Diário de Classe

Como "nasce" um precedente?

Autor

  • Thales Delapieve

    é advogado doutorando em Direito Público (Unisinos) mestre em Direito (FMP) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

24 de dezembro de 2023, 11h18

Ao longo da última década o debate em torno dos precedentes vem ganhando espaço nas discussões jurídicas no Brasil, sobretudo em face da inserção no Código de Processo Civil dos artigos 926 e 927, os quais  expressamente fazem referência aos precedentes e a necessidade de sua observância pelos juízes e tribunais.

Dentre os doutrinadores entusiastas das teses precedentalistas podemos destacar Luiz Guilherme Marinoni que em sua obra a “Ética dos Precedentes” busca construir uma teoria precedentalista para o Brasil, sustentando “a fundamentalidade dos precedentes para a unidade e o desenvolvimento do direito, a clareza e a generalidade, a promoção da igualdade, o fortalecimento institucional, a limitação do poder do Estado, a previsibilidade, a racionalidade econômica, o respeito ao direito e o incremento da responsabilidade pessoal”. [1]

Da mesma forma, na obra “O STJ enquanto Corte de precedentes”, o autor afirma que “a função das Cortes Supremas, diante do impacto do constitucionalismo e da evolução da teoria da interpretação, é atribuir sentido ao direito e contribuir para a sua evolução mediante decisões que não podem deixar de ter força obrigatória, na medida em que são autônomas em relação aos textos legal e constitucional, agregando algo de novo à ordem jurídica”. [2]

Sob esta perspectiva o papel do Superior Tribunal de Justiça seria o de atribuir o sentido as leis infraconstitucionais, criando “precedentes” os quais deveriam ser obrigatoriamente obedecidos pelos demais tribunais regionais e pelos juízes vinculados a eles.

No entanto, não é incomum nos depararmos com queixas de ministros do Superior Tribunal de Justiça referindo que os tribunais regionais não respeitam os precedentes emanados pelo Tribunal. Aqui mesmo nesta ConJur há diversas matérias com conteúdo semelhante onde é apontado pelos ministros um “desrespeito à cultura dos precedentes” (ver aqui, aqui e aqui).

Nesse ponto, o professor Lenio Streck vem há muito tempo se dedicando a demonstrar por quais razões não é possível construir artificialmente uma “cultura de precedentes”. Afinal, uma cultura não é imposta de cima para baixo, mas se constrói organicamente ao longo do tempo.

Além disso, o professor Lenio vem apontando as incongruências daquilo que se pretende fazer com “precedentes” no Brasil que nada tem a ver com o que se entende por precedente no âmbito do common law. Nesse ponto é fundamental a leitura da obra “Precedentes Judiciais e Hermenêutica” onde professor demonstra claramente como essas teses precedentalistas são nocivas ao Direito, redundado naquilo que o professor vem chamando de “precedentalismo à brasileira” [3].

No entanto, o assunto continua rendendo novos desdobramentos, sobretudo pela forma como os tribunais superiores vem “abraçando” estas teses precedentalistas, inspirando as recentes colunas do professor onde ele vem apontando os perigos da jurisprudencialização do direito (ver aqui, aqui e aqui).

Pois bem, como o professor Lenio muito bem vem assinalando, esta perspectiva que busca dizer que “o Direito é aquilo que os tribunais dizem que ele é”, nada tem a ver com precedentes sendo, em verdade, puro e simples realismo jurídico.

De fato, essa imposição das interpretações dos tribunais superiores como argumento de autoridade já se manifesta há muito tempo quando os demais operadores do direito brasileiro fazem afirmações como: “O STJ já decidiu X” ou o “Supremo já falou que Y”, como uma maneira de interditar o debate quanto a interpretação de dispositivos jurídicos. Ao atuarem dessa forma, esses operadores do direito colaboraram para reforçar essa ideia ceticista de que o Direito não tem valor em si, sendo simplesmente aquilo que os tribunais superiores dizem que ele é.

No entanto, ao proceder dessa maneira e estimular essa perspectiva acaba se criando uma verdadeira esquizofrenia dentro do ordenamento jurídico porque os tribunais regionais também se sentem autorizados a dizerem eles o que acham que Direito deve ser, razão pela qual a ideia de um sistema coeso e integro acaba se dissolvendo e dando lugar ao realismo mais rasteiro.

Por consequência, não é surpresa que os Tribunais Superiores tenham abraçado de maneira tão efusiva as teses precedentalistas. Afinal, ao adotarem a tese de que os Tribunais Superiores são cortes de vértice, esses obrigariam que os demais tribunais adotassem as suas interpretações. Trata-se, portanto, de uma afirmação de sua autoridade perante os tribunais regionais e um remédio para a sua própria concepção realista do que é o Direito.

Partindo dessa premissa, a tese precedentalista advoga que quando os tribunais superiores proferirem uma decisão que se enquadre naquelas previstas nos artigos 926 e 927 do CPC, nasceria ali um novo “precedente” que deveria ser seguido obrigatoriamente pelos tribunais inferiores.

Para dar sustentação a essa concepção os Tribunais Superiores têm se valido dos institutos do Recursos Repetitivos, no âmbito do STJ, e da Repercussão Geral no STF, como forma de criar teses gerais e abstratas completamente dissociadas dos casos concretos.

A esse respeito, vale lembrar que os dois institutos não foram criados com o intuito de criar teses ou precedentes e sim como uma ferramenta de política judiciária para desafogar os tribunais superiores que, há quase 20 anos atrás, já se encontravam abarrotados de processos. No entanto em razão da atuação destes tribunais estes institutos estão se transformando em algo completamente distinto…

Como o professor Lenio há muito vem referindo, ao adotarem esse tipo de posicionamento os tribunais buscam fazer um estoque de normas para o futuro, valendo-se de teses gerais e abstratas que buscam trazer respostas antes mesmo que as perguntas sejam devidamente formuladas. Em verdade, trata-se de tentativas de interditos interpretativos. O problema é que se estas teses são gerais e abstratas, essas inevitavelmente terão que ser interpretadas em face do caso concreto.

Nessa perspectiva, com a devida vênia, se torna difícil sustentar posições como as de Luiz Guilherme Marinoni pelas quais os precedentes seriam a solução “ética” para os problemas da ausência de coerência da jurisprudência dos tribunais. Da mesma forma, a ideia de que a atuação dos Tribunais Superiores são cortes de precedentes — “dando à luz” a novos precedentes vinculantes — se esvai no momento em que os tribunais inferiores não são obrigados a seguir os precedentes oriundos do STJ, por exemplo.

Isso explica a razão das frequentes reclamações dos ministros do STJ relativas à desobediência dos tribunais regionais dos “precedentes” emanados da Corte. O problema é que o tribunal acaba esbarrando em uma outra questão pragmática, a enxurrada de reclamações ajuizadas na Corte alegando o desrespeito aos tais precedentes!

Ocorre que se o tribunal efetivamente aceitar as reclamações contra todos os acórdãos dos tribunais que contrariarem suas decisões, pode terminar com seu funcionamento inviabilizado pela multiplicação de outras reclamações que viriam a seguir; por sua vez, se não aceita as reclamações, a autoridade pretendida se esvai e só resta mesmo reclamar. Ao que tudo indica, o pragmatismo em face do volume de trabalho está vencendo [4].

O problema reside aí mesmo: mesmo na common law precedente não se sobrepõe a legislação, conforme muito bem assinala Hart [5]; da mesma forma um precedente não vincula os demais tribunais pela força da autoridade, mas justamente em face de uma cultura orgânica, de natureza contingencial e mediante a interpretação do caso concreto.

Para ajudar a ilustrar essa afirmação, cabe aqui nos valermos de um caso que é contado por Neil Andrews [6]: na Inglaterra do século 20, uma empresa metalúrgica fornecedora de aço ingressou com uma ação de cobrança em face de uma empresa de armas — sua cliente — que havia sido flagrada em um esquema de venda de armas ilegais no mercado negro.

O caso chegou até a House of Lords e diante da situação fática, para solucionar o caso os lords se valeram de um precedente de mais de 200 anos, datado do século 18: no caso em questão, uma prostituta havia encomendado junto a um famoso mestre artesão de Londres uma vagonete — uma pequena carruagem — com as laterais abertas para que pudesse exibir seu corpo pelas ruas e atrair potenciais clientes.

Ocorre que uma vez entregue a vagonete a prostituta não adimpliu com o pagamento do mestre artesão e este entrou com uma demanda de cobrança exigindo o adimplemento da obrigação. O pedido do mestre artesão foi rechaçado naquela oportunidade pelos lords com o seguinte argumento: o artesão tinha plena ciência que a origem dos recursos que custearia o pagamento de seu trabalho era ilícita (uma vez que a prostituição era crime na Inglaterra naquela época).

Pois bem, ao decidir o caso da metalúrgica, a House of Lords empregou a mesma ratio decidendi para solucionar o caso: uma vez que a metalúrgica tinha conhecimento da origem ilícita dos recursos, não poderia se valer do Estado para perseguir a satisfação do crédito.

Veja-se que neste caso, não foi criada uma tese abstrata, como pretendem os precedentalistas brasileiros, a ser aplicada obrigatoriamente em todos os casos semelhantes. Da mesma forma, ao decidir o caso no século 18 os lords nem poderiam sonhar que o caso serviria de paradigma para resolver o caso da metalúrgica 200 anos mais tarde. A decisão foi contingencial, solucionada por meio da interpretação e aplicada em face do caso concreto.

É este o paradoxo que se verifica no “precedentalismo à brasileira”: ele se propõe a tentar resolver os problemas das incongruências do judiciário brasileiro, dizendo se valer para tanto de pressupostos fundamentais do common law, como por exemplo o conceito de stare decisis e a noção de ratio decidendi, no entanto ao ser confrontado com realidade material de como esses institutos funcionam nos países dessa tradição é possível observar que não há nenhuma similitude. Trata-se, portanto, de mais uma tentativa de importação teórica realizada de maneira equivocada.

Por final, em face de tudo que foi dito nesta coluna, vale deixar uma última frase do professor Lenio Streck que muito bem ilustra a situação com clareza (sobretudo se estivermos falando de precedente na common law): um precedente não “nasce” precedente, ele se torna precedente.

 

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[1] MARINONI, Luiz Guilherme. A ética dos precedentes. 4. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. P. 8

[2] MARINONI, Luiz Guilherme O STJ enquanto corte de precedentes: recompreensão do sistema processual da corte suprema. 4. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

[3] STRECK, Lenio Luiz. Precedentes Judiciais e Hermenêutica. 4.ed., rev. , atual. e ampl. • São Paulo: Editora JusPodivm, 2023.

[4] https://www.conjur.com.br/2022-dez-23/desrespeito-unico-acordao-nao-ofensa-jurisprudencia/

[5] HART, Herbert. O conceito de direito, 5.ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 112.

[6] ANDREWS, Neil. O moderno processo civil na Inglaterra: formas judiciais de resolução de conflitos na Inglaterra. São Paulo: RT, 2009. p. 148.

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