Direto do Carf

Infrações aduaneiras reiteradas: precisamos voltar ao artigo 99 do DL nº 37/66

Autor

  • Carlos Augusto Daniel Neto

    é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito Tributário pela PUC-SP com estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) é visiting scholar no Max-Planck-Instituts für Steuerrecht und Öffentliche Finanzen ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf pesquisador do NEF/FGV presidente da Comissão de Direito Aduaneiro do Iasp e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e da pós-graduação do IBDT.

15 de novembro de 2023, 8h00

Na coluna de hoje trataremos da “reiteração de infrações idênticas” no âmbito aduaneiro, tema já abordado nessa coluna[1], para analisar criticamente os argumentos que têm sido utilizados pelos acórdãos do Carf para, açodadamente, afastar ou ignorar a aplicação do artigo 99 do DL nº 37/66.

Spacca

Um dos fatores centrais para que o tema não tenha sido melhor enfrentado é o fato de a maioria dos acórdãos se limitar a aplicar o artigo 679 do Regulamento Aduaneiro (RA) de 2009, que supostamente consolida o referido artigo 99. Trata-se do exótico caso em que a soma das partes se tornou menor que o todo, havendo mais uma ilegal restrição do que a simples consolidação.

As consolidações, como o próprio nome implica e nos exatos termos do artigo 13, §1º, da LC nº 95/98, integra todas as leis pertinentes de uma determinada matéria em um único diploma legal, “sem modificação do alcance nem interrupção da força normativa dos dispositivos consolidados”. Entretanto, vejamos o teor original do dispositivo e como ele foi consolidado nos RA de 2002 (artigo 608) e de 2009 (artigo 679), com grifos nossos nos termos suprimidos:

DL nº 37/66RA 2002 e 2009
Art.99 – Apurando-se, no mesmo processo, a prática de duas ou mais infrações pela mesma pessoa natural ou jurídica, aplicam-se cumulativamente, no grau correspondente, quando for o caso, as penas a elas cominadas, se as infrações não forem idênticas.   § 1º – Quando se tratar de infração continuada em relação à qual tenham sido lavrados diversos autos ou representações, serão eles reunidos em um só processo, para imposição da pena.   § 2º – Não se considera infração continuada a repetição de falta já arrolada em processo fiscal de cuja instauração o infrator tenha sido intimado.  Art. 679.  Apurando-se, no mesmo processo, a prática de duas ou mais infrações diferentes, pela mesma pessoa física ou jurídica, aplicam-se cumulativamente, no grau correspondente, quando for o caso, as penalidades a elas cominadas (Decreto-Lei nº 37, de 1966, art. 99, caput).

Como se vê, os regulamentos promoveram uma “evidente e injustificada” supressão de disposições da legislação consolidada, inclusive mutilando o próprio conteúdo do caput do artigo 99, que teve o trecho “se as infrações não forem idênticas” desaparecido.

Talvez por ignorarem ou desconhecerem o trecho ocultado, grande parte das discussões no Carf, a respeito da possibilidade de cumulação de sanções por infrações repetidas, se encerra: i) pela rejeição com base na aplicação literal do artigo 608 do RA 2002 ou 679 do RA 2009 (e.g. Ac. 3402-004.622) ou ii) na discussão a respeito da impossibilidade de aplicação analógica do artigo 71 do Código Penal (CP) [2] ao caso (e.g. Ac. 3401-011.544, 3402-007.562, 3401-011.539 e 3002-000.533), como ocorre no Judiciário para outras multas administrativas.

O único voto que trata da alteração do dispositivo é da lavra do conselheiro Rosaldo Trevisan (e.g. Ac. 3403-001.773 e outros). A sua manifestação parte de citação doutrinária sustentando a inexistência de previsão legislativa de um regime jurídico para infrações tributárias continuadas (com o que concordamos), mas reconhece que “em matéria aduaneira, o legislador esboçou um tratamento à matéria, ainda que incompleto, no art. 99 do DL nº 37/66”. Em seguida, afirma, verbis:

“A preocupação do legislador aponta para o aspecto formal (reunião ou não de processos para aplicação unificada da penalidade). Entretanto, não afirma objetivamente a providência sancionatória a ser adotada após a junção dos diversos processos em um, o que levou o Poder Executivo a interpretar o dispositivo (art. 679 do Regulamento Aduaneiro Decreto no 6.759/2009) no sentido de que também aí cumular-se-iam as penalidades.”

Em suma, a referida supressão, no entender de Trevisan, decorreria de uma “interpretação do Poder Executivo” baseada na assunção de uma ineficácia técnica de caráter semântico [3], por carecer o dispositivo de “providência sancionatória a ser adotada após a junção dos processos [com infrações idênticas]”, i.e., não haver uma determinação normativa do que deveria ser feito pelo aplicador. Não há como concordar com esse argumento.

Em primeiro lugar, ainda que a tese da ineficácia técnica pela incompletude da norma estivesse correta — o que não é o caso —, caberia ao aplicador promover a sua integração, utilizando-se dos métodos jurídicos típicos, e realizando concretamente a clara distinção traçada entre o regime de cumulação de penas para infrações idênticas e distintas entre si.

Em segundo lugar, não pode o Poder Executivo se valer da consolidação como veículo de suas interpretações legais, sob pena de usurpar uma função legislativa que não lhe cabe, enquanto consolidador. Tal prática é cada vez mais comum e gera uma desconfiança perene dos aplicadores com as consolidações e regulamentos tributários e aduaneiros.

Em terceiro lugar, mais grave, o artigo 99 não tem ineficácia técnica alguma. Pelo contrário, regula de forma clara as hipóteses em que cabe e em que não cabe a cumulação de penalidades, senão vejamos o seu conteúdo, analiticamente, distinguindo as condições positivas e negativas da sua hipótese, bem como a sua determinação:

  1. Hipótese:
    1. Condições positivas: apurar, em um processo, a prática de duas ou mais infrações pela mesma pessoa natural ou jurídica;
    1. Condições negativas: não se tratar de infrações idênticas;
  2. Consequência: o administrador é obrigado a aplicar cumulativamente e no grau correspondente (quando for o caso) as penas cominadas;

Segregando os elementos normativos juridicamente relevantes, fica evidente que a aplicação cumulativa das penas está condicionada a não serem as infrações “idênticas”. Tendo em vista o dever de observância da legalidade na aplicação de sanções (como ressaltado no artigo 97, I, do próprio DL nº 37/66), contrario sensu é proibida a cumulação de penalidades diante da identidade entre os ilícitos realizados. A tese da ineficácia técnica, à evidência, não procede e se presta a ocultar apenas uma discordância do Executivo, por meio da Receita Federal, com o regime jurídico estabelecido.

Esse argumento da ineficácia técnica é trazido sob outro ângulo no Ac. 3401-003.795, ao afirmar-se que o artigo 99 não apresentaria uma solução clara para a questão da cumulação de penas de infrações idênticas, pois “remanesceria a dúvida sobre a que se refere a expressão ‘no grau correspondente“. Não é o caso, pois o próprio artigo 99 ressalva que a graduação da pena seria devida apenas “quando for o caso”, referindo às infrações cuja penalidade seja expressa em “faixa variável de quantidade”, como dispõe o artigo 98 do DL nº 37/66 — para os demais casos, não haveria o que graduar, mas apenas aplicar a pena singularmente.

Não bastasse isso, o DL nº 37/66 foi além.

O §1º do artigo 99 traz uma regra antifragmentação das autuações, com a finalidade de evitar que a proibição de cumulação de penalidades para infrações idênticas fosse burlada pela fiscalização por meio da lavratura de diversos autos de infração, mandando que todos eles fossem reunidos em um só, para a imposição da pena na forma do caput.

Além disso, por questão de técnica legislativa, o §2º traz uma definição pela negativa do que seria “infração continuada” para fins do direito aduaneiro sancionatório. Vertendo-a em termos afirmativos, ela é entendida como a repetição de falta que não tenha sido arrolada em processo fiscal do qual tenha o infrator sido intimado. Esse dispositivo é a chave da abóbada da compreensão do artigo 99, permitindo verificar que o legislador trata, infrações “idênticas” e “continuadas” como sinônimas, definindo uma em termos da outra: a infração continuada é a “repetição da falta”, e isto nada mais é do que a ocorrência sucessiva de faltas idênticas (caso contrário não se trataria de repetição).

Não fosse isso suficiente, é máxima da hermenêutica e regra positivada (artigo 11, III, “c” da LC nº 95/98) que os parágrafos deverão trazer aspectos complementares ao caput, ficando evidente que eles estão regulando exatamente a vedação da cumulação na hipótese de identidade entre infrações.

Apesar da clareza da legislação, as parcas discussões a respeito do artigo 99 refletem uma profunda confusão a respeito do que seriam “infrações idênticas/continuadas”, que transparece sob diversas formas.

Em um sentido, ela está presente no Ac. nº 3401-008.139 (também no Ac. 3003-002.399), que analisava a aplicação cumulativa de multas de R$ 5.000,00 por atraso na informação do embarque de mercadorias. No caso, o relator afirma que as sanções são idênticas, não as infrações”, porque apesar de ser a mesma infração legal, seriam “fatos geradores distintos”, pois cada embarque seria de uma carga distinta e cada atraso, uma infração diferente.

O racional, data venia, é ilógico e ignora o §2º (que sequer foi citado na decisão). Se se tratasse de um mesmo ato ilícito, sequer haveria que se cogitar de cumulação de sanções! O caput já evidencia que o exame de identidade pressupõe a comparação entre “duas ou mais infrações [praticadas] pela mesma pessoa natural ou jurídica” e o §2º exige a “repetição de falta”, deixando absolutamente claro que se trata de atos ilícitos concretos distintos, mas enquadrados em um mesmo tipo infracional. A decisão mencionada confunde “infrações idênticas” com “a mesma infração”, o que tornaria a regra, em absoluto, um sem-sentido deôntico.

É preciso repetir, para que fique claro: “infrações idênticas” não pode, por uma questão de lógica e por decorrência do próprio artigo 99, significar “a mesma infração”, sob pena da regra perder seu sentido normativo, pois não há que se discutir cumulação de penalidades quanto a uma mesma falta, mas sim eventual bis in idem, que é questão absolutamente distinta.

Em outro sentido, a confusão nasce de uma indevida mistura com conceitos do Direito Penal.

Para o conceito de crime continuado do artigo 71 do CP, no entendimento do STJ, é “imprescindível o preenchimento de requisitos de ordem objetiva (mesmas condições de tempo, lugar e forma de execução) e subjetiva (unidade de desígnios ou vínculo subjetivo entre os eventos)” (REsp nº 1.767.902/RJ). Caso se estivesse pleiteando uma aplicação analógica dessa disposição à multa administrativa, esses requisitos deveriam ser observados, mas não é o caso, pois o DL nº 37/66 possui o seu próprio conceito de infração continuada e seu regime jurídico próprio, como demonstrado anteriormente.

O DL nº 37/66, nesse ponto, reflete a adoção expressa da teoria objetiva pura, que ignora eventual unidades de desígnios para a configuração da infração continuada, bastando a reiteração delitiva. Inclusive, o dispositivo está alinhado com a doutrina penal da época e com o próprio legislador, que expressamente a adotou na exposição de motivos da Lei nº 7.209/84[4] , que reformou a parte geral do CP, posição que perdurou até o STJ passar a adotar a teoria objetiva-mista.

Nos Ac. 3001-002.250 e 3401-008.660, os relatores reconhecem expressamente que houve a repetição de infrações, mas afastam a aplicação do artigo 99 do DL nº 37/66 por entenderem que não haveria o atendimento ao requisito subjetivo (“que os crimes posteriores sejam uma continuação do primeiro”), fiando-se nos requisitos do artigo 71 do CP, e traçando uma distinção entre “crime continuado” e “reiteração delitiva”.

O equívoco, aqui, nasce em aplicar o CP e ignorar a redação literal do artigo 99 do DL nº 37/66. O artigo 99, §2º, como demonstrado, exige apenas a repetição de infrações idênticas para se inviabilize a cumulação de penalidade, não deixando margem para se identificar um requisito subjetivo na sua redação. Em outras palavras: para fins do Direito Aduaneiro positivo, a infração continuada é a reiteração delitiva, como definido pelo próprio §2º do artigo 99, não subsistindo a distinção proposta nos acórdãos citados.

A única decisão localizada que analisa o artigo 99 do DL nº 37/66 em sua inteireza foi o Ac. 3003-001.964, que autorizou a cumulação de penas por se tratar de processos distintos, na qual houve repetição de falta cujo processo fiscal instaurado já havia sido notificado ao administrado. Além disso, a relatora aponta que as infrações teriam tipificações diferentes, afastando o requisito de identidade.

Como se vê, a discussão a respeito da aplicação do artigo 99 às infrações aduaneiras idênticas tem sido cercada de diversos problemas.

Ora ela é absolutamente ignorada, em razão da sub-reptícia e ilegal supressão da inteireza do seu regime infracional, pelo Executivo, nos regulamentos de 2002 e 2009, o que levou a discussão a ingressar na indevida seara do cabimento ou não de uma aplicação analógica do CP, ao arrepio da existência de regra aduaneira própria, como reconhecida no Ac. 3403-001.773.

Ora ela é reconhecida, mas tem a sua normatividade rejeitada, em razão de uma suposta “ineficácia técnica”, que mais parece uma irresignação institucional com o tratamento dado, dada a clareza do comando normativo veiculado, demonstrado analiticamente acima.

Ora ela é admitida, mas estabelece-se uma interpretação teratológica que gera um sem-sentido normativo, ao confundir a identidade entre o tipo infracional praticado e as condutas concretas que são reiteradas pelo administrador, e ignorando a definição dada pelo §2º do art. 99.

Ora ela é afastada, em prol de uma análise da rejeição de uma aplicação analógica dos requisitos do art. 71 do CP, ignorando que o direito aduaneiro possui regulação própria que adota uma teoria objetiva pura para a continuidade delitiva.

É a hora de ela ser, enfim, considerada, respeitada e aplicada.

Vê-se um empenho hermenêutico hercúleo em neutralizar, por qualquer forma, a aplicação do referido dispositivo. É inevitável a lembrança da lição de Carlos Maximiliano, de que “[D]eve o Direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis. Também se prefere a exegese de que resulte eficiente a providência legal ou válido o ato, à que torne aquela sem efeito, inócua, ou este, juridicamente nulo”.

Da análise atenta do texto legal e da forma como ele tem sido tratado pelo Carf, parece-nos premente e necessária a revisitação do artigo 99 do DL nº 37/66 pela doutrina e pela jurisprudência, buscando reestabelecer a normatividade que o Executivo tentou ocultar, e aplicar o regime jurídico infracional prescrito pelo ordenamento para os ilícitos aduaneiros.


[1] Infrações aduaneiras continuadas: uma análise crítica – Consultor Jurídico Consultor Jurídico (conjur.com.br)

[2] Art. 71 – Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.

[3] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 55.

[4] prop_mostrarintegra (camara.leg.br)

Autores

  • é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária, em estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf, pesquisador do NEF/FGV e do Nupem/IBDT e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e de diversos cursos de pós-graduação.

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