Opinião

Emissora de rádio ou televisão não pode incentivar golpe de Estado

Autor

  • André Augusto Salvador Bezerra

    é juiz de Direito em São Paulo professor no curso de mestrado profissional da Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados mestre doutor e pesquisador com pós-doutorado concluído na Universidade de São Paulo (USP).

29 de janeiro de 2023, 6h06

A invasão e a destruição de bens públicos ocorrida nas sedes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário em Brasília, no último 8 de janeiro, intensificou a discussão acerca do alcance e dos limites da liberdade de expressão, o direito de manifestação da palavra. Tal debate ganha relevância quando se consideram possíveis trabalhos de determinadas emissoras de rádio ou televisão que, a pretexto de exercerem o direito em questão, teriam incentivado o ato. Estariam autorizadas a assim agir? Em caso negativo, quais os fundamentos da ilicitude dos incentivos realizados?

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Terroristas depredaram o Supremo
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Este artigo busca formular respostas a esses questionamentos. Para isso, discute juridicamente o exercício da liberdade de expressão por emissoras de rádio e televisão, sob o atual quadro de tentativas de destruição do sistema democrático brasileiro.

O escrito é dividido em torno de três observações fundamentais, necessárias para a compreensão do tema proposto: a) o caráter jurídico do ato de 8 de janeiro; b) o teor não absoluto da liberdade de expressão; c) as restrições adicionais ao exercício da mesma liberdade, destinadas às emissoras de rádio e televisão.

Ilicitude dos atos golpistas
A primeira observação a ser realizada diz respeito à natureza da incursão às sedes dos três Poderes de Estado: o ato está longe de ser considerado como uma manifestação democrática lícita.

É verdade que, sob uma análise superficial do tema, há a tentação de se realizar uma analogia da invasão ocorrida em Brasília com os casos frequentes de ocupação de prédios públicos em manifestações.

Caso simbólico a ser apontado é o do movimento de ocupação de escolas públicas, advindo nos anos de 2015 e 2016, em diversos Estados brasileiros. Conforme noticiado na época, a mobilização foi levada a efeito por estudantes, prevalentemente do ensino médio, que discutiam os rumos de políticas educacionais em sede regional e nacional. 

Repare-se que havia uma demanda amparada juridicamente: o direito à educação de qualidade, determinado pelo artigo 206, VII, da vigente Constituição da República, o qual estaria sendo descumprido pelo Poder Público.  Daí que, em decisão proferida em novembro de 2015, a 7ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo indeferiu o pedido de expulsão forçada contra os estudantes (via expedição de mandado de reintegração de posse), formulado pelo governo estadual paulista [1].

Situação diversa é a dos invasores e depredadores de 8 de janeiro.  Não há a reivindicação a direito violado. Na realidade, o que se reivindica é a desconsideração do direito básico de qualquer democracia, o respeito aos resultados eleitorais, mais precisamente das eleições presidenciais de 2022, legitimados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e por governos e organizações internacionais.

Ocorreu, portanto, uma tentativa de golpe de Estado, conduta considerada crime passível de pena de reclusão de quatro a doze anos. É o que define o artigo 359-M do Código Penal: "tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído".

Ausência do exercício da liberdade de expressão
A segunda observação a se realizar está relacionada ao fato de, a despeito da natureza golpista, algumas pessoas ainda sustentarem que a defesa e até o incentivo aos atos vêm amparados juridicamente pela liberdade de expressão, conforme artigo 5º, IV e IX, da Constituição da República. Trata-se, porém, de raciocínio enganoso.  

A liberdade de expressão jamais foi absoluta. O próprio processo histórico de construção desse direito foi coincidente à construção de estrutura jurídica que objetivava a imposição de medidas contra abusos do seu exercício.

Nesse sentido, tem-se um dos principais marcos normativos das liberdades públicas em todo o mundo, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa de 1789, a qual proibiu a censura prévia, mas responsabilizou a prática de abusos. O artigo 11 do documento tem redação cristalina: "A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do Homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na Lei".

Na atualidade, documentos internacionais de Direitos Humanos apresentam redação semelhante. É o caso da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, cujo artigo 13 prevê a responsabilização posterior que assegure o respeito aos direitos e à reputação das pessoas, bem como a proteção da segurança nacional, da ordem pública, da saúde e da moral públicas.

Cabe aqui reparar nas expressões "segurança nacional" e "ordem pública", a limitarem a liberdade de expressão.  Incentivar uma tentativa de golpe de Estado é, escancaradamente, violar a segurança nacional e a ordem pública de um Estado Democrático de Direito.

No plano jurídico interno, a vigente Constituição da República segue a mesma linha, definindo a liberdade de manifestação da palavra independente de licença ou censura, mas, de modo concomitante, proibindo o anonimato e garantindo o direito de resposta e de indenização por abusos (artigo 5º, IV, V, IX e X). Note-se que o anonimato é vedado justamente para possibilitar a responsabilização pelos eventuais abusos.   

Emissoras de rádio e televisão: concessões públicas
A terceira e última observação a se realizar está no fato de o exercício da liberdade de expressão de emissoras de rádio e televisão apresentar um limite adicional: o caráter de concessionárias de serviço público.

Conforme exposto em outro artigo sobre o tema [2], mesmo quando consistem em empresas privadas, emissoras de rádio e televisão veiculam sua programação por intermédio do espectro de radiofrequência. Este consiste em bem público, de possibilidade limitada de uso, estando, por isso, disponível somente aos beneficiários de concessões públicas.

As emissoras exercem sua atividade, portanto, sob regime jurídico regulado por normas de Direito Administrativo. Recebem do Estado a outorga do exercício do serviço de radiodifusão e, em troca, têm direito à remuneração por anúncios publicitários.

Sublinhe-se que a outorga é do exercício da atividade; o titular do serviço é o Estado e, consequentemente, o povo, de quem emana o poder (artigo 1º, § único da Constituição da República).

Ao realizarem um serviço cujo titular é o Estado, as emissoras de rádio e televisão têm o dever de exercê-lo conforme o interesse público.  Trata-se de expressão que recebe definição no artigo 221 do texto constitucional: preferência à programação de fins educativos, artísticos, culturais e informativos; que promova a cultura do país e das diversas regiões, com estímulo à produção independente; que regionalize a produção cultural, artística e jornalística e que respeite os valores éticos e morais da pessoa e da família.

Além disso, por realizarem serviço de titularidade estatal, devem observar o caráter de Estado democrático de Direito, definido pelo artigo 1º da Constituição da República. Devem, ainda, respeitar o exercício das atribuições dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, que, conforme artigo 2º do documento constitucional, proporcionam formato à realidade estatal brasileira.

Uma emissora de rádio ou televisão que incentiva golpe de Estado descumpre, frontalmente, o caráter educativo e informativo imposto pela Constituição.  Viola também o caráter democrático e o respeito aos Poderes do Estado, o dono da atividade que realizam.

Há, nesses casos, ilicitude no exercício da concessão pública. Sem haver exercício regular da liberdade de expressão.

Responsabilizações
Ainda é cedo para se alcançar uma conclusão definitiva acerca da recente invasão e depredações às sedes dos três Poderes. No ato que envolveu, direta ou indiretamente, milhares de pessoas, entre executores e financiadores, há muito a se apurar.

O que se sabe, contudo, é o que o Direito brasileiro é transparente a respeito: houve uma tentativa de golpe de Estado, cuja defesa não é amparada pela liberdade de expressão, sobretudo a quem faz uso de bem público na qualidade de concessionária.

Na busca da responsabilização pelo ato, não se pode ignorar eventuais emissoras de rádio ou televisão que, de alguma forma, proporcionaram incentivo ao ocorrido. Respeitado o devido processo legal, devem ser responsabilizadas pelo que praticaram, ainda que isso implique na extinção ou na não renovação de concessão.  

Autores

  • é juiz de Direito, doutor e pesquisador em estágio pós-doutoral na Universidade de São Paulo (USP), professor do mestrado profissional Direito e Judiciário na Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) e autor do livro "Povos Indígenas e Direitos Humanos: Direito à Multiplicidade Ontológica na Resistência Tupinambá" (Editora Giostri).

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