Diário de Classe

Ronald Dworkin e como Direito, arte e literatura se relacionam

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16 de dezembro de 2023, 8h00

A literatura e a arte são algumas das melhores formas de conhecer importantes verdades e criar uma consistente visão do mundo e dos fenômenos que nos cercam. Ronald Dworkin, conhecido pelas suas analogias literárias e por ser um grande colecionador de artes, sabia muito bem disso. Com seus insights únicos sobre o direito e a interpretação, o jurista dirigiu um forte ataque ao Positivismo Jurídico (general attack) e, com sua teoria inédita, o interpretativismo, apropriou-se de conceitos próprios do estudo da arte, literatura e da filosofia da linguagem. Com sua abordagem original, Dworkin gerou uma cisão dentro do positivismo jurídico, teoria que, por sólidos séculos, foi dominante e preponderantemente aceita como a mais adequada por quase unanimidade dos estudiosos do Direito.

O renomado filósofo do direito aplicou, em vários momentos, expressões da mitologia e da literatura e uma lógica argumentativa de alguém que leu muito mais do que meia dúzia de romances, e desenvolveu metáforas como a do “romance em cadeia” para expressar sua visão sobre como o direito deve ser entendido e interpretado. Ele argumentava que o direito não é apenas um conjunto de regras rígidas e estáticas, mas um complexo e contínuo processo de construção e interpretação que se assemelha a um romance em constante evolução. Dworkin acreditava que o direito era mais do que simplesmente um conjunto de normas positivas emanadas de autoridades legislativas ou judiciais. Ele sustentava que o direito incluía princípios morais, valores políticos e considerações de justiça que desempenhavam um papel fundamental na determinação das decisões jurídicas. Sua teoria é muitas vezes chamada de “teoria do direito como integridade”.

O romance em cadeia de Dworkin refere-se ao fato de que as decisões jurídicas não são tomadas isoladamente, mas estão interligadas como os capítulos de um romance. Cada nova decisão deve ser interpretada e construída com base nas decisões e leis anteriores, formando uma continuidade de coerência no sistema jurídico. Os legisladores começaram a escrever esse romance, e os juízes não podem surgir com soluções como um deus ex machina. A ideia do romance em cadeia também significa que decisões jurídicas não podem ser simplesmente escritas com base em critérios já pré-estabelecidos, mas sim são moldadas por um processo interpretativo que leva em consideração a história e os princípios subjacentes do direito, o começo e os significados da história em questão.

Dworkin argumentava que os juízes devem procurar princípios e padrões morais que permeiam o sistema jurídico e usá-los para guiar suas decisões. Ele acreditava que, ao considerar o contexto mais amplo do direito e suas implicações morais e políticas, os juízes poderiam construir um “romance em cadeia” que refletisse a integridade do sistema jurídico como um todo. Essa metáfora também destaca a natureza interpretativa e evolutiva do direito. Assim como um romance se desenvolve ao longo do tempo, incorporando novas perspectivas e reviravoltas, o direito também deve evoluir para lidar com novas questões e desafios à medida que surgem na sociedade. Para o norte-americano, o Conceito de Direito não é estático e também inclui as regras que decorrem de princípios justificadores, embora tais regras nunca tenham sido promulgadas; elas estão nos sentidos do texto anterior e podem ser objetivamente compreendidas.

Dworkin via o direito como uma narrativa em constante construção, na qual os princípios, valores e decisões anteriores interagem para moldar a interpretação e a aplicação do direito em casos subsequentes. Isso implica que o direito não pode ser reduzido a um conjunto estático de regras, mas deve ser visto como uma trama complexa e em evolução que reflete as aspirações e os ideais da sociedade em constante mudança. O império do Direito (Law’s Empire), além de ser um trabalho de organização das ideias de Dworkin até então, representou também um novo grau de sofisticação e fortalecimento de seus argumentos. No livro, ideias de críticos literários e conceitos de intérpretes da arte são discutidos e usados como ferramentas para entender o fenômeno jurídico. Dworkin faz uso de muitas ideias de Gadamer, que é citado com muita frequência. Tanto Gadamer quanto Dworkin enfatizaram a relevância do contexto e da tradição na interpretação. Gadamer argumentou que o horizonte do intérprete desempenha um papel crucial na compreensão; este horizonte cresce e passa a refletir melhor os sentidos do mundo quando é recheado por sentidos e acontecimentos literários. Uma pessoa que nunca leu nada, que nunca refletiu sobre os sentidos da vida, certamente não conseguiria escrever um bom romance, da mesma forma que um juiz que nem sequer se lembra do último livro (ou biografia) que leu dificilmente seria um bom juiz. Pois faltariam-lhe ingredientes importantes na sua construção dos sentidos do mundo, e sua visão certamente seria limitada.

A interpretação de Dworkin concentra-se nos propósitos em vez das causas, sendo os propósitos determinados pelo intérprete, não necessariamente pelo autor. A interpretação deve ser construtiva, pois além de o intérprete perceber os sentidos postos, ele também deve confrontar o imposto com os sentidos do mundo. A interpretação em Dworkin envolve a imposição de um propósito a um objeto ou prática para otimizá-lo de acordo com um gênero ou forma imaginada. A interpretação em Dworkin, portanto, é criativa; existe um diálogo entre leitor e texto, entre juiz e norma, mas é imprescindível deixar claro que a interpretação criativa não permite que o intérprete transforme uma prática em qualquer coisa que deseje (a interpretação em Dworkin não permite espaços para solipsismos [1]), pois a história e a forma da prática ou objeto impõem limites às interpretações possíveis. Tal como ao interpretar uma obra de arte, o intérprete de um texto jurídico não pode transformar o objeto em questão no que achar mais conveniente. Para pegar um caso extremo: não se pode afirmar que em Guernica, Picasso quis pintar um banquete de musas. Da mesma forma que não se pode dizer que uma lei que institui a desigualdade de salários entre homens e mulheres está em conformidade com nossos valores sociais e constitucionais.

Dworkin, um grande apreciador das artes e da literatura e um dos juristas mais importantes da história ocidental, compreendeu a importância da transdisciplinaridade no fenômeno jurídico e cunhou muitos de seus melhores insights para a compreensão adequada do fenômeno jurídico em sua melhor luz e razão destes seus outros conhecimentos. Somente um indivíduo com os dois pés no chão – e as duas mãos também – poderia discordar da importância da literatura e da arte e de ideias como a do romance em cadeia para o direito.

 


 Referências

DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge, Massachusetts: Belknap Press, 1977.

DWORKIN, Ronald. A Matter of Principle. Cambridge, Massachusetts: Belknap Press, 1985.

DWORKIN, Ronald. Law’s Empire. Cambridge, Massachusetts: Belknap Press, 1986.

DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge, Massachusetts: Belknap Press, 2011.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1997.

GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. Rio de Janeiro: Elseveier, 2010.

STRECK, Lenio. Hermêutica jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2016.

[1] O prefácio do livro Hermenêutica jurídica e(m) crise deixa isto muito claro quando fala do juiz Hércules.

 

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