionário por furto multiqualificado (artigo 155, § 4º, II, III e IV, do Código Penal Brasileiro), com pena de 2 a 8 anos de reclusão além de multa, sanção essa que seria ainda acrescida de um sexto a dois terços em razão da continuidade delitiva (artigo 71, caput, do mesmo Código). Dadas tais circunstâncias sensibilizadoras dos vetores dosimétricos penais (com possibilidade de realocação das qualificadoras e da majorante), poder-se-ia cogitar uma pena corporal superior a 4 anos de reclusão a esse funcionário, impassível de substituição por alternativas, sequer podendo iniciar seu cumprimento em regime aberto. Em relação ao empresário, estando o produto final comercializado ainda dentro das especificações técnicas admitidas, sua conduta seria irrelevante do ponto de vista penal (ou mesmo de qualquer outro ramo do Direito); no caso de a mistura superar a tolerância das normas técnicas, poderia ele, em tese, responder pelo ilícito de “venda de produto de espécies misturadas como se fosse puro” (artigo 7º, III, da Lei n.º 8.137/90), sujeito a uma pena original e exclusiva de multa (como alternativa à pena corporal de detenção).

O furto é um típico crime de pobre, ao passo que os delitos contra a ordem econômica ou consumidor são condutas normalmente atribuíveis a empresários, integrantes da elite.  No exemplo, a ofensa à coletividade perpetrada pelo primo rico — ainda que cinquenta vezes maior do que aquela decorrente da subtração feita pelo primo pobre — recebe resposta penal muito mais branda do legislador.

Amilton Bueno de Carvalho traz outra ilustração eloquente: “a desproporção da pena aplicável a quem subtrai um bem móvel mediante grave ameaça (roubo, artigo 157 do Código Penal), que fica sujeito à reclusão de 4 a 10 ANOS, quando comparada àquele que, também mediante grave ameaça, invade e se apodera de terreno ou edifício alheio (esbulho possessório, artigo 161, II, do Código Penal), cuja pena é de detenção de 1 a 6 MESES. Segundo o desembargador gaúcho, “como valoramos mais o imóvel, este deveria ser melhor protegido. Mas não é. […] Ora, a subtração de móvel é crime do pobre, o esbulho possessório é do rico. Logo, as penas são diferentes, absurdamente diferentes” [8].

Outro exemplo: um médico – portanto, membro de uma classe profissional de elite — ao fornecer um atestado ideologicamente falso, sujeita-se a uma pena de 1 mês a 1 ano de detenção (artigo 302 do Código Penal); um contribuinte, ou seja, uma pessoa inserida no sistema formal da economia, ao fazer uma declaração falsa para fins tributários, pode sofrer uma pena de detenção que varia entre 6 meses e 2 anos (artigo 2º, I, da Lei nº 8.137/90); já os comuns, praticando falsidades ordinárias, sujeitam-se a reclusão que pode variar entre 1 ano a 3 anos (se tiver por objeto documento privado) ou até 5 anos (em se tratando de documento público), conforme dispõe o artigo 299 do Código Penal.  Não que as penas em abstrato previstas ao médico ou ao contribuinte sejam baixas; ao contrario, a apenação prevista às falsidades pelas pessoas comuns — os primos pobres —, até 5 anos de reclusão, é que soa exagerada.

Observe-se que, em nosso ordenamento, o furto, a apropriação indébita, a receptação e o estelionato revelam tipos delitivos cuja prática remete ao sancionamento penal de seus autores, ainda que haja a restituição das quantias (ou bens) e a reparação plena dos danos sofridos pelas vítimas. Porém, o mesmo resultado não ocorre em relação à apropriação de valores públicos feita, por exemplo, na sonegação de tributos cujos autores, quando descobertos, providenciam a quitação de seus débitos para com a fazenda pública, muitas vezes por meio de parcelamento de longo prazo, acenando com a reparação do dano antes ou mesmo depois de iniciada a persecução penal em juízo [9] Como é evidente, os “contribuintes”, especialmente aqueles que geram rombos em montante suficiente à movimentação da máquina fiscal (acima de um piso muito acima da realidade do pobre), são pessoas “incluídas” e de destaque no sistema formal de poder e, por isso, “merecedoras” de blindagem ao mecanismo de seleção penal e isolamento social [10].

Mais um exemplo: tome-se um empregado de determinada empresa ou residência que se aproprie indevidamente de algum bem do patrão em seu local de trabalho. Ele responderá, ainda que haja restituição — voluntária ou não — da coisa apropriada, pelo crime de apropriação indébita majorada em razão do emprego [11] (artigo 168, §1º, III, do Código Penal Brasileiro). Porém, aquele mesmo patrão, caso provoque lesões aos cofres previdenciários — apropriando-se indevidamente das contribuições dos empregados (artigo 168-A do Código Penal) —, tem sua punibilidade extinta a qualquer tempo em face da circunstância objetiva da quitação do débito, ainda que involuntária, por meio de execução forçada [12].

Ainda que se identificasse algum valor diferenciado à circunstância de o poder público ocupar a condição de vítima, no mínimo e até por coerência, todos os delitos patrimoniais cometidos sem violência (furto, apropriação indébita, receptação, estelionato, etc) tendo por objeto bens estatais deveriam gozar de semelhante causa extintiva de punibilidade. Como isso não acontece, é fácil perceber, com maior clareza ainda, que o foco da criminalização não está no desvalor da conduta em si, mas sim em quem a pratica.

Esse tipo de distorção legal, por sua natureza, não deve ou não deveria ficar ao alvedrio corretivo do aplicador comum, pena de usurpação da função legiferante (nada obstante nosso sistema difuso de controle de constitucionalidade). É a Corte Constitucional quem detém algum vigor legitimante para, à luz dos preceitos magnos, pressionar o legislador ordinário a manter-se coerente aos valores e princípios da Constituição da República.

Estão na ordem do dia as reclamações por parte dos representantes do Congresso Nacional, no atacado, contra aquilo que genericamente é taxado de ativismo judicial, no qual o Judiciário estaria a invadir temas inerentes à função legislativa.

Esses reclamos podem até ser legítimos. Mas enquanto não houver também um olhar (que se insinua prioritário) para dentro do próprio parlamento, seu objeto se revelará incompleto e sob desfoque.

Para o legislador democrático evitar intromissões ilegítimas e atipias é essencial que ele mesmo, antes de tudo e de todos, cuide de aperfeiçoar a produção legislativa no varejo, de modo a conformá-la realmente aos ditames constitucionais e aos pactos universais [13].

Enfim, para que o Brasil atenda aos valores preambulares constitucionais em prol de uma nação justa e igualitária, pluralista e sem preconceitos, é imperativo que a esfera parlamentar cumpra seu papel e corrija, ela própria, o quanto antes as iniquidades normativas vigentes.


[1] Cf. caput do artigo 5º da CF/88. A expressão, aliás, manteve-se formalmente expressa mesmo durante o regime ditatorial militar (§ 1º do artigo 150 da CF/67 e § 1º do artigo 153 da EMC n.º 1/69), como de resto em todos os diplomas constitucionais pátrios: 1824 (artigo 179); 1891 (artigo 72, § 2º); 1934 (artigo 113); 1937 (artigo 122); 1946 (artigo 141, § 1º).

[2] “Se as pessoas não são iguais, não receberão coisas iguais; mas isso é origem de disputas e queixas (como quando iguais têm e recebem partes desiguais, ou quando desiguais recebem partes iguais)” (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. De Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2001. p. 139).

[3] Cf. BARBOSA, Rui. Oração aos moços. 5. ed. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1999. p. 8.  

[4] Segundo Chaïm Perelman, “A noção de justiça sugere a todos, inevitavelmente, a idéia de certa igualdade. Desde Platão e Aristóteles, passando por Santo Tomás, até os juristas, moralistas e filósofos contemporâneos, todos estão de acordo sobre este ponto. A idéia de justiça consiste numa certa aplicação da idéia de igualdade” (PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 14). As diversas teorias e concepções sobre Justiça – portanto, aplicáveis à ideia de igualdade – são condensadas por Perelman em seis enunciados: “1. A cada qual a mesma coisa. 2. A cada qual segundo seus méritos. 3. A cada qual segundo suas obras. 4. A cada qual segundo suas necessidades.  5. A cada qual segundo sua posição.  6. A cada qual segundo o que a lei lhe atribui” (PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 9).

[5] Alessandro Baratta, deixando claro o caráter falacioso da proposição, assim enuncia ironicamente o “mito da igualdade”: “[…] a lei penal é igual para todos, ou seja, todos os atores de comportamentos antissociais e violadores das normas penalmente sancionadas têm iguais chances de tornarem-se sujeitos, e com as mesmas consequências, do processo de criminalização” (BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p.161).

[6] “Sutileza” desnecessária no passado, pois cabe aqui reconhecer um avanço: a doutrina de inspiração colonialista, mais do que admitir a seletividade do sistema punitivo estratificante, tratava de legitimá-lo.

[7] Conforme Baratta, precursor da criminologia crítica, o mecanismo de produção das normas constitui a “criminalização primária”; o mecanismo da aplicação (investigação e processo), a “criminalização secundária” (a cargo da Polícia, Ministério Público e Justiça); seguindo-se, enfim, o mecanismo de execução da pena (BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p.161).

[8] CARVALHO, Amilton Bueno de. Magistratura e direito alternativo. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2001. p. 28.

[9] A extinção da punibilidade em razão do pagamento do débito tributário, antes prevista para até o recebimento da denúncia criminal (artigo 34 da Lei n.º 9.249/91), terminou, na prática, por ser estendida a qualquer fase processual, por força da Lei n.º 10.684/03 (artigo 9º, § 2º).

[10] Reza o artigo 34 da Lei n.º 9.249/95 que se extingue a punibilidade dos crimes de sonegação fiscal (Lei n.º 4.729/65) e dos crimes contra a ordem tributária, econômica e as relações de consumo (Lei n.º 8.137/90) “quando o agente promover o pagamento [também a renegociação ou o parcelamento] do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia”.

[11] Nesse sentido: “Não há como se acolher o pleito absolutório se sobejamente comprovada nos autos a atuação ilícita do acusado que, valendo-se da condição de proprietário da empresa contratada pelo Estado de Minas Gerais para prestar serviços ao 15º Batalhão da Polícia Militar de Patos de Minas/MG, apropriou-se indevidamente dos valores referentes aos vales-transporte que lhe eram entregues para repasse aos seus funcionários. Em se tratando de apropriação indébita, o ressarcimento do prejuízo levado a efeito antes do oferecimento da denúncia não tem o condão de elidir o crime” (MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça, 5ª Câmara Criminal, Apelação Criminal n.º 1.0480.03.046061-6/001(1), j. 17.10.2006, decisão unânime).

[12] STJ: “Segundo entendimento firmado pelas Turmas da 3ª Seção desta Corte, o pagamento integral do débito previdenciário, antes ou depois do recebimento da denúncia, é causa da extinção da punibilidade, na linha da previsão do art. 9º, § 2º, da Lei 10.684/2003. Com isso, uma vez saldada a dívida, mesmo que através da execução forçada, na qual se ultimou o procedimento de arrematação dos bens penhorados, há de se ter como natural o reconhecimento da benesse prevista em lei, sob pena de violação a direito líquido e certo do réu. Ordem concedida para se declarar a extinção da punibilidade pelo pagamento do débito, com extensão aos co-réus” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 6ª Turma, HC 63168/SC, j. 18.11.2008, decisão unânime).

[13] Falta ao parlamento, por exemplo, um efetivo “recontrole”, motu proprio, de conformação constitucional das normas anteriores à Constituição de 1988.

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