Opinião

O fatiamento da PEC/45 na Câmara é inadmissível

Autor

  • Gustavo Brigagão

    é sócio fundador do escritório Brigagão Duque Estrada – Advogados presidente nacional do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa) presidente honorário da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) vice-presidente do Fórum Permanente de Direito Tributário da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro former member of the Executive Committee of The International Fiscal Association (IFA) membro do Conselho de Altos Estudos de Finanças e Tributação (Caeft) da Associação Comercial de São Paulo membro do Conselho de Administração da Câmara Britânica (Britcham) diretor da Federação das Câmaras de Comércio do Exterior (FCCE) e professor na pós-graduação de Direito Tributário da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

11 de novembro de 2023, 9h19

Na última quarta-feira (8/11), o Senado aprovou, com alterações de texto, a PEC 45/19, por meio da qual se propõe a tão propalada reforma tributária do consumo.

O exame e votação dessa PEC pelo Senado teve por objeto o texto aprovado pela Câmara dos Deputados, sob o mais absoluto açodamento e com afrontamento sem precedentes ao Estado Democrático de Direito, conforme já tivemos oportunidade  de demonstrar neste espaço em outra ocasião.

Spacca

De fato, no trâmite e votação na Câmara dos Deputados da PEC 45/19, testemunhamos diversas anomalias relacionadas à boa técnica legislativa, tais como:

(1) supressão do indispensável trâmite da PEC pelas Comissões de Constituição e Justiça e de Assuntos Econômicos (CCJ e CAE) e criação de dificuldades regimentais para alterações no texto proposto, o que seria essencial tendo em vista tratar-se de projeto que alterava disruptivamente a tributação do consumo;

(2) formação de um Grupo de Trabalho que, gerando absoluta perplexidade em todos que acompanhavam esse processo, apresentou o texto a ser votado em plenário com apenas 24 horas de antecedência, sem que houvesse tempo hábil para o seu exame prévio e acurado, letra por letra, pelos parlamentares que o votariam;

 (3) alteração substancial do texto durante os minutos finais da votação do projeto, a ponto de dele ter surgido um novo tributo do qual, em muitos casos, só se tomou ciência no dia seguinte ao da votação; os parlamentares não sabiam no que estavam votando;

(4) supressão, na prática, de um dos dois turnos de votação da PEC, conforme determina a Constituição Federal – os turnos de votação tiveram intervalo ínfimo, sem que houvesse qualquer possibilidade de reflexão por parte dos parlamentares sobre o acerto de como estavam votando (esse equívoco, aliás, foi repetido na votação do Senado);

(5) permissão, sem qualquer justificação plausível, de que os votos fossem proferidos de forma remota.

Como não poderia deixar de ser, dessa lamentável forma de votação adotada pela Câmara, surgiu um texto repleto de equívocos e inconsistências, alguns deles relacionados abaixo:

(1) severa redução da simplificação tributária que se propunha originalmente; de fato, a “grande simplificação” aprovada pela Câmara se resumiu à substituição de cinco tributos (IPI, ICMS, ISS, PIS e Cofins) por outros quatro (IBS, CBS, IS e a nova tributação dos estados sobre produtos primários, criada na calada da noite em que ocorreu a votação); no Senado Federal, essa simplicidade foi ainda mais comprometida, com a substituição de cinco tributos por outros cinco (com a criação da nova CIDE para a Zona Franca de Manaus);

(2) criação de um Conselho Federativo cuja competência extrapolava, em muito, o que seria constitucionalmente possível e adequado;

(3) atribuição a leis complementares futuras a definição de uma série de conceitos absolutamente essenciais ao êxito do projeto, entre os quais destacaram-se as definições de destino (esdruxulamente sugerido no próprio texto do projeto) e da importantíssima e vital não cumulatividade, cujas discussões, no sistema tributário em vigor, são responsáveis, em grande parte, pela insegurança jurídica e contencioso que o País enfrenta;

(4) previsão da possibilidade de o aproveitamento de créditos inerentes à não cumulatividade estar condicionada à comprovação do pagamento do imposto pelo elo imediatamente anterior da cadeia de circulação de mercadorias e serviços (esse condicionamento não existe em nenhum dos 174 países que adotam IVA no mundo – imaginem uma loja de departamentos tendo que fazer auditorias em todos os seus milhares de fornecedores, para que possam se creditar do imposto incidente nas respectivas aquisições);

(5) criação do Imposto Seletivo (IS), com características que permitiriam o seu uso de forma extremamente danosa por parte da União Federal; além da previsão de uma regra absurda que, na prática, tratava como externalidade negativa o simples fato de as empresas não estabelecerem os seus negócios na Zona Franca de Manaus, em plena afronta ao princípio do Federalismo;

(6) criação de uma série de exceções às regras tributárias, com a atribuição de regimes especiais, diferenciados e favorecidos para uma série de setores da economia, tais como instituições financeiras (bancos!), planos de saúde, parques de diversão, bares, lotéricas, empresas imobiliárias, restaurantes, hotéis, entre vários outros.

Chegando ao Senado, o trâmite e exame do projeto tiveram a seriedade que o tema exigia: o projeto passou pelo crivo da CCJ e da CAE, onde foram realizadas inúmeras audiências públicas. Em uma delas, na CAE, tive a oportunidade de demonstrar a necessidade de que os prestadores de serviços de profissões regulamentas fossem também contemplados com um regime de tributação que atendesse às suas especificidades.

Como também já tive a oportunidade de demonstrar neste espaço, os argumentos nas reuniões de que participamos com vários senadores nós e representantes de 38 instituições representativas do setor – eram muito simples:

(1) há 55 anos, por motivos justos, jurídicos e técnicos defendidos pelo maior jurista em Direito Tributário que este país já conheceu, atribui-se aos autônomos e às profissões regulamentadas regime próprio, a eles adequado: a tributação fixa do ISS, e não correspondente a percentual do seu faturamento;

(2)  anteriormente à inserção de todas aquelas exceções no projeto, as instituições representativas das profissões regulamentadas jamais haviam pleiteado a aplicação de qualquer regime diferenciado da regra geral;

(3) mas, a partir do momento em que surgiram tantas exceções inexplicáveis, criadas para os mais diversos setores, o cenário era outro;

(4)  se nenhum sistema diferenciado fosse aplicado a setor algum, não haveria mesmo que se pleitear exceções; mas com essa generosidade de regimes especiais concedidos, as profissões regulamentadas teriam, necessariamente, de ser as primeiras contempladas;

(5) de fato, se houvesse uma sequer exceção concedida, os profissionais liberais teriam de ser atendidos antes, tendo em vista que já faziam (como ainda fazem) jus a um regime que contemplava às suas especificidades havia 55 anos, regime esse que, aliás, foi, por diversas vezes, ratificado por ambos os tribunais superiores (STF e STJ) e mantido pelo Congresso Nacional, em todas as várias vezes em que proposta sua revogação;

(6) ao final de cada vez em que o assunto foi debatido com os Senadores, afirmamos expressamente que, se todas as demais exceções fossem excluídas da PEC 45/19, nós, os representantes das profissões regulamentadas, retiraríamos o nosso pleito.

A proposta que fizemos e refletida no projeto de emenda protocolada pelo Senador Ângelo Coronel foi no sentido de que os serviços profissionais fossem objeto de regime especial definido em lei complementar, da mesma forma como pleiteado por todos os setores que haviam sido agraciados no texto proveniente da Câmara.

A CCJ foi sensível ao pleito e entendeu que, efetivamente, as profissões regulamentadas mereceriam um tratamento diferenciado, que atendesse às suas características, mas sugeriu atribuir-lhe regime diverso daquele que solicitamos.  Sugeriu-se (e assim foi aprovado) a redução da alíquota dos novos tributos (do IBS e CBS) aplicáveis em 30%.

O setor recebeu com satisfação a notícia de que, de alguma forma, havia sido compreendido nos pleitos que fez, mas considerou insuficiente o tratamento que lhe fora conferido.

Como já tivemos oportunidade de demonstrar neste espaço, por equidade e isonomia, o correto seria que esse percentual fosse de 60%, e não de 30%.   

De fato, o percentual maior (de 60%) foi atribuído a setores considerados essenciais quando da aprovação do projeto pela Câmara.

Ora, as profissões regulamentadas guardam consigo a mesma, ou maior, essencialidade, porque atendem toda a sociedade, em todos os seus níveis, com a prestação de serviços que lhes são absolutamente imprescindíveis. Exemplo disso é própria Advocacia, em relação à qual há um dispositivo constitucional que, textualmente, declara a sua indispensabilidade para a administração do Poder Judiciário. Ela é, portanto, essencial a um dos três pilares da República.

Como considerá-la atividade menos essencial que aquelas contempladas com a redução de 60%? Esse tratamento antiisonômico deveria ser, agora, modificado na Câmara, já que o projeto volta ao seu exame e votação, após a sua aprovação pelo Senado.

Mas, de acordo com as manifestações feitas pelo presidente da Casa, deputado Arthur Lira, não parece haver espaço para qualquer alteração no texto aprovado pelo Senado.

Pelo contrário, e aí vem o absurdo, pretende-se repetir nesta oportunidade o erro cometido quando da aprovação do projeto referente à reforma da previdência: aprovar o projeto ainda neste ano somente naquilo que configure consenso entre as duas casas legislativas.  As partes do texto em relação às quais não haja esse consenso serão examinadas e votadas em separado.

Esse procedimento é inconcebível e incompatível com os princípios que emanam do Estado Democrático de Direito.

O voto dos senadores levou em consideração o que dispunha a integralidade do projeto, e não partes dele. Com efeito, muitos só votaram favoravelmente à Reforma porque foram feitas alterações e inserções pelo Senado no projeto originário da Câmara.  Não fora esses reparos e criações de novas regras feitos em sede revisional pela Casa, os senadores teriam, muito provavelmente votado negativamente.

Exatamente por refletir uma alteração disruptiva na Constituição Federal e no Sistema Tributário Brasileiro, a PEC, como um todo, terá que ser submetida a quantas votações forem necessárias em ambas as casas, até que o pretendido consenso seja obtido.

Do contrário, a PEC não ficará de pé, na forma como imaginada pelo Senado quando da votação ocorrida nesta semana. O que ocorrerá, por exemplo, com as regras relativas ao Imposto Seletivo e ao Conselho Federativo (ou Comitê Gestor), que sofreram relevantíssimas alterações no Senado? Em relação a essas matérias, não há consenso entre as duas casas sobre a forma como tratá-los.  O que ocorrerá com essas regras? Serão votadas em separado? A PEC será aprovada sem que esses importantes aspectos relativos ao novo sistema sejam definidos?

No apavorante precedente de fatiamento que nos serve de parâmetro (o relativo à reforma da previdência), a parte não consensual à época, que se transformou em uma PEC paralela, não foi até hoje votada. Isso é um desrespeito com o Senado Federal e com todos os setores que forem objeto das regras segregadas.

O fatiamento da PEC/45 na Câmara é inadmissível.

Mais uma vez, repito o que já está se tornando um mantra nas nossas vidas desde que esse assunto passou a ser debatido: temos que ir devagar, porque temos pressa.

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