Opinião

Alíquota zero do Perse é irrevogável à luz do artigo 178 do CTN

Autor

2 de março de 2023, 17h13

O Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse) foi instituído pela Lei nº 14.148/2021 na forma de um conjunto de incentivos fiscais dirigidos ao setor de eventos a fim de compensá-lo por ter sido sacrificado pelo poder público no combate à pandemia de Covid-19 [1]. Dentre as medidas, concedeu-se alíquota zero de IRPJ, CSLL, PIS e Cofins, pelo prazo de 60 meses, para as empresas que preenchessem os requisitos previstos no artigo 2º da lei.

Inicialmente, o benefício foi previsto para as empresas que desempenhassem as atividades indicadas nos (88) CNAEs listados pela Portaria ME nº 7.163/2021. No entanto, a pretexto de que essa amplitude poderia "comprometer o orçamento público e o cumprimento das metas fiscais", o Poder Executivo editou a Medida Provisória nº 1.147/2022 com vistas a reduzir o alcance da alíquota zero.

A MP alterou a redação do artigo 4º da Lei n. 14.148/21 para estipular que a alíquota zero se restringe aos resultados oriundos das atividades "relacionadas em ato do Ministério da Economia". A intenção, segundo a exposição de motivos, era diminuir a quantidade de empresas beneficiadas com a alíquota zero, por meio de uma segregação de atividades consideradas relacionadas ao setor de eventos para fins da desoneração, distinguindo-as daquelas que, embora também pertencentes ao setor de eventos e enquadradas no Perse, só poderiam se beneficiar de outras medidas, como a renegociação de dívidas.

Nesse contexto, foi editada a Portaria ME nº 11.266/2022, publicada em 2/1/2023, redefinindo para 38 os CNAEs beneficiados com alíquota zero, o que implicou a exclusão de 50 atividades que estavam abrangidas pelo benefício. Como resultado, houve a revogação parcial do incentivo, no que toca às empresas cujas atividades deixaram de ser contempladas.

A questão aqui tratada é saber se as empresas que faziam jus à alíquota zero de acordo com os critérios da Lei nº 14.148/2021 e da Portaria 7.163/2021 poderiam ser excluídas do benefício antes do fim do prazo previsto para sua fruição ou se, diversamente, possuem direito adquirido ao benefício.

Tal se coloca diante da equiparação, pelo STF e pelo STJ, do instituto da alíquota zero ao da isenção tributária [2][3], sendo-lhe, portanto, aplicável o disposto no artigo 178 do CTN, segundo o qual "a isenção, salvo se concedida por prazo certo e em função de determinadas condições, pode ser revogada ou modificada por lei, a qualquer tempo, observado o disposto no inciso III do art. 104".

Como se vê, a regra é de que a isenção incondicionada ou por tempo indeterminado pode ser revogada a qualquer tempo, por razões de política fiscal. Por outro lado, se a isenção tem prazo determinado e é condicionada, o atendimento aos seus pressupostos gerará direito adquirido ao beneficiário, o que impede sua revogação antes do prazo estipulado para sua fruição. Foi o que previu, aliás, o artigo 41, § 2º, do ADCT [4] em relação aos incentivos condicionados e com prazo certo anteriores à Constituição de 1988 ("A revogação não prejudicará os direitos que já tiverem sido adquiridos, àquela data, em relação a incentivos concedidos sob condição e com prazo certo").

Sobre o tema, há muito o STF editou a Súmula nº 544 no sentido de que "isenções tributárias concedidas, sob condição onerosa, não podem ser livremente suprimidas". Os precedentes que aplicam essa orientação confirmam que "a isenção tributária, quando concedida por prazo certo e mediante o atendimento de determinadas condições, gera direito adquirido ao contribuinte beneficiado" [5].

No caso do Perse, a alíquota zero foi concedida pelo prazo 60 meses (artigo 4º da Lei nº 14.148/21), atendendo, assim, ao requisito de prazo determinado. Ademais, a desoneração foi condicionada ao cumprimento dos requisitos previstos no artigo 2º da Lei nº 14.148 e (originalmente) na Portaria ME 7.163. Segundo essas normas, a alíquota zero somente se aplicaria às empresas que desenvolvessem atividades relacionadas ao setor de eventos, possuíssem algum dos CNAEs listados nos Anexos I e II da Portaria ME 7.163 e, no caso das atividades relacionadas a serviços turísticos, as empresas deveriam estar com situação regular no Cadastur do Ministério do Turismo [6]. Além disso, a Receita Federal publicou a Instrução Normativa 2.114/2022 em cujo artigo 4º dispôs que o benefício só se aplica às empresas que "apurem o IRPJ pela sistemática do Lucro Real, do Lucro Presumido ou do Lucro Arbitrado", o que impede a opção pelo Simples Nacional, ainda que a pessoa jurídica se enquadre nos requisitos desse regime. Todas essas exigências são condições à fruição da alíquota zero.

Por outro lado, eventual discussão que poderia surgir com relação a esse tema diz respeito à existência ou não de onerosidade no Perse. Isso se coloca tendo em vista a redação adotada pela Súmula 544/STF e a circunstância de que, na maioria dos julgados que aplicam a ressalva do art. 178 do CTN, a análise recaía sobre alguma desoneração concedida mediante contraprestação do beneficiário, como a realização de investimentos, construção de empreendimento em determinado local etc., ou seja, casos em que a condição onerosa do benefício era evidente.

Não há dúvida de que as isenções tributárias condicionadas a investimento prévio do contribuinte se enquadram na hipótese de irrevogabilidade. Mas assim o é porque a exceção à revogabilidade se justifica sempre que a isenção, pelas condições da sua outorga, tenha conduzido o contribuinte a determinada conduta ou atividade que ele não empreenderia se estivesse sujeito ao tributo afastado/reduzido pelo incentivo. Daí que qualquer condição que tenha o efeito de influenciar um comportamento do contribuinte para ter direito ao benefício deve ser considerada suficiente para caracterizar a desoneração como onerosa.

Não à toa, Hugo de Brito Machado comenta que "a isenção concedida por prazo determinado se presume onerosa, ainda que a lei não estabeleça expressamente condições que sejam claramente ônus para o interessado", pois "presume-se que ao concretizar a situação colhida pelo legislador como hipótese de incidência da norma de isenção o contribuinte está deixando de optar por situações que lhe seriam mais vantajosas. Está realizando o objetivo extrafiscal desejado pelo legislador. E isto, por si só, há de ser entendimento como um ônus, que implica a irrevogabilidade da norma de isenção por prazo determinado" [7].

No caso, a criação do Perse se justificou na onerosidade dos atos do Poder Público que impactaram o setor de eventos no combate à pandemia de Covid-19. Tanto que a justificativa do PL nº 5.638/2020, que deu origem à Lei nº 14.148/2021, reconheceu "que o Setor de Eventos foi o mais afetado na pandemia", por ter sido "escolhido, ainda que inconscientemente, para ser sacrificado em nome de todos", já que os estados e municípios proibiram "os eventos como pretexto para preservar a saúde de todos". Disso decorre que a alíquota zero representa uma compensação pelos prejuízos que as empresas do setor de eventos foram obrigadas a suportar. Nessa medida, a condição onerosa do benefício seria manter atividade pertencente ao setor mais impactado pelas ações de combate à pandemia.

Nessa ordem de ideias, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já reconheceu o caráter oneroso de desonerações (isenção, alíquota zero, redução de base de cálculo) concedidas em função de determinadas condições que não envolviam a necessidade de serem feitos investimentos por parte dos contribuintes.

Nesse sentido, por exemplo, no REsp nº 1.241.131/RJ [8], o STJ examinou a isenção de IR sobre o ganho de capital auferido por pessoa física na venda de participação societária conferida pelo Decreto-lei 1.510/1976, tendo concluído que se tratava de isenção onerosa em razão do requisito de se aguardar cinco anos da data de aquisição para vender as ações, conforme posição também adotada no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

Nos REsp nº 1.987.675/SP[9], REsp nº 1.987.675/SP [10] e REsp 1.845.082/SP [11], que tratavam sobre a revogação da alíquota zero de PIS/Cofins incidente sobre a venda de aparelhos de informática concedida pela Lei n. 11.196/2005 (Lei do Bem) no âmbito do Programa de Inclusão Digital (PID), o STJ constatou que "a exigência de que a empresa deva se submeter a um processo específico de produção, bem como a limitação do preço de venda dos produtos, caracteriza a onerosidade para usufruir da redução da alíquota zero", além de "restrição de fornecedores, traduzindo inegável restrição à liberdade empresarial, especialmente, no ambiente da economia de livre mercado". Por isso se concluiu, nesses julgados, que a revogação do benefício antes do prazo estipulado violou "o art. 178 do Código Tributário Nacional, ainda que, na matéria em questão, trate-se de revogação de alíquota zero, pois a exoneração foi concedida por prazo certo e de forma onerosa e condicionada".

No REsp nº 627.998/CE [12], que envolvia isenção e redução de base de cálculo de tributos no âmbito do Programa Especial de Exportação (Befiex) instituído pelo Decreto-lei nº 1.219/1972, a Corte Superior concluiu que a condição onerosa era o incremento das exportações de produtos manufaturados. Idêntica conclusão foi adotada no REsp 226.310/RS em relação à isenção do Imposto de Importação e do IPI instituída pelo Decreto-Lei nº 2.324/1987 [13].

Tais precedentes permitem sustentar que as desonerações condicionais (onerosas) abrangidas pelo disposto no artigo 178 do CTN não são apenas aquelas que exigem investimentos do contribuinte, mas também as que preveem algum outro fator sine qua non à fruição do benefício, o que é encontrado no Perse.

Corrobora esse raciocínio, ainda, o Parecer SEI nº 7.699/2020 emitido pela Procuradoria da Fazenda Nacional em resposta a consulta formulada pela Receita Federal, no qual foi exposto o seu entendimento de que a isenção de contribuições sobre a folha de salários prevista no artigo 9º da Medida Provisória nº 905/2019, que instituiu o "Contrato de Trabalho Verde e Amarelo", faz jus à irrevogabilidade do artigo 178 do CTN, por estar associada ao fomento de novos empregos. De maneira similar, a alíquota zero do Perse também se destina a preservar as empresas do setor de eventos e os empregos por elas gerados, pois somente os estabelecimentos que mantiverem as suas atividades terão direito ao benefício, sendo certo que a perda do incentivo compromete não só a continuidade da atividade, mas também a manutenção dos empregados.

Portanto, há elementos na legislação e na jurisprudência para se sustentar haver caráter oneroso no Perse, ainda que o benefício não exija contraprestações específicas e diretas por parte do contribuinte. Isso, em razão de ter sido condicionado ao exercício e manutenção de atividades relacionadas ao setor mais onerado durante o combate à pandemia, além da regularidade de cadastros e impossibilidade de adesão a regime tributário simplificado.

Espera-se que o Poder Judiciário seja sensível e resguarde o direito das empresas que confiaram no incentivo fiscal para dar continuidade aos seus negócios, não apenas em razão desses fundamentos, mas também em atenção aos princípios da segurança jurídica, boa-fé e lealdade que devem nortear as relações entre Fisco e contribuintes.

 


[1] Constou da justificativa do projeto que deu origem à Lei 14.148/2021 (PL nº 5.638/2020): "Importante registrar que um pacote exclusivo para esse setor se justifica de forma bastante clara. Inicialmente pelo fato de que é um setor que foi escolhido, ainda que inconscientemente, para ser sacrificado em nome de todos. Hoje, os Estados e Municípios proíbem os eventos como pretexto para preservar a saúde de todos. Nada mais justo, portanto, do que a sociedade dar condições desse setor sobreviver".

[2] "Na verdade, entre a isenção e a alíquota-zero, a distinção é meramente teórica. Na prática, os efeitos são semelhantes. Tributação à alíquota-zero e isenção, como não tributação, são hipóteses desonerativas. Em todas elas, o que afinal ocorre é o não recolhimento do tributo." (STF, RE 350.446, rel. min. Nelson Jobim, Tribunal Pleno, j. em 18/12/2002).

[3] "Inaceitável restringir, por ato infralegal, o benefício fiscal conferido ao setor produtivo, mormente quando as três situações — isento, sujeito à alíquota zero e não tributado —, são equivalentes quanto ao resultado prático delineado pela Lei do benefício." (STJ, EREsp 1.213.143/RS, red. para acórdão min. Regina Helena Costa, 1ª Seção, j. 1/2/2022).

[4] "Art. 41. Os Poderes Executivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios reavaliarão todos os incentivos fiscais de natureza setorial ora em vigor, propondo aos Poderes Legislativos respectivos as medidas cabíveis.

§ 1º. Considerar-se-ão revogados após dois anos, a partir da data da promulgação da Constituição, os incentivos que não forem confirmados por lei.

§ 2º. A revogação não prejudicará os direitos que já tiverem sido adquiridos, àquela data, em relação a incentivos concedidos sob condição e com prazo certo."

[5] RE 582.926 AgR, min. Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, j. 27/5/2011.

[6] A exigência tem sido objeto de questionamento no Poder Judiciário, em razão de não constar expressamente na Lei nº 14.148/2021.

[7] Comentários ao Código Tributário Nacional, volume III, São Paulo: Atlas, 2005, p. 620.

[8] Relatora min. Eliana Calmon, 2ª Turma, j. 27/8/2013.

[9] Relator min. Sérgio Kukina, 1ª Turma, j. 28/3/2022.

[10] Relator min. Herman Benjamin, 2ª Turma, j. 21/6/2022.

[11] Relator min. Napoleão Nunes Maia Filho, rel. para acórdão min. Regina Helena, 1ª Turma, j. 15/6/2021.

[12] Relator min. Mauro Campbell, 2ª Turma, j. 17/11/2009.

[13] Relator min. João Otávio de Noronha, 2ª Turma, j. 19/12/2005.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!