Opinião

Artigo 14-A do CPP é garantia, e não privilégio, a agentes da segurança

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14 de novembro de 2023, 7h00

Desde 2020 está em vigor o artigo 14-A do Código de Processo Penal (CPP), trazendo a possibilidade de indicação de defensor na fase preliminar de investigação de fatos relacionados ao uso da força letal praticados no exercício profissional por membros das forças de segurança pública, inclusive, quando, em um primeiro olhar, se tratar de casos envolvendo excludentes de ilicitude elencadas, pois, no artigo 23 do Código Penal.

As disposições que sintetizam a introdução acima estão assim descritas no CPP:

Art. 14-A. Nos casos em que servidores vinculados às instituições dispostas no art. 144 da Constituição Federal figurarem como investigados em inquéritos policiais, inquéritos policiais militares e demais procedimentos extrajudiciais, cujo objeto for a investigação de fatos relacionados ao uso da força letal praticados no exercício profissional, de forma consumada ou tentada, incluindo as situações dispostas no art. 23 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), o indiciado poderá constituir defensor.

§ 1º. Para os casos previstos no caput deste artigo, o investigado deverá ser citado da instauração do procedimento investigatório, podendo constituir defensor no prazo de até 48 (quarenta e oito) horas a contar do recebimento da citação.

§ 2º. Esgotado o prazo disposto no § 1º deste artigo com ausência de nomeação de defensor pelo investigado, a autoridade responsável pela investigação deverá intimar a instituição a que estava vinculado o investigado à época da ocorrência dos fatos, para que essa, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, indique defensor para a representação do investigado.

Veja-se, pois, que o mencionado dispositivo é destinado a investigações nas quais os servidores fazem parte do rol de instituições dispostas no artigo 144 da Constituição, quais sejam: polícia federal, polícias rodoviária e ferroviária federais, polícia civil, polícia militar e corpos de bombeiros militares, polícias penais federal, distrital  e estaduais e, ainda, às Forças Armadas (artigo 124 da CF), desde que os fatos investigados digam respeito à aplicabilidade da Garantia da Lei e da Ordem.

Na prática, qualquer pessoa investigada pode constituir advogado para acompanhar a investigação, entretanto a esses servidores destinatários do artigo 14-A do CPP é cogente a formalidade de notificação e, sucessivamente, do órgão ao qual faz parte, para a indicação de defensor. Essa ciência erige-se como efetiva garantia e, por consequência, a nosso ver, a inobservância dessa formalidade deve gerar nulidade dos atos supervenientes.

Apesar dos posicionamentos contrários indicando que o descumprimento dessa norma é mera irregularidade [1], discordamos, pois se trata de nulidade com seu prejuízo intrínseco, na medida em que a  utilização do termo “deverá” no mencionado dispositivo demonstra que a cientificação do investigado não se revela em mera faculdade, tratando-se de verdadeira obrigação do órgão de persecução em dar-lhe ciência do transcurso do procedimento, de modo a possibilitar a estruturação de sua defesa, mesmo que em sede policial, e a contribuição com os esclarecimentos necessários.

Trata-se, em verdade, de ato essencial do inquérito policial, inafastável por força da lei, consignando-se a necessidade de conceder ao investigado a possibilidade de acompanhar desde o princípio a investigação criminal.

Nesse exato sentido, preleciona Rogério Sanches Cunha[2]:

O novel artigo assegura, na verdade, direito de acompanhar ab initio as investigações, podendo a defesa fazer requerimentos que, como qualquer outro, serão apreciados pela autoridade que preside o procedimento oficial. […] O não chamamento do indigitado para acompanhar a investigação gera nulidade dos atos supervenientes.

O prejuízo é ainda mais palpável quando, por exemplo, algumas diligências que no início da investigação poderiam ter sido requeridas e não mais se é possível a realização pelo decurso do tempo ou impossibilidade técnica, causam verdadeiros prejuízos ao investigado. Vejamos, por exemplo, os casos em que não seria mais possível o exame residuográfico na mão de todos os policiais envolvidos nos fatos, o que possibilitaria a identificação dos agentes públicos que teriam, de fato, se envolvido no uso de força letal, o que poderia ser sugerido caso existisse defensor desde o início da investigação; a perícia no local do crime e várias outras diligências que podem passar ao largo da investigação e, sendo do interesse defensivo para arrimar prova negativa, poderia ser oportunizada com o atendimento aos dispositivos legais em tela. Por isso mais ainda evidente que se trata de nulidade e não de mera irregularidade.

Em outro aspecto, agora procedimental, além do prazo de 48 horas para a constituição do defensor após a citação, entende-se que o legislador utilizou inapropriadamente o termo “citação”, devendo-se, pois, adequá-lo à dinâmica intensa de uma investigação, interpretando-o como “ciência” do investigado ao procedimento instaurado, possibilitando, assim, o acompanhamento das investigações, não sendo tal ato determinado pela autoridade judicial como ocorre em processos judiciais, mas sim pela autoridade responsável pela investigação (delegado ou membro do Ministério Público) [3]. Perfeitamente possível, nesta linha, que essa ciência se dê pelo meio mais expedito e efetivo de comunicação, tal como o envio de notificação postal ou de forma pessoal, e-mail com confirmação de recebimento ou leitura, whatsapp ou outro aplicativo que possa certificar com segurança a ciência do investigado.

Em caso de inércia na referida constituição de defesa, o próprio parágrafo 2º do artigo 14-A do CPP resolve a questão ao aduzir que a autoridade responsável pela investigação deverá intimar a instituição a qual pertence o investigado para que, no mesmo prazo de 48 horas, indique defensor para representá-lo, o que reforça, ainda mais, a ideia de que a ausência dessa formalidade não é mera irregularidade, posto que, se assim fosse, o legislador não insistiria no esgotamento dessa hipótese, tal como ocorre com o esgotamento dos meios de cientificação de um processo criminal (citação pessoal, por edital etc.).

É sempre importante lembrar que à primeira vista parece que o artigo 14-A burocratize sobremaneira a fase preliminar de investigação, entretanto, trata-se de garantia expressamente disposta na lei infraconstitucional e consentânea com os princípios constitucionais da ampla defesa e o contraditório, o que não impede, inclusive, que a investigação preserve, em contrapartida, todos os seus mecanismos de eficiência investigativa, como a restrição de acesso a diligências que estejam em andamento e ainda não documentadas nos autos, quando houver risco de comprometimento de sua finalidade. Nosso posicionamento, em epítome, é que o artigo 14-A do CPP se trata de importante dispositivo legal que vem sendo solenemente ignorado na prática investigativa e que a sua inobservância, quando se tiver ampla discussão nos tribunais superiores, há possibilidade de ferir, corretamente, investigações que deixaram de observar aludido dispositivo, haja vista a supressão de essencial ato da investigação e garantia do investigado.


[1] HOFFMANN, Henrique; SOUSA COSTA, Adriano; FONTES, Eduardo; e SILVA, Alberto Gomes. Defesa obrigatória e citação dos policiais no inquérito Policial. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-ago-04/academia-policia-defesa-obrigatoria-citacao-policiais-inquerito-policial. Acesso em: 31 de outubro de 2023.

[2] Cunha, Rogério Sanches. Pacote Anticrime – Lei 13.964/2019: Comentários às alterações no CP. CPP e

LEP / Rogério Sanches Cunha – Salvador: Editora Juspodivm, 2020.

[3] MARINHO JUNIOR, Inezil Penna. Processo penal nos crimes federais. São Paulo: Editora Juspodivum, 2022. p. 78.

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