Opinião

Entre o passado e o futuro: os novos paradigmas do Sistema Tributário Nacional

Autor

  • Sergio André Rocha

    é professor de Direito Financeiro e Tributário da Uerj livre-docente em Direito Tributário pela USP diretor vice-presidente da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro) advogado e parecerista.

13 de novembro de 2023, 8h00

Nenhum assunto econômico teve mais destaque na semana que passou do que a aprovação da reforma tributária (do consumo) pelo Senado. Após a votação do texto, o clima era o do dia seguinte a uma grande final de campeonato: para os torcedores da reforma, era momento de celebração efusiva, movida a previsões de que a aprovação da PEC 45 tornará a promessa chamada Brasil em realidade, aos brados de que o IBS e a CBS representam um momento de inflexão equivalente ao Plano Real. Para os opositores da reforma, a votação no Senado era uma verdadeira sentença condenando o Brasil a um futuro de incerteza, que quebrará os entes federativos e os contribuintes, levando a um cenário de terra arrasada digno dos filmes Mad Max.

Vimos insistindo que reformas da legislação tributária são eventos “não binários”. Elas não são absolutamente boas, nem absolutamente más. Em alguns casos elas simplificam, em outros criam novas complexidades. Para alguns, representam um alívio da carga tributária, para outros, um aumento. A reforma — certamente — extinguirá alguns focos de litígios, ao mesmo tempo que criará outros, alguns que atualmente sequer podem ser antecipados.

Spacca

Vê-se, assim, que acreditamos que reformas tributárias são ambivalentes, no sentido de que encerram valores e consequências divergentes e não raro contrapostos. De toda maneira, acredito que se projetarmos os efeitos da PEC 45 para além de 2033 eles parecem ser mais positivos do que negativos.

Além de serem “não binárias”, reformas tributárias são concorrenciais. São poucos os que se dedicam ao tema sem vieses ou interesses, mais ou menos públicos. Os entes federativos concorrem entre si para ficarem com uma maior parcela da arrecadação, da mesma maneira que os sujeitos passivos concorrem para ficar com a menor parte da carga tributária o possível.

Esse traço ficou bem evidente na tramitação da PEC 45 na Câmara dos Deputados e no Senado. Havia consciência de que cada regime favorecido, cada alíquota reduzida, geraria um aumento da carga tributária para todos aqueles não agraciados com um tratamento preferencial. Contudo, em momento algum o prognóstico de um aumento generalizado da carga tributária desincentivou a incansável batalha por tratamentos tributários diferenciados.

Nesse contexto, não é surpreendente que o texto aprovado pelo Senado encerre avanços e retrocessos, esclarecimentos e contradições. Vamos tentar explorar neste breve artigo alguns pontos de atenção que vemos na versão atual da PEC 45.

PEC 45: um paradoxo
Uma das características do sistema tributário nacional é a sua hiperconstitucionalização. Apontada por alguns como uma das virtudes do modelo brasileiro, e acusada por outros — como  nós — de ser uma das causas da quantidade brutal de litígios tributários no Brasil, a profusão de dispositivos constitucionais tributários distingue a Constituição brasileira de outros diplomas constitucionais.

De um lado, a PEC 45 quintuplica a aposta na constitucionalização da tributação. O texto da Constituição pós-PEC 45 é tão exótico nesse particular que chega a incluir um dispositivo estabelecendo que sucos naturais sem adição de açúcares e conservantes se incluem entre os alimentos previstos no inciso VIII do § 1º do artigo 9º da PEC 45 (§ 11 deste mesmo artigo 9º). Se a hiperconstitucionalização era uma doença, com a PEC 45 ela parece ter virado uma pandemia.

Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que a PEC 45 multiplicou substancialmente os dispositivos constitucionais tributários, também delegou largamente a disciplina de temas centrais do novo regime de tributação do consumo para a disciplina do legislador infraconstitucional.

Essa mistura de um extenso e detalhado regramento constitucional, com um amplo campo de atuação do legislador infraconstitucional pode resultar em um significativo contencioso. Para uma proposta de emenda que inclui na Constituição o dito princípio da simplicidade (artigo 145, § 3º) — seja lá o que ele signifique –, é inegável a complexidade interpretativa do novo texto constitucional, a qual tende a ser potencializada conforme a reforma venha a ser efetivamente implementada em nível infraconstitucional.

Boa parte dos problemas decorrentes dessa nova onda de constitucionalização do Direito Tributário não tem mais como ser revertida e só será verificada quando o novo modelo estiver completo e operacional. Nessa fase, quando os economistas com suas projeções saírem de cena e os advogados assumirem o palco, é que teremos a exata noção do quanto de simplificação e redução de litígios a reforma realmente entregará.

Mudança dos paradigmas do Sistema Tributário Nacional
Um de nossos artigos recentes sobre reforma tributária tratou dos princípios elencados no § 3º do artigo 145 da Constituição, segundo a PEC 45 (aqui). Naquela ocasião, chamamos a atenção para o que nos parece ser equívoco do texto aprovado tanto pela Câmara quanto pelo Senado. Este § 3º peca pela falta de equilíbrio. Fala em justiça tributária sem mencionar a segurança jurídica. Dois polos que devem ser prestigiados, mas que não podem se sobrepor.

Esse debate pode parecer teórico aos olhos de um economista ou jornalista cobrindo esses eventos históricos. Pode parecer que é algo irrelevante, filosófico. Contudo, qualquer advogado que lide com autos de infração em casos de planejamento tributário, por exemplo, compreende bem a utilização argumentativa de princípios e valores constitucionais. Agora temos uma constituição que expressamente enuncia o princípio da justiça tributária e que nada fala, de forma expressa, sobre segurança jurídica. A própria noção de justiça tributária é vaga e ambígua, e certamente demandará intenso trabalho de interpretação.

Além da falta de equilíbrio, esse dispositivo criou princípios sem raiz no Direito Tributário brasileiro. O que seria o princípio da simplicidade? E pior, que raios é o princípio da defesa do meio ambiente como princípio tributário?

Os efeitos desse § 3º do artigo 145 da Constituição sobre a interpretação da legislação tributária — seja pelo que ele trouxe, seja pelo que deixou de trazer — somente saberemos também quando o novo modelo estiver plenamente operacional.

A mutação do dito “imposto seletivo”
Escrevi, nesta coluna Justiça Tributária da ConJur, um artigo dedicado exclusivamente ao chamado Imposto Seletivo (aqui). Dois aspectos para os quais chamei a atenção naquele texto estão refletidos na nova redação do § 6º do artigo 153 da Constituição.

O primeiro é que não se trata de um imposto seletivo, mas de um imposto extrafiscal. Com a redação do § 6º temos, pela primeira vez, a Constituição estabelecendo que um imposto terá finalidade extrafiscal.

Essa alteração não é sem consequências. Nos últimos anos, mais de uma vez surgiram controvérsias sobre o manejo de tributos como o IOF e o Imposto de Exportação, por exemplo, com finalidades arrecadatórias. Ao estabelecer que o novo imposto federal terá finalidade extrafiscal, este § 6º, segundo vemos, fecha as portas para a sua utilização com finalidade exclusivamente fiscal.

Ora, se a finalidade extrafiscal é obrigatória, falta ao § 6º um requisito fundamental: a obrigação de inclusão, na lei instituidora do imposto, do objetivo visado com a sua cobrança. Como comentamos anteriormente, este é o primeiro imposto declaradamente extrafiscal que temos na Constituição Federal. As consequências dessa característica terão que ser verificadas conforme ele venha a ser instituído. O controle de sua compatibilidade constitucional dependerá, em larga medida, da compreensão dos seus objetivos indutores ou regulatórios.

Outro problema deste imposto extrafiscal parece ser a sua materialidade. Como já apontamos, em plena era digital, o inciso VIII do artigo 153 nada fala sobre intangíveis, referindo-se à produção, extração, comercialização ou importação de “bens e serviços”. Cada um desses vocábulos será interpretado, definido e, a depender do texto da lei (ou leis?) instituidora, provavelmente assistiremos a disputas de fundo constitucional sobre fronteiras da competência atribuída à União Federal.

As alterações veiculadas no Senado também trouxeram contradição para dentro deste novo imposto. Por que ele era apontado como um imposto seletivo? Porque, no modelo original da PEC 45, teríamos uma alíquota única para o IBS sem nenhum regime diferenciado. Assim, esse imposto cumpriria o papel de permitir incidências distintas sobre algumas atividades com externalidades ambientais e de saúde negativas.

A tramitação da PEC 45 no Congresso implodiu a lógica original do IBS. A profusão de tratamentos diferenciados não só superou a finalidade inicial da nova competência prevista no inciso VIII do artigo 155 como resultou na assunção declarada de sua finalidade extrafiscal. A criação de inúmeros tratamentos diferenciados também trouxe outra necessidade: a de compensação pelas perdas de arrecadação.

Somente a finalidade de arrecadar justifica a inclusão da extração de bens na materialidade do Imposto Extrafiscal, já maculando, na própria Constituição, a sua racionalidade estrutural.

É óbvio que as indústrias extrativas são potencialmente danosas ao meio-ambiente. Contudo, a incidência no momento da extração não terá qualquer consequência regulatória ou indutora. É um contrassenso absurdo imaginar que haveria o intento de se desincentivar aquele que é um dos principais setores econômicos do país. Ela tem, isso sim, o bom e velho objetivo de arrecadar, muito provavelmente para compensar as benesses concedidas a outros setores econômicos no campo do IBS/CBS.

Outro aspecto que tratamos no artigo a que nos referimos acima (aqui), e que foi alterado — para melhor — no Senado foi a exclusão de dispositivos que faziam, deste Imposto Extrafiscal, uma exceção às regras de anterioridade e legalidade. Considerando os propósitos deste tributo — impactar externalidades negativas à saúde e ao meio-ambiente — não nos parece que sua alteração requeira modificações urgentes que demandem uma exceção ao regime constitucional geral dos impostos.

Imposto Sobre Bens e Serviços
O IBS certamente ocupará nossas atenções de forma significativa nos próximos meses e anos. Aqui também identificamos diversas situações em que a nova redação constitucional vai trazer desafios interpretativos.

Logo no parágrafo 1º do artigo 156-A, temos a previsão de que o IBS será informado pelo princípio da neutralidade. Fica realmente a dúvida sobre a vantagem dessa previsão. A própria palavra princípio é polissêmica. Se encamparmos uma das teorias predominantes, de que princípio é norma finalística que estabelece um estado de coisas a ser alcançado, considerando as limitações fáticas e jurídicas, a noção de princípio traz, em si mesma, a possibilidade de que tal finalidade não seja alcançada. Ou seja, o princípio da neutralidade conviveria com a possibilidade de falta de neutralidade.

Em relação à materialidade, reiteramos comentários que já fizemos em outras oportunidades. O que são “operações”?

Imaginemos, por exemplo, um licenciamento de software. Na legislação atual, principalmente após a manifestação do Supremo Tribunal Federal, o licenciamento de software é considerado um serviço para fins do ISS (sobre o tema, da perspectiva da tributação federal, ver nosso artigo aqui).

Contudo, no modelo do IBS que estamos adotando o licenciamento de software parece ser tratado como uma “operação com bens imateriais”. Será isso mesmo? E se for, um licenciamento de software é uma “operação”?

Veja-se que o § 8º do artigo 156-A diz expressamente que “a lei complementar de que trata o caput poderá estabelecer o conceito de operações com serviços, seu conteúdo e alcance, admitida essa definição para qualquer operação que não seja classificada como operação com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos”.

O texto é um tanto barroco, mas o que se pretendeu estabelecer é a natureza residual do conceito “operações com serviços”, como alguns autores já defendiam em relação ao ISS à época da Emenda Constitucional nº 18/1965. Naquele tempo, já se sustentava a natureza residual do ISS em relação ao ICM.

Porém, não se pode perder a atenção aos detalhes. Ressalto, uma vez mais, que, promulgada a Emenda Constitucional, o texto deixará de ser trabalhado por economistas e assessores políticos e passará a ser analisado a cada vírgula por advogados. Em nenhum momento, o novo texto constitucional estabelece que a lei complementar definirá “operações”. Estabelece-se que a lei complementar definirá operações com serviços, e que operações que não forem consideradas operações com bens serão consideradas operações com serviços. Veja-se: a incidência depende, sempre, de se estar diante de uma operação.

Observa-se que embora a PEC 45 não tenha se preocupado com a quantidade de novas disposições tributárias na Constituição, acabou preferindo não cuidar de algumas questões que talvez tivessem merecido delimitação constitucional. Vemos um exemplo disso logo nos incisos II e III do artigo 156-A. O que é a importação de um bem imaterial? Ou a sua exportação? O que é a importação de um serviço? Ou a sua exportação? Atualmente temos critérios variados e dissonantes sobre o tema nas legislações do ISS e do PIS/Cofins. Vai ser interessante acompanhar o que a lei complementar do IBS/CBS estabelecerá em relação a esses temas.

Identificamos, aqui, o paradoxo que comentamos acima. De um lado, um reforço sem igual da hiperconstitucionalização — só vermos que o “ovo” foi parar na Constituição (artigo 9º, § 3º, II, “b”, da PEC 45). De outro, uma crença — talvez ingênua — de que mesmo com tantos dispositivos constitucionais tributários novos, o legislador complementar terá larga amplitude regulamentar em relação a eles. Embora sejamos defensores da ressignificação do papel do legislador complementar, essa não é nossa tradição jurídica, o que pode levar diversos dos novos dispositivos constitucionais — e das futuras leis — aos tribunais.

Até Sujeição Passiva foi parar na Constituição …

A patológica hiperconstitucionalização do Direito Tributário é tão, mas tão arraigada que a sujeição passiva do IBS foi parar no texto constitucional, no § 3º do artigo 156-A, segundo o qual “lei complementar poderá definir como sujeito passivo do imposto a pessoa que concorrer para a sua realização, a execução ou o pagamento da operação, ainda que residente ou domiciliada no exterior”.

É estranho, para dizer o mínimo, termos uma atribuição de competência para a elaboração de uma regra de responsabilidade tributária incluída no artigo 156-A. A disciplina da sujeição passiva da obrigação tributária já é matéria reservada à lei complementar pelo artigo 146 da Constituição Federal. Ao se inserir uma regra atributiva de competência na Constituição, ao invés de se dar competência ao legislador complementar — que ele já tinha — se está, em verdade, limitando o seu campo de atuação, que agora terá que observar os limites impostos pela Lei Maior — que serão definidos pelo intérprete posteriormente.

A atribuição de sujeição passiva a não residentes é um capítulo à parte. Prática que se popularizou no mundo com a criação dos DSTs (digital service taxes), estabelece um dever que as autoridades fiscais brasileiras não teriam capacidade de tornar eficaz. Esperamos que se tenha muito cuidado para não embarcarmos numa aventura tributária Era claramente o que se passava no Projeto de Lei nº 3.887/2020, que instituía a Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços — CBS (artigo 5º). Neste caso se atribuía uma responsabilidade tributária sem qualquer consequência ou possibilidade de efetivação. Basicamente tínhamos, ali, o primeiro caso de dever tributário voluntário, que poderia ser cumprido pelo não residente, ou não.

Processo Administrativo Fiscal
Sabemos que o IBS e a CBS estão sendo criados para serem gêmeos quase idênticos (ver o artigo 149-B e o 195, § 16). Idealmente, a diferença estará apenas nas alíquotas. Uma questão relevante a ser resolvida, então, relaciona-se aos mecanismos de solução de controvérsias. Nesse particular, vemos como tímida a PEC 45. O ideal seria a unificação do processo administrativo dos dois tributos no Conselho Federativo. Consultas fiscais e revisões de autos de infração deveriam ser decididas pelo mesmo órgão.

Aqui, sim, seria interessante que o modelo tivesse sido posto na própria Constituição, já que teríamos que prever a competência de um órgão — com o respectivo desenho institucional, como a participação de autoridades federais e subnacionais — para a solução de controvérsias.

A PEC 45 não foi completamente silente sobre a matéria. Segundo o § 8º do artigo 156-B, “lei complementar poderá prever a integração do contencioso administrativo relativo aos tributos previstos nos artigos 156-A e 195, V”.

Essa delegação ao legislador complementar nos parece insuficiente. Em primeiro lugar, não alcançaria as soluções de consulta. De outra parte, essa unificação não deveria ser uma “possibilidade”, deveria ser uma obrigação. É imprescindível para a racionalidade desse modelo dual que o mesmo órgão seja responsável pela solução de controvérsias de ambos os tributos — tarefa mais difícil de ser realizada no âmbito das primeiras instâncias judiciais.

Comentários finais
Há sempre uma distância entre o idealizado e o concretizado. Há uma distância monumental entre os textos da PEC 45 original e da PEC 110 e esse aprovado pelo Senado. O processo político tem seus próprios rumos. Esse § 3º do artigo 145 mesmo não parece jamais ter sido cogitado pelos idealizadores das propostas originais. Além de toda a dificuldade imposta pela tramitação da PEC, o dia seguinte à promulgação da emenda iniciará uma nova fase, em que os cálculos no Excel e as falas sobre padrões internacionais terão cada vez menos relevância. Sairemos do campo do desenho político para as trincheiras da interpretação jurídica.

Desde já, vemos que essa mudança constitucional, com todas as alterações infraconstitucionais por vir, exigirão grande responsabilidade dos acadêmicos e acadêmicas da tributação. Esse momento histórico demandará muito da academia. É óbvio que não é nosso papel corroborar e chancelar quaisquer desvios legislativos, sejam constitucionais, sejam infraconstitucionais. Neste texto mesmo apontei alguns. Mas nosso propósito tem que ser contribuir para a melhoria do sistema, não com a perpetuação do caos tributário e da insegurança.

Autores

  • é professor de Direito Financeiro e Tributário da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), livre-docente em Direito Tributário pela USP (Universidade de São Paulo), diretor vice-presidente da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro), advogado e parecerista.

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