Direto do Carf

Infrações aduaneiras continuadas: uma análise crítica

Autor

  • Diego Diniz Ribeiro

    é advogado tributarista e aduanerista ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento professor de Direito Tributário Direito Aduaneiro Processo Tributário e Processo Civil doutor em Processo Civil pela USP mestre em Direito Tributário pela PUC-SP pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet e pesquisador do NEF da FGV/SP e do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

31 de maio de 2023, 8h00

Na coluna de hoje abordaremos um tema riquíssimo no âmbito doutrinário e que, ao nosso ver, não tem encontrado a mesma profundidade de discussão na jurisprudência do Carf: a continuidade infracional no caso de ilícitos aduaneiros.

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O artigo 107 do Decreto-Lei nº 37/66 traz um vasto rol de tipos infracionais aduaneiros e, dentre eles, destacam-se as infrações capituladas no seu inciso IV, alíneas "e" e "f" [1], as quais visam sancionar a não prestação de certas informações atinentes ao Comex e, portanto, prejudiciais ao controle aduaneiro.

É comum nesse tipo de ocorrência que haja uma repetição da infração (não prestação de informações), em diferentes átimos temporais, ou seja, que haja uma continuidade da conduta ilícita praticada. É o chamado "crime continuado", tão bem desenvolvido no âmbito da legislação e doutrina penal.

Trazendo algumas lições do Direito Penal para o tema aqui abordado, é possível encontrar três diferentes correntes para a atribuição da natureza jurídica do chamado crime continuado [2]. Para a teoria da unidade real, os vários delitos formam um único crime. Já para a teoria da ficção jurídica, o legislador, de forma ficcional [3], trata os diferentes ilícitos como um só. Por fim, para a teoria mista, o crime continuado seria um terceiro delito, apenado de forma própria em razão dessa sua natureza. Dentre os penalistas, prevalece a teoria da ficção, ou seja, o legislador, dentre do seu feixe de competência, criou uma realidade própria que destoa da realidade das coisas, atribuindo-lhe uma consequência jurídica particular. É assim que vem sendo interpretado o artigo 71 do Código Penal [4].

Ainda bebericando da doutrina penal [5], são requisitos do crime continuado a (1) pluralidade de condutas, a (2) a pluralidade de crimes da mesma espécie e, ainda, a (3) a continuação da conduta, no tempo, a partir de circunstâncias objetivas[6].

Partindo de tais ideias, é possível agora analisar o específico tratamento dado pelo legislador aduaneiro em relação as infrações continuadas nesse nicho do Direito, o qual está prescrito no artigo 99 do Decreto-Lei nº 37/66, verbis:

Apurando-se, no mesmo processo, a prática de duas ou mais infrações pela mesma pessoa natural ou jurídica, aplicam-se cumulativamente, no grau correspondente, quando for o caso, as penas a elas cominadas, se as infrações não forem idênticas.

A partir do referido dispositivo, o primeiro ponto a se fixar aqui é que, no âmbito aduaneiro, é absolutamente desnecessário convocar a aplicação analógica do artigo 71 do CP, uma vez que a própria legislação aduaneira já deu tratamento para o referido instituto.

Pois bem. Ao se analisar referido dispositivo percebe-se que o legislador aduaneiro criou a sua particular ficção em relação ao ilícito aduaneiro continuado, oportunidade em que elencou os seguintes requisitos para sua configuração: (1) pluralidade de condutas, (2) pluralidade de infrações (3) continuidade das condutas, no tempo, a partir de circunstâncias objetivas e, ainda, (4) identidade de infrações.

Esse quarto requisito, por sua vez, tem sido objeto de alguns equívocos hermenêuticos, o que se observa em alguns precedentes do Carf.

O primeiro equívoco diz respeito ao conteúdo semântico da expressão "identidade de infrações". Aqui, no ambiente aduaneiro, o legislador entendeu que há ilícito continuado quando houver o mesmo tipo infracional, exatamente como também prevê o legislador no Direito Penal [7]. E é óbvio que essa identidade se dá no plano normativo e não no ambiente da realização prática do Direito, haja vista que, se assim fosse, o instituto do ilícito continuado jamais teria efetividade, já que pressupõe pluralidade de condutas, além do que a discussão migraria de continuidade delitiva para bis in idem infracional [8].

Outro ponto que merece destaque e que também tem gerado equívocos é a consequência atribuída pelo legislador na hipótese de identificação de ilícitos aduaneiros continuados. Diferentemente do que ocorre no âmbito penal, no qual o legislador prevê a fixação de uma única pena [9], devidamente acrescida de um sexto a dois terços, no âmbito aduaneiro o legislador previu duas consequências: uma de índole formal e outra de natureza material.

A consequência de índole formal está prescrita no § 1º do art. 99 do Decreto-Lei nº 37/66 [10], o qual prevê que, na hipótese da lavratura de diversos autos de infrações para as diferentes condutas infracionais, tais autos deverão ser reunidos em um único processo administrativo. O objetivo do legislador com essa previsão é muito claro: o de evitar que o instituto do ilícito continuado (e sua consequência material) não seja aplicado na prática em razão de um subterfúgio formal, decorrente da cisão quanto à apuração de diversas condutas em diferentes autos de infração.

A outra consequência no âmbito aduaneiro, agora de índole material, é a pena a ser aplicada no caso de apuração de ilícitos continuados. Diferentemente do que ocorre no Direito Penal, em que o legislador fixou um acréscimo de pena, no ambiente aduaneiro o legislador escolheu pela aplicação de uma única pena para as múltiplas ações, sem qualquer acréscimo sancionatório. É o que estabelece a parte final do art. 99 do Decreto-Lei nº 37/66, ao prever que haverá cumulação de infração apenas na hipótese de se tratar de infrações/tipos infracionais distintos. Em contrário sensu, na hipótese de identidade de tipos, ou seja, de tipos da mesma espécie, aplica-se uma única pena [11].

Importante frisar que esse entendimento foi vaticinado pela própria Receita Federal, na Solução de Consulta Interna nº 8 Cosit, de 14.02.2008, a qual se debruçou sobre infração do artigo 107, IV, "e" do Decreto-Lei nº 37/66 e a sua eventual graduação, à luz do que dispõe o já referido artigo 99 do Decreto-Lei nº 37/66. A resposta dada pela RFB foi no sentido de que seria aplicável uma única multa de R$ 5.000, justamente sob o fundamento de que se trata de uma infração, de natureza continuada [12].

É assim que também vem se consolidando a jurisprudência judicial, mais precisamente aquela do Superior Tribunal de Justiça [13], conforme se observa dos seguintes precedentes:

"PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA CONTINUADA. APLICAÇÃO DE MULTA SINGULAR. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. REEXAME DO CONTEXTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. FUNDAMENTO AUTÔNOMO NÃO IMPUGNADO. SÚMULA 283/STF.

(…)

2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça define que 'há continuidade infracional quando diversos ilícitos de idêntica natureza são apurados durante mesma ação fiscal, devendo tal medida ensejar a aplicação de multa singular' (AgInt no AREsp n. 1.129.674/RJ, relator Ministro Sérgio Kukina, 1ª Turma, julgado em 8/3/2021, Dje de 11/3/2021). (…)

5. Agravo interno não provido.

(AgInt no Resp nº 1.783.746/RJ, relator ministro Benedito Gonçalves, 1ª Turma, julgado em 13/2/2023, Dje de 16/2/2023)

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. OFENSA AO ART. 535 DO CPC. PODER DE POLÍCIA. SUNAB. OFERECIMENTO DE SERVIÇOS POR PREÇOS SUPERIORES AO TABELADO. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA CONTINUADA. APLICAÇÃO DE MULTA SINGULAR.

(…)

2. No mais, é pacífica a orientação do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que há continuidade infracional quando diversos ilícitos de mesma natureza são apurados durante mesma ação fiscal, devendo tal medida ensejar a aplicação de multa singular. Precedentes. (…)

4. Agravo regimental não provido.

(AgRg nos Edcl no Resp nº 868.479/PE, relator ministro Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, julgado em 2/3/2010, Dje de 27/4/2011.)

Por fim, uma última posição encontrada no Carf a respeito do tema é no sentido de afastar a aplicação por analogia do artigo 71 do Código Penal, em razão da previsão estabelecida no artigo 136 do CTN [14]. Tal entendimento não merece maiores digressões, restando claro o seu equívoco por dois motivos: (1) pela desnecessidade de aplicação analógica do CP, haja vista a expressa previsão do artigo 99 do Decreto-Lei nº 37/66 que trata dos ilícitos aduaneiros continuados; e, (2) por convocar dispositivo do Direito Tributário para resolver uma questão aduaneira, ou seja, por confundir alhos com bugalhos [15].

Em suma, o que se espera aqui é que a jurisprudência do Carf se debruce sobre a continuidade delitiva no âmbito aduaneiro considerando os marcos doutrinários advindo do Direito Penal e que são frutos de séculos de estudos, porém sem se esquecer do particular tratamento legislativo dado pelo Direito Aduaneiro para o tema, nos exatos termos do repisado artigo 99 do Decreto-Lei n. 37/66.

 


[1] Art. 107. Aplicam-se ainda as seguintes multas:

(…).

IV – de R$ 5.000,00 (cinco mil reais):

(…).

e) por deixar de prestar informação sobre veículo ou carga nele transportada, ou sobre as operações que execute, na forma e no prazo estabelecidos pela Secretaria da Receita Federal, aplicada à empresa de transporte internacional, inclusive a prestadora de serviços de transporte internacional expresso porta-a-porta, ou ao agente de carga; e

f) por deixar de prestar informação sobre carga armazenada, ou sob sua responsabilidade, ou sobre as operações que execute, na forma e no prazo estabelecidos pela Secretaria da Receita Federal, aplicada ao depositário ou ao operador portuário;

(…).

[2] Nesse sentido: JESUS, Damásio E. Direito penal. 22ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999. V. I. p. 608.

[3] “A diferença da presunção para a ficção seria de técnica legislativa. Na presunção, o legislador toma a realidade da vida e dá um tratamento jurídico de acordo com o que normalmente acontece (quod plerumque accidit); na ficção, o legislador sabe que, na realidade, ocorre algo que não corresponde à figura jurídica escolhida, mas opta por dar-lhe um tratamento conscientemente contrário à natureza das coisas.” (CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas: entre continuidade, mudança e transição de posições processuais estáveis. 2. ed. Salvador: Juspodivum, 2014. p. 76. Grifo do autor).

[4] Art. 71 – Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.

[5] JESUS, Damásio E. Direito penal. Vol. I. p. 605.

[6] Para os adeptos da teoria objetivo-subjetiva, haveria um quarto requisito, o qual seria a unidade de desígnio.

[7] Crimes da mesma espécie são os previstos no mesmo tipo penal, i.e., aqueles que possuem os mesmos elementos descritivos, abrangendo as formas simples, privilegiadas e qualificadas, tentadas ou consumadas. (…). Nota-se que o legislador usa a expressão “crimes da mesma espécie” e não “crimes do mesmo gênero”. Assim, furto e apropriação indébita, embora delitos do “mesmo gênero” (contra o patrimônio), não são da “mesma espécie”. Entre eles, por isso, não pode haver continuação. (JESUS, Damásio E. Direito penal. Vol. I. pp. 605-606. Grifos do autor),

[8] Fazendo essa indevida interpretação do dispositivo, no sentido de que a identidade das condutas perpetradas para fins de aplicação do art. 99 do Decreto-Lei nº 37/66 se daria no âmbito prático, observa-se o Acórdão CARF n. 3401-08.138, de relatoria do Conselheiro Oswaldo Gonçalves de Castro Neto, in verbis:

2.5.2. No caso em liça as sanções são idênticas, não as infrações. O antecedente do fatos geradores são distintos, idênticas são apenas as consequências. As infrações apuradas são: 1) a Recorrente deixou de informar até o dia 29 de abril de 2004 o embarque das mercadorias no navio Cabo Creus e por isto recebeu multa de R$ 5.000,00, 2) a Recorrente deixou de informar até o dia 23 de abril de 2004 o embarque das mercadorias no navio CMA CGM Rodin e por isto recebeu outra multa de R$ 5.000,00 e assim sucessivamente… (grifos constantes no original).

No mesmo sentido: Acórdão CARF n. 3201-008.297, relatoria do Conselheiro Hélcio Lafetá Reis; Acórdão Carf n. 3301-011.732, relatoria do Conselheiro Ari Vendramini.

[9] No caso, a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas.

[10] Art. 99 (…).

§ 1º – Quando se tratar de infração continuada em relação à qual tenham sido lavrados diversos autos ou representações, serão eles reunidos em um só processo, para imposição da pena.

[11] Diferentemente do que é aqui defendido, encontra-se Acórdão CARF nº 3403-001.773, de relatoria do conselheiro Rosaldo Trevisan, para quem o legislador não teria supostamente previsto a consequência material da continuidade delitiva no âmbito aduaneiro, se limitando a tratar da consequência de natureza formal. Nesse sentido:

A preocupação do legislador aponta para o aspecto formal (reunião ou não de processos para aplicação unificada da penalidade). Entretanto, não afirma objetivamente a providência sancionatória a ser adotada após a junção dos diversos processos em um, o que levou o Poder Executivo a interpretar o dispositivo (art. 679 do Regulamento Aduaneiro ­ Decreto no 6.759/2009) no sentido de que também aí cumular­se­iam as penalidades.

Assim, em que pesem alguns posicionamentos jurisprudenciais aplicando à seara administrativa os atributos do crime continuado (ora estabelecendo a multa correspondente à infração acrescida de um sexto a dois terços, ora aplicando­a simplesmente uma vez), entendemos carente de disciplinamento legal a matéria.

[12] Nesse sentido:

16. Restaria assim, a dúvida se a cada informação não prestada, sobre cada uma das declarações de exportação, geraria uma multa de R$ 5.000,00 ou se a multa seria pelo descumprimento de obrigação acessória de deixar o transportador de informar os dados sobre a carga, como um todo, transportada. Ora, o transportador que deixou de informar os dados de embarque em uma declaração de exportação e o que deixou de informar os dados de embarque sobre todas as declarações de exportação cometeram a mesma infração, ou seja, deixaram de cumprir a obrigação acessória de informar os dados de embarque. Nestes termos, a multa deve ser aplicada uma única vez por veículo transportador, pela omissão de não prestar as informações exigidas na forma e no prazo estipulados.

(…)

17. Em face de todo exposto, conclui-se que:

(…).

c) deve ser aplicada ao transportador uma única multa de R$ 5.000,00, uma vez que o descumprimento de obrigação acessória de informar os dados de embarque, no Siscomex, não sendo determinante a quantidade de dados não informados.

[13] Destaca-se que os casos julgados pelo STJ não tratam de sanções aduaneiras e sim sanções administrativas, para os quais o Tribunal tem aplicado o art. 71 do CP, por analogia, o que só robustece a posição aqui defendida, já que ampara na expressa previsão do art. 99 do Decreto-Lei n. 37/66.

[14] Nesse diapasão: Acórdão Carf nº 3001-000.417, relatoria do Conselheiro Orlando Rutigliani Berri.

Autores

  • é advogado tributarista e aduanerista, sócio do Daniel & Diniz Advocacia, ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento, professor de Direito Tributário, Direito Aduaneiro, Processo Tributário e Processo Civil, doutorando em Processo Civil pela USP, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet e pesquisador do NEF da FGV-SP e do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

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