Opinião

Como calcular os limites de dispensa de licitação em razão do valor?

Autores

  • Carolina Zancaner Zockun

    é professora de Direito Administrativo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) pós-doutora em Democracia e Direitos Humanos pelo Ius Gentium Conimbrigae – Centro de Direito Humanos (IGC/CDH) da Universidade de Coimbra (UC) mestre e doutora em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e procuradora da Fazenda Nacional.

  • Flávio Garcia Cabral

    é pós-doutorado em Direito pela PUC-PR doutor em Direito Administrativo pela PUC-SP professor e procurador da Fazenda Nacional.

14 de novembro de 2023, 17h11

Repete-se, com frequência, a afirmação de que a regra é a exigência de procedimento licitatório prévio para as contratações públicas. Isso decorre da previsão do artigo 37, inciso XXI, da Constituição, sendo que a contratação sem licitação seria a exceção, somente autorizada em situações específicas pelo legislador.

No entanto, em termos de volume de recursos, em anos anteriores, ao menos na Administração Pública Federal, nota-se uma preponderância nas contratações diretas [1]. Dentre essas modalidades, a que se mostra de maior ocorrência prática é a dispensa em razão do valor, anteriormente prevista no artigo 24, incisos I e II, da Lei nº 8.666, de 1993.

Justamente em relação à dispensa em razão do valor, observa-se uma mudança de sua sistemática trazida pela Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, atualmente regulamentada no âmbito federal, nesta matéria, pela Instrução Normativa Seges/ME nº 67, de 8 de julho de 2021.

De fato, a nova Lei de Licitações e Contratos criou uma nova metodologia para a contratação direta em razão do valor, por meio da realização de uma mini-competição no próprio processo de dispensa, sendo apelidada, por diversos órgãos, como “preguinho”, em referência à ampla disputa ocorrida no pregão.

O artigo 75, I e II, bem como §3º, da Lei nº 14.133/21, estabelece o procedimento eletrônico para a dispensa:

“Artigo 75. É dispensável a licitação:
I – para contratação que envolva valores inferiores a R$ 100.000,00 [2], no caso de obras e serviços de engenharia ou de serviços de manutenção de veículos automotores;
II – para contratação que envolva valores inferiores a R$ 50.000,00 [3], no caso de outros serviços e compras; (…)
§3º As contratações de que tratam os incisos I e II do caput deste artigo serão preferencialmente precedidas de divulgação de aviso em sítio eletrônico oficial, pelo prazo mínimo de três dias úteis, com a especificação do objeto pretendido e com a manifestação de interesse da Administração em obter propostas adicionais de eventuais interessados, devendo ser selecionada a proposta mais vantajosa.”

Quanto ao parágrafo 3º da novel legislação, Flávio Garcia Cabra l[4] esclarece que “a premissa do parágrafo é permitir que, mesmo não havendo uma licitação, possa haver uma concorrência na contratação por dispensa, de modo a permitir que a Administração realize a contratação direta mais vantajosa”.

No mesmo sentido, Carolina Zancaner Zockun e Luciana Leal Brayner averbam que a Lei nº 14.133/21 “definiu um procedimento simplificado que possibilite, às contratações realizadas por meio da dispensa de licitação por baixo valor, o recebimento de propostas para o objeto pretendido, possibilitando aos particulares a manifestação de seu interesse na contratação e à Administração a seleção da proposta mais vantajosa entre aquelas recebidas” [5].

A forma de verificação dos limites previstos nos incisos I e II do artigo 75 é fixada no §1º do mesmo artigo, que dispõe:

“§1º Para fins de aferição dos valores que atendam aos limites referidos nos incisos I e II do caput deste artigo, deverão ser observados:
I – o somatório do que for despendido no exercício financeiro pela respectiva unidade gestora;
II – o somatório da despesa realizada com objetos de mesma natureza, entendidos como tais aqueles relativos a contratações no mesmo ramo de atividade.

Novamente, valemo-nos das lições de Flávio Garcia Cabral [6] para compreender que “o parágrafo em voga busca, portanto, traçar alguns limites sobre como se considerar os montantes contratados para fins de dispensa, estipulando critérios limitadores sob a perspectiva global das contratações. Os dois incisos subsequentes, que devem ser considerados conjuntamente, traçam esses balizamentos em razão do montante global contratado pela Administração em razão dos possíveis fracionamentos”.

Deste modo, os incisos I e II do parágrafo 1º deverão incidir conjuntamente para a aferição dos limites legais de dispensa, tanto no que tange ao marco temporal (exercício financeiro), quanto no tocante ao aspecto qualitativo (ramo de atividade).

Pois bem, a questão do que deve ser entendido como “ramo de atividade” foi esclarecida pela In Seges nº 67/2021 [7], com as alterações promovidas pela IN Seges/MGI nº 8, de 23 de março de 2023, que, em seu artigo 4º, §2º, fixou:

“§2º Considera-se ramo de atividade a linha de fornecimento registrada pelo fornecedor quando do seu cadastramento no Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores (Sicaf), vinculada: (Redação dada pela IN Seges/MGI nº 8 de 2023).

I – à classe de materiais, utilizando o Padrão Descritivo de Materiais (PDM) do Sistema de Catalogação de Material do Governo federal; ou
II – à descrição dos serviços ou das obras, constante do Sistema de Catalogação de Serviços ou de Obras do Governo federal”.

Pela leitura do dispositivo, vê-se que, no tocante a materiais, a IN SEGES nº 67/2021 expressamente atrela o limite para a utilização da dispensa ao Padrão Descritivo de Materiais (PDM) constante do Catmat, ao passo que, em relação aos serviços, a vinculação se dá em relação à descrição contida no Catser.

Para espancar quaisquer dúvidas quanto à utilização do PDM e da descrição dos serviços, o MGI fez uma webinar, em 3 de abril de 2023 [8], que, entre os minutos 1h27m00s e 1h30m01s, destaca que para a aferição dos limites de dispensa devem ser utilizados os seguintes parâmetros: 1) o PDM do Catmat para materiais e 2) a descrição de serviços do Catser para serviços e obras.

Acrescente-se, outrossim, que o Comunicado nº 02/2023 emitido pela Seges/MGI, ainda que não direcionado precisamente às contratações diretas, recomendou aos órgãos e entidades que utilizam os Sistema de Compras do Governo Federal, dentre outros pontos, que, quando da instrução dos seus processos de compras, “não utilizem códigos genéricos do Catálogo de Bens e Serviços do sistema Compras.gov.br”. Em igual sentido é o teor da Recomendação nº 36 da mesma Secretaria de Gestão [9], exarada no ano de 2022, que recomenda aos órgãos e as entidades da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional:

“(…) quando do cadastramento de suas contratações no Sistema de Compras do Governo Federal, o Compras.gov.br, utilizar o material no Padrão Descritivo de Materiais (PDM) pertinente e o código específico que descreva o item, sendo admissível o emprego de código genérico somente de forma excepcional, nas hipóteses em que não houver código específico adequado/compatível com o objeto da contratação e restar caracterizada a impossibilidade momentânea de atendimento ao pedido de catalogação de novo item que atenda à demanda concreta”.

Em suma, as diversas orientações da Administração Pública Federal, mesmo que não voltadas especificamente às contratações diretas, são no sentido de se evitar a utilização de códigos genéricos nos catálogos de compra, cabendo aplicar o código mais específico pertinente ao objeto a ser contratado.

Desta forma, cada PDM pode dar ensejo a uma dispensa diferente, desatrelada da classe em que estiver inserida, pois este foi o critério erigido para o cômputo do limite da dispensa.

Destaque-se que tal parâmetro está em consonância com o dispositivo legal e, segundo informações da Seges veiculadas na mesma Webinar, trata-se de critério cujo controle para fins de fracionamento é de fácil identificação e permite maior transparência para as dispensas eletrônicas.

Ademais, não se pode olvidar — repita-se — que a dispensa da Lei nº 14.133, de 2021, prestigia não apenas a celeridade, mas também o princípio da competitividade, possibilitando que interessados concorram entre si por — no mínimo — três dias úteis para que o detentor do menor preço possa vir a ser contratado pela Administração.

Com efeito, como alerta Felipe Boselli [10], “entra aqui a ampliação da divulgação das dispensas, que poderiam ser cotadas com todas as empresas do cadastro de fornecedores, maximizando a disputa, sobretudo se relembrarmos que, na Lei nº14.133/2021, esse banco de fornecedores será unificado nos termos do artigo 87, com um único registro cadastral para toda a Administração Pública. Nesse sentido, já temos o artigo 7º da Instrução Normativa Seges/ME nº 67/2021, que determina o envio automático da dispensa a todos os fornecedores cadastrados naquela linha de fornecimento no Sicaf”.

Deveras, o aludido artigo 7º assegura que “o procedimento será divulgado no Comprasnet 4.0 e no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), e encaminhado automaticamente aos fornecedores registrados no Sistema de Registro Cadastral Unificado (Sicaf), por mensagem eletrônica, na correspondente linha de fornecimento que pretende atender”.

Não há, desse modo, qualquer forma de direcionamento, como ocorria na dispensa prevista na Lei nº 8.666/93, que indicava o fornecedor sem que houvesse possibilidade de competição.

Desta feita, não há porque se restringir o uso da dispensa na Lei 14.133/21 ao mínimo possível, agrupando toda a sorte de produtos e serviços sob a mesma rubrica.

Para fins de exemplificação, consideremos a hipótese de aquisição de canetas esferográficas e lápis preto, que pertencem a uma mesma CLASSE 7510 — Artigos para escritório, mas possuem códigos de Padrão Descritivo de Material diferentes (PDM 99 — caneta esferográfica/ PDM 12 — lápis preto). Nesta hipótese, para fins de cálculo do limite de despesa, os valores de dispêndio devem ser computados separadamente, já que possuem PDMs diferentes.

Neste mesmo sentido, considerado para o limite de despesa no caso de contratação de serviços, cite-se o exemplo hipotético de contratação de transporte de mudança local e transporte de mudança intermunicipal, que pertencem ao mesmo grupo 643 — serviço de transporte rodoviário, mas possuem códigos e descrição diferentes (código 3212 – mudança local e 22772 — mudança intermunicipal). Igualmente, consoante buscamos demonstrar, tais serviços são computados, para fins de dispêndio, isoladamente, cabendo, pois, duas dispensas no valor de R$ 57.208,33 para cada um dos serviços descritos.

De fato, a mens legis é no sentido de prestigiar a celeridade e a eficiência concomitantemente, admitindo-se o uso da dispensa eletrônica todas as vezes em que um órgão necessitar de um produto ou serviço, pelo período de um exercício financeiro (considerado de 01º de janeiro a 31 de dezembro do mesmo ano), desde que não se extrapole os limites legais, apurados conforme os parâmetros previstos pela In Seges nº 67/2021.


[1] No ano de 2021, por exemplo, as contratações por dispensa e inexigibilidade feitas pela Administração Pública corresponderam a 56% de todas as contratações, em termos de valor dos contratos (Disponível em: https://portaldatransparencia.gov.br/licitacoes?ano=2023).

[2] Consoante Decreto nº 11.317, de 29 de dezembro de 2022, o valor atualizado constante do artigo 75, I, da Lei nº 14.133/21 é de R$ 114.416,65.

[3] Consoante Decreto nº 11.317, de 29 de dezembro de 2022, o valor atualizado constante do artigo 75, II, da Lei nº 14.133/21 é de R$ 57.208,33.

[4] CABRAL, Flávio Garcia. In SARAI, Leandro (org). Tratado da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativo comentada por advogados públicos. 3ª Ed. São Paulo, Editora JusPodivm, 2023, p. 1044.

[5] ZOCKUN, Carolina Zancaner; BRAYNER, Luciana Leal. In ZOCKUN, Carolina Zancaner; CABRAL, Flávio Garcia; ANTINARELLI, Mônica Éllen Pinto Bezerra (orgs). Manual Prático de Contratações Públicas. Londrina, Editora Thoth, 2023, p. 455.

[6] CABRAL, Flávio Garcia. In SARAI, Leandro (org). Tratado da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativo comentada por advogados públicos. 3ª Ed. São Paulo, Editora JusPodivm, 2023, p. 1040.

[7] Inicialmente a referida IN utilizava como parâmetro para a conceituação do mesmo ramo de atividade os códigos constantes da subclasse da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (Cnae), tendo sido alterado esse critério por meio da In Seges/MGI nº 8/2023.

[8] Disponível em: https://www.youtube.com/results?search_query=novidades+no+compras

[9] Disponível em: https://www.gov.br/compras/pt-br/agente-publico/orientacoes-e-procedimentos/36-recomendacao-sobre-uso-de-codigo-especifico-do-catalogo-de-bens-e-servicos-catmat-catser-2013-acordao-2831-2021-tcu-plenario

[10] BOSELLI, Felipe. In: FORTINI, Cristiana; OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de; CAMARÃO, Tatiana (Coords). Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Volume 2. Editora Fórum, Belo Horizonte, 2022, p. 110.

Autores

  • é professora de Direito Administrativo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pós-doutora em Democracia e Direitos Humanos pelo Ius Gentium Conimbrigae – Centro de Direito Humanos (IGC/CDH) da Universidade de Coimbra (UC), mestre e doutora em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e procuradora da Fazenda Nacional.

  • é pós-doutorado em Direito pela PUCPR, doutor em Direito Administrativo pela PUC-SP, professor e procurador da Fazenda Nacional.

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