Controvérsias Jurídicas

Constitucionalidade de lei municipal sobre nepotismo em licitação

Autores

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

  • Fabia Puglisi

    é advogada mestranda em direito penal pela PUC-SP especialista na tutela de direitos difusos e coletivos professora e assessora-chefe do Procon-SP (2019-2023).

16 de novembro de 2023, 16h16

O Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar a repercussão geral do Tema 1.001, firmou a tese segundo a qual é constitucional o ato normativo municipal, editado no exercício de competência legislativa suplementar, que proíba a participação em licitação ou a contratação: (a) de agentes eletivos; (b) de ocupantes de cargo em comissão ou função de confiança; (c) de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, de qualquer destes; e (d) dos demais servidores públicos municipais. 

O leading case, cuja repercussão geral foi reconhecida, é o Recurso Extraordinário nº 910.552/MG. No caso, o recurso foi interposto pelo Ministério Público de Minas Gerais contra acórdão do órgão especial do Tribunal de Justiça local, o qual declarou inconstitucional o artigo 96 da Lei Orgânica do Município de Francisco Sá, que assim dispõe: “O Prefeito, o Vice-Prefeito, os Vereadores e os Servidores Municipais, bem como as pessoas ligadas a qualquer deles por matrimônio ou parentesco, afim ou consanguíneo, até o terceiro grau inclusive, ou por adoção não poderão contratar com o Município, subsistindo a proibição até seis meses após findas as respectivas funções”.

Spacca

Por maioria, o STF deu provimento parcial ao recurso para interpretar o dispositivo conforme a Constituição Federal, de modo a excluir a proibição de contratação de pessoas ligadas por matrimônio ou parentesco, afim ou consanguíneo, até o terceiro grau inclusive, ou por adoção, a servidores municipais que não ocupem cargo em comissão ou função de confiança

O ministro Dias Toffoli, à época da interposição do recurso,  entendeu que, embora a Suprema Corte já possuísse precedentes pela constitucionalidade de leis com conteúdo similar [1], era necessária a fixação de orientação a respeito de duas questões de relevância constitucional, quais sejam: (1) os limites da competência legislativa municipal em matéria de contratação pública, a partir do cotejo com a norma constitucional que atribui à União competência privativa para editar normas gerais em matéria de licitação e contratação, em todas as suas modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, estados, Distrito Federal e municípios (CF, artigo 21, inciso XXVII) e (2) o âmbito de incidência da vedação constitucional ao nepotismo, se essa vedação incidiria apenas no contexto da contratação de mão de obra pela administração pública ou se incidiria também na celebração de contratos administrativos pelo poder público.

O artigo 22, XXVII, da CF prevê a competência privativa da União para legislar sobre normas gerais de contratação e licitação pela administração pública: “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: XXVII – normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1º, III”.

Da leitura do dispositivo, extrai-se que a competência privativa da União está restrita apenas à edição de normas gerais para contratação pública, o que, portanto, não prejudica a competência dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, no exercício de competência suplementar para legislar sobre a matéria e para atender, no caso dos municípios, às peculiaridades locais, desde que observados os princípios constitucionais, conforme § 2º do artigo 24 e incisos I e II do artigo 30 da CF. Isto porque o legislador municipal tem melhores condições de elaborar normas mais detalhadas, eficazes e adequadas sobre a organização interna da administração municipal, por ser o detentor do conhecimento específico das características peculiares de sua cidade. Seria desarrazoado delegar ao estado, ou até mesmo à própria União, a elaboração de leis dispondo sobre a administração municipal, levando-se em conta os mais de 5 mil municípios que integram o território nacional, cada qual com suas particularidades.

No mesmo sentido, o STF, ao julgar a ADI nº 3.059 [2], oportunidade em que o ministro Ayres Britto ponderou “de se questionar, então: as normas gerais de licitação e contratação, editadas pela União, têm por contraponto, no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, normas específicas ou normas suplementares? Resposta: a competência que assiste aos Estados e ao Distrito Federal, em matéria de licitação, é de natureza suplementar”.  Igualmente, o ministro Carlos Velloso, então relator da ADI-MC nº 927: “Registre-se, entretanto, que a competência da União é restrita a normas gerais de licitação e contratação. Isto quer dizer que os Estados e os Municípios também têm competência para legislar a respeito do tema: a União expedirá as normas gerais e os Estados e Municípios expedirão as normas específicas”.

A Constituição estabelece, em seu artigo 37, caput, como corolários ao bom funcionamento da administração pública, dentre outros, os princípios da impessoalidade e moralidade.

O princípio da impessoalidade consiste na obrigação atribuída ao poder público de manter uma posição neutra em relação aos administrados, só produzindo discriminações que se justifiquem em vista do interesse público, sem favorecimentos de natureza pessoal a quem quer que seja [3]. Isso significa que a atuação do poder público não se compadece com privilégios a pessoas específicas.

O princípio da moralidade administrativa, consagrado na Lei nº 9.784/99, exige dos administradores atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé. Além de se ater à legalidade, à justiça, bem como à conveniência e oportunidade do ato, o administrador deve ajustar sua conduta aos ditames da moralidade, pressuposto de validade do ato administrativo, cuja ausência invalida o ato. No âmbito da administração, portanto, os círculos da legalidade e da moralidade se interseccionam.

Em consonância ao mandamento constitucional, a Lei nº 14.133/2021 (Lei de Licitações), que dispõe sobre normas gerais para contratação com a administração pública, também impõe observância aos princípios da impessoalidade e moralidade em matéria de licitação e contratação pública (artigo 5º).

Buscando a concretude de tais princípios inerentes à higidez da administração pública, o STF editou a Súmula Vinculante nº 13, a qual dispõe: “A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal”.

 No âmbito da legislação infraconstitucional, a Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992), com as alterações feitas pela Lei nº 14.230/2021, caracteriza como  ato de improbidade a nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, por atentar contra os princípios da administração pública e violação aos deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade (artigo 11, XI) e a Lei de Licitações veda a contratação com cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, de dirigente do órgão ou entidade contratante ou de agente público que desempenhe função na licitação ou atue na fiscalização ou na gestão do contrato (artigo 14, IV).

Da análise de todos esses preceitos constantes no ordenamento jurídico pátrio, é inegável a constitucionalidade de lei municipal que, em observância aos princípios gerais da impessoalidade e moralidade administrativa, e em paralelismo às regras que proíbem o nepotismo na administração pública, venha a ser editada com o objetivo de proibir a participação em licitação ou em execução de contratos de agentes eletivos, ocupantes de cargo em comissão ou função de confiança, de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, de qualquer destes e dos demais servidores públicos municipais. Neste caso, a edição da norma municipal decorrerá do exercício da competência legislativa suplementar do município, constitucionalmente assegurada, de modo que o conteúdo veiculado estará em perfeita consonância com os mandamentos constitucionais e infraconstitucionais, tais como a Lei de Licitações — lei federal editada com as normas gerais para a contratação com a Administração Pública, e também com a Lei de Improbidade Administrativa. Adequa-se, ainda, perfeitamente aos ditames da súmula vinculante 13 do STF.

Ao editar norma com referido conteúdo proibitivo, o legislador municipal busca dar efetividade aos princípios constitucionais da impessoalidade e moralidade. A mesma estratégia é adotada pelos órgãos de controle da magistratura e Ministério Público, como se verifica na Resolução CNJ nº 7/2005 e na Resolução CNMP nº 37/2009, as quais proíbem a contratação de pessoa jurídica que tenha em seu quadro societário cônjuge, companheiro ou parente dos magistrados e membros do Ministério Público ocupantes de cargos de direção ou no exercício de funções administrativas e dos servidores ocupantes dos cargos de direção, chefia e assessoramento, visando ao combate do nepotismo no âmbito do Poder Judiciário e do Ministério Público da União e dos estados, eis que o direito a uma administração pública hígida, pautada pelos ditames da probidade e moralidade é constitucionalmente assegurado.

Em suma, o município tem competência constitucional para proibir celebração de contratos com parentes de autoridades e servidores municipais, nos mesmos moldes da proibição do nepotismo, diante de seu peculiar interesse em proteger do modo mais amplo possível seu patrimônio, além do que, ao proteger com maior eficácia o patrimônio público municipal, referida lei encontrará pleno assento na CF, em especial, no artigo 37, caput, e seu parágrafo 4º.


[1] o ARE 648.476 AgR (rel. min. Roberto Barroso, 1ª Turma, DJe de 30/6/17), concernente a norma do Município de Belo Horizonte, e o RE 423.560 (rel. min. Joaquim Barbosa, 2ª Turma, DJe de 19/6/12), relativo a lei do município de Brumadinho (MG).

[2] Relator: Ayres Britto, data de julgamento: 9/4/2015, Tribunal Pleno, data de publicação: 8/5/2015

[3] SPITZCOVSKY, C.; LENZA, P. Coleção Esquematizado – Direito Administrativo. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2023. E-book.

Autores

  • é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.

  • é advogada, mestranda em direito penal pela PUC-SP, especialista na tutela de direitos difusos e coletivos, professora e assessora-chefe do Procon-SP (2019-2023).

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