Processo Tributário

IBS, cálculo de relações e desdobramentos processuais

Autor

  • Paulo Cesar Conrado

    é juiz federal em São Paulo professor do Curso de Especialização do Ibet professor e coordenador do curso e do grupo de estudos do "Processo tributário analítico" do Ibet e professor do programa de mestrado profissional da FGV Direito-SP.

24 de dezembro de 2023, 8h00

Todos seguramente têm mira que um dos pilares da reforma tributária projetada via PEC 45, aprovada na Câmara na última sexta-feira (15/12/2023), refere-se à unificação, sob um mesmo signo tributário, de diferentes materialidades, efeito alcançado, ao menos teoricamente, pela gradual eliminação de espécies até agora vigentes — caso do ICMS e do ISS — e sua substituição por uma figura supostamente una, caso do IBS (imposto sobre bens e serviços).

Chama a atenção esse caso — do IBS, reiteramos — porque, diferentemente do que se passa com a CBS (contribuições sobre bens e serviços), figura resultante do mesmo racional, o IBS envolve uma ideia inédita em nosso sistema — o da competência compartilhada.

É que as materialidades inerentes a essa categoria integrariam, em princípio, o campo competencial de diferentes Fazendas.

Numa visão ampla, podemos resumir o fenômeno reconhecendo que, naquilo que respeitaria ao ICMS, a competência seria dos estados, enquanto, naquilo que se refere ao ISS, a competência seria dos municípios, além do Distrito Federal, entidade que encarnaria, como sempre encarnou, dupla face.

Relações jurídico-tributárias surgidas em torno do IBS seriam, em rigor, relações estabelecidas a partir da inserção, em seu polo ativo, de no mínimo duas entidades.

E aí nos surge uma indagação: se as relações jurídico-tributárias, quando idealmente consideradas, encontram um sujeito em sua posição ativa, o que devemos dizer das relações que envolvem o IBS?

Pois é sobre esse específico ponto que queremos nos debruçar, longe de ser exaustivos, mas pondo em xeque, em alguma medida, a visão que mantemos sobre a reforma tributária no que se projeta para o IBS.

A competência compartilhada, base da figura tributária de que falamos, pode ser comparada, em certos aspectos, com a experiência derivada do “simples nacional” — premissa que nos colocaria à margem de maiores estranhamentos.

Lembremos, no entanto, que o “simples nacional” não representa, em si, um tributo, mas sim um regime que pode abarcar “x” número de tributos, alguns da União, outros dos estados, outros dos municípios. Os tributos inclusos nesse regime seguem sendo de competência das respectivas entidades políticas; o que se movimenta, na hipótese, é o regime de arrecadação e distribuição de receita.

No caso do IBS, a pretensão vertida via emenda parece reescrever a ideia de competência, não se afigurando redutível a um regime de recolhimento.

Há, de fato, uma pretensa ideia de unificação de categorias preexistentes sob um mesmo signo tributário, sendo tais categorias respeitantes a diferentes titulares — estados e municípios, repita-se.

Mas como um mesmo tributo pode ser ao mesmo tempo de titularidade de um certo município e de um certo estado? Essa bimembridade em termos de sujeição ativa não seria representativa da ideia de que o tributo, formalmente unificado, é materialmente de dupla ordem? E a noção de competência compartilhada? Não seria ela um indicativo de que seguiriam sendo duas as relações jurídicas de que estamos tratando?

Essas perguntas, em lógica, podem ser respondidas mediante o emprego de técnicas usualmente designadas como “cálculo de relações”, indicando que, talvez, a unificação de que estamos tratando não estaria no campo propriamente tributário, mas sim na seara das regras de distribuição arrecadatória.

Ratificam a relevância desses questionamentos o fato de, ainda inexplicada, a competência dita compartilhada, não prejudicar o direito subjetivo dado às entidades políticas de definir as alíquotas que desejam empregar — outro indício de que a unificação de que se fala seria apenas aparente.

Pois muito bem. Caminhemos na direção da processualidade, do contencioso, o que efetivamente nos mobiliza nesta coluna.

Coloquemo-nos frente a determinadas circunstâncias que são vistas pelo contribuinte como equivocadas e que precisam ser revistas. Fixemos essa premissa, assentando: a questão a ser resolvida é, em suma, se ele, o contribuinte do IBS, estaria obrigado a impugnar o tributo em sua integralidade, mesmo que o aspecto da sua insurgência diga respeito apenas, por exemplo, à fração municipal?

Parece sem sentido supor que assim seja, mas desse “sem sentido” parece que estamos reconfirmando a relevância da pergunta: o IBS de fato é um imposto? Ou camufla a combinação de tantos impostos quantas forem as entidades políticas nele envolvidas?

Se nossa resposta caminhar nesse sentido, o da pluralidade de sujeitos ativos e de impostos, deveremos concluir: o direito de pôr em xeque determinada exigência, pela via jurisdicional, deverá ser exercido mediante o desmembramento daquilo que, em rigor, é fruto de um mimetismo, reaflorando a imagem de unidade tributária apenas pelo nome.

Do contrário, podemos correr o risco de concluir de que toda ação proposta em desfavor da exigência de IBS redundaria na formação de um litisconsórcio passivo, mesmo que o núcleo da lide seja a fração “a” (estadual) ou “b” (municipal) do tributo. Ou os estados vão estar obrigados a sustentar a legitimidade, por exemplo, de uma alíquota que não foi por eles fixada, numa espécie de compartilhamento de defesa de ato que não lhe toca?

Olhada por esse ângulo, parece que a bimembridade é da essência da relação jurídica tributária de IBS, devendo ser admitida como elemento a priori, sob pena de nos colocarmos diante de um complicador invencível em termos de contencioso, algo redutível à ideia “ou discute tudo”, “ou discute nada” (hipótese em que o acesso à jurisdição seria simplesmente decotado, como se a noção de competência compartilhada, por si, resolvesse qualquer possibilidade de questionamento).

Mas há mais a dizer: em tempos como os atuais, tempos de superdimensionamento das técnicas de solução amigável de conflitos, estariam as Fazendas cerceadas, no que se refere ao IBS, quanto à possibilidade de manter seus programas de transação? Afinal, se transação é figura que demanda espontaneidade (além de lei), a vontade amadurecida de uma certa Fazenda (como ocorre no Estado de São Paulo) sobrepor-se-ia à dos municípios “compartilhadores” da mesma competência? Se um transaciona, em suma, o outro deve transacionar também? E sempre nos mesmos termos? A reposta a essas últimas perguntas, intuitivamente, talvez seja “não”, mas o que é possível daí inferir: definitivamente não estamos falando de um único imposto.

É bem possível que tenhamos respostas a todos esses questionamentos com a manifestação do Comitê Gestor, figura centralizadora de uma série de pontos relativos ao IBS.

Mas, pensemos: “competência compartilhada” estaria a significar “competência cedida” a um comitê? Não rejeitamos essa possibilidade, embora ainda nos aflija a ideia de que, com a introdução dessa espécie de solução, tenhamos que admitir que a titularidade do tributo passa a ser um dado irrelevante para sua definição.

Estaríamos reescrevendo, com isso, a teoria das relações? A meditar.

 

Autores

  • é juiz federal em São Paulo, professor do curso de especialização do Ibet, professor e coordenador do curso e do grupo de estudos do "Processo tributário analítico" do Ibet e professor do programa de mestrado profissional da FGV Direito-SP.

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