Embargos Culturais

O Curso de Argumentação Jurídica, de Manuel Atienza

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14 de janeiro de 2024, 8h00

Em tradução de Claudia Roesler, a Editora Alteridade (de Curitiba) publicou o Curso de Argumentação Jurídica, de Manuel Atienza. O jusfilósofo espanhol é também conhecido entre nós por outros livros provocadores, a exemplo de As Razões do Direito e Argumentação Legislativa. Fiz uma resenha deste último, na qual há referência a uma entrevista de Atienza publicada na ConJur, conduzida por André Rufino do Vale (autor, entre outros, de Estrutura das Normas de Direitos Fundamentais). 

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Curso de Argumentação Jurídica, na edição brasileira, informa o autor, é parte central de livro com o mesmo título, publicado na Espanha, em 2013. Na versão para o leitor brasileiro o livro é dividido em dez partes. 

Inicialmente há uma problematização sobre o Direito como argumentação, com indicação das várias concepções que há desse campo prático das relações humanas. O autor trata do formalismo jurídico, do positivismo normativista, do realismo jurídico, do jusnaturalismo e do ceticismo, concepção que de algum modo relaciona-se com o realismo, dado que os realistas são, segundo Atienza, “em diversos sentidos, céticos em relação ao papel das normas e/ou dos fatos do Direito”. 

O capítulo se encerra com uma síntese sobre as teorias da argumentação jurídica, e com as referências a Theodor Viehweg (traduzido a estudado entre nós por Tércio Sampaio Ferraz Jr.) e a Chaim Perelman (e é necessária a leitura da introdução que Fábio Ulhoa Coelho preparou para a edição brasileira do Tratado da Argumentação). 

O livro segue com reflexões em torno do que é argumentar, inclusive com a lembrança de que “o bom juiz é aquele que toma suas decisões guiado unicamente por boas razões”. Há nesse fragmento do livro explicações sobre argumentações e falácias, com referência nas Refutações Sofísticas, de Aristóteles. Nesse livro, o Estagirita cuida e compara refutações com falácias.

Atienza retoma o catálogo das falácias proposto por Aristóteles, nomeadamente, tratando das falácias formais (quando se usa uma regra de inferência válida, que na verdade não ocorreu), das falácias materiais (o critério de fixação da premissa é apenas aparentemente correto) e das falácias pragmáticas (o engano é resultado do argumento ter infringido ocultamente alguma regra que rege o comportamento de quem argumenta). Para Atienza, na conclusão do capítulo, “o conceito de falácia é eminentemente contextual”, vale dizer, “não se pode dizer em abstrato que um determinado argumento seja falacioso”

Atienza explora em seguida a forma dos argumentos, dos problemas lógicos de inferência e de inferência dedutiva, das semelhanças e diferenças entre dedução, indução e abdução, das várias classes de argumentos jurídicos, do tema da subsunção e dos limites da lógica. O autor trata também da aproximação entre razões jurídicas e razões morais, na expectativa de que se alcance a unidade de um raciocínio prático, no contexto de suas implicações jurídicas. 

Após tratar dos elementos dialéticos e retóricos da argumentação (capitulo V), Atienza expõe um conjunto de fórmulas de análise das argumentações (capítulo VI). Explora nesse ponto as chamadas questões controvertidas e os casos difíceis, abordando questões processuais, de prova, de qualificação, de aplicação, de validade, de interpretação, de discricionariedade e de ponderação. 

Seguem uma proposta para avaliação das argumentações (capítulo VII), reflexões em torno da argumentação e resolução de problemas (capítulo VIII) e uma exploração sobre os vários contextos da argumentação jurídica (capitulo IX). Nesse passo o autor cuida da argumentação judicial, da argumentação dos advogados, da argumentação no contexto da resolução alternativa dos conflitos, da argumentação legislativa e da relação da argumentação com a dogmática jurídica. 

O livro se encerra com uma entrevista/diálogo, entre imaginários “A” e “B”, que por si só vale a leitura da obra. Talvez a melhor maneira da leitura de Curso de Argumentação Jurídica seria iniciando-se pelo último capítulo. Nessa parte, um professor de Filosofia do Direito (certamente Atienza) explora vários assuntos e autores correlatos, a exemplo de Rudolf von Jhering, dos pensadores da Jurisprudência dos Conceitos, das implicações de Holmes Jr. com a lógica (para quem, em passagem emblemática, o Direito não é lógica, é experiência). 

Há elogios a Norberto Bobbio, comentários sobre o vínculo de Luigi Ferrajoli com a tradição que remonta a Thomas Hobbes, reflexões em torno do exercício da prudência (e vale a pena sentir a opinião de Atienza sobre o controvertido juiz espanhol Baltasar Garzón Real). 

Há também na entrevista uma fascinante passagem sobre as relações entre Direito e literatura. Atienza faz referências às conexões temáticas entre esses dois campos, dado que há “muitas obras literárias que têm um tema mais ou menos jurídico”; nesse momento, faz referências a Sófocles, Kafka, Orwell, Shakespeare, Cervantes, Heinrich von Kleist e Herman Melville.

Há também uma inovadora incursão sobre uma conexão metodológica entre Direito e literatura, porquanto “certos conceitos e técnicas literárias podem ser de utilidade também para o Direito”.  A relação entre Michael Kohlaas (do livro de von Kleist) com A Luta pelo Direito, de Jhering, é ilustrativa dessas conexões. 

Nesse ponto, técnicas literárias e Direito, recomendo fortemente a leitura de tese do juiz federal Roberto Lima Santos, defendida no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Londrina [1].

O autor tratou da critica genética aplicada ao Direito. Uma tese inovadora, com o título de “Aspectos estilísticos e argumentativos em sentenças judiciais sob a perspectiva da crítica genética”, que de algum modo é uma aplicação empírica da passagem de Atienza, relativa à utilização de técnicas literárias para compreensão do Direito. Publicarei oportunamente uma resenha da brilhante tese de Roberto Lima Santos.

O estudo de Atienza permanece um estímulo permanente para uma compreensão fática e instrumental para nossa atuação prática. Como o autor espanhol parece nos sugerir, somos os práticos os maiores beneficiários de estudos de especulação jurídica.


[1] http://www.bibliotecadigital.uel.br/document/?code=vtls000237996

Autores

  • é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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