Território Aduaneiro

Mais respeito na bagunça! O 'Febeapá' e a classificação de mercadorias (parte 2)

Autores

  • Liziane Angelotti Meira

    é professora pesquisadora coordenadora do Grupo de Pesquisa Capes "Família e Políticas Públicas: Projeção Econômica das Famílias" doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e mestre e especialista pela Universidade Harvard.

  • Daniela Floriano

    é mestre em Direito Tributário pela PUC-SP professora em direito tributário e aduaneiro em diversos cursos de extensão e pós-graduação pesquisadora do NEF-FVG e UFMG advogada e sócia do DFloriano Advogados.

12 de dezembro de 2023, 8h00

Recentemente, interessantes reflexões sobre classificação de mercadorias foram formuladas nesta coluna por Rosaldo Trevisan. [1] Em justíssima homenagem à sagacidade do escritor e cronista Sérgio Marcus Rangel Porto, mencionado artigo buscou explorar o “festival de besteiras que assola o país” no que diz respeito ao tema da classificação de mercadorias. Crenças de que órgãos julgadores — administrativos ou judiciais — são responsáveis por dizer o que é um produto, que planejamentos tributários podem ser estruturados a partir de simples mudanças de embalagem ou, ainda, que opiniões técnico-científicas, emitidas via laudos periciais, seriam suficientes para juridicamente classificar uma mercadoria, foram alguns dos exemplos de “besteiras” frequentemente reproduzidas sem o menor pudor ou cautela pelos debatedores de plantão.

Os exemplos explorados no referido texto reúnem — conforme a expressa intenção do autor — apenas algumas das besteiras frequentemente reproduzidas quando o assunto é a classificação das mercadorias. Por existirem, entretanto, muitas outras amostras que merecem integrar o nosso “Febeapá das classificações” é que se prossegue neste artigo.

Spacca

De fato, debater sobre classificação fiscal — como apressadamente muitos costumam chamar, diria Porto, dá ibope. E como todo bom assunto que alcança alguma notoriedade, tende a provocar a manifestação de opiniões descompromissadas, grande parte emitidas por quem nunca teve acesso à legislação que regulamenta o assunto e por iniciantes, ávidos a discorrem sobre como a “Nesh classifica (!)”. Estes são os ingredientes que recheiam o nosso festival.

Em fóruns que se estendem de grupos de WhatsApp a notícias jornalísticas em respeitados veículos de circulação nacional, pululam “cases” em que nitidamente se observa a ansiedade dos “debatedores” em expressar suas opiniões, ainda que pessoais e subjetivas, desprovidas de qualquer preocupação ou respeito científico com tema. Assim, delibera-se sobre a classificação jurídica de uma mercadoria com fundamento em um suposto e invocado “senso comum”, no alto de convicções pessoais sobre se Crocs é sapato impermeável ou sandália de borracha, se o sabonete Asepxia é de uso comum ou medicinal, ou ainda, se o Sonho de Valsa é chocolate ou waffer. Os argumentos levantados em defesa de uma ou de outra classificação entretêm e impulsionam alguns a se julgarem seguros e confiantes para expressarem o que, sobre qualquer viés que se observe, não deixa de ser uma crença pessoal.

Contudo, a tarefa de classificar juridicamente uma mercadoria [2] nem de longe autoriza ou mesmo merece ser confundida com o nome da coluna do então vespertino jornal Última Hora onde Porto publicava suas crônicas: “Fofocalizando”. Definitivamente não há espaço, na atividade de classificação de uma mercadoria, para pontos de vista, convicções ou crenças subjetivas, desprovidas de embasamento legal.

Assim como qualquer tema que demanda algum aprofundamento técnico para a sua compreensão, identificar a adequada nomenclatura harmonizada de um produto não é encargo que pode ser  atribuído a qualquer pessoa ou mesmo exercido de forma arbitrária de despretensiosa. Arrisca-se afirmar que uma dentre as causas de tamanha dissensão sobre o tema decorre, justamente, da crença infundada de que é possível identificar alguma subjetividade no trabalho do classificador, ignorando a existência de normas legais, a maior parte delas de natureza internacional, que devem ser estritamente observadas [3].

Nesse cenário, meses atrás, um respeitado veículo de comunicação nacional publicou matéria jornalística em que se esbravejava: “a reforma tributária precisa prever também uma simplificação do processo de classificação fiscal”. A inadequada fala do então entrevistado certamente induziu os leitores inadvertidos a pressuporem a possibilidade de alteração, por meio de legislação nacional, de normas natureza internacional, como é a Convenção Internacional do Sistema Harmonizado de Designação e de Codificação de Mercadorias. Muitos dos leitores da matéria certamente acreditaram que a reforma tributária peca por alcançar o tema da classificação de mercadorias.

Nesse mesmo sentido, recorrentemente somos surpreendidos com vídeos que relacionam a complexidade do sistema tributário brasileiro à existência de mais de 10 mil códigos (!) necessários para nomear as mercadorias. À despeito de se esclarecer que mais de 5 mil destes códigos são uniformemente adotados em ao menos 98% de todas as relações comerciais de mercadorias firmadas no mundo. Sugere-se um simples exercício de reflexão: qual não seria a insegurança e demora das relações, se fosse necessário proceder, para cada operação, a tradução de cada uma das mercadorias que ingressem ou saiam do pais? [4]

Ainda nessa mesma linha, reduzir os debates sobre classificação de mercadorias à alcunha de “casos pitorescos” — como recentemente também o fez outro comentarista no mesmo jornal — igualmente se afigura estratégia atentatória à própria ordem jurídica brasileira, aprofundando, de igual sorte, a distância em entre os opinadores de plantão e os classificadores.

No mesmo caminho, apontar uma determinada classificação como sendo “mais adequada” sem sequer ter tido acesso à composição da mercadoria, por exemplo, beira o descomprometimento. Invocar funções ou finalidades de um produto com base na referência de utilização particular ou familiar (“Eu uso para …”, “Minha avó usava …”) pode até fazer render uma boa conversa na mesa de bar, mas está muito longe de orientar o percurso que obrigatoriamente precisa ser percorrido para que se classifique, adequadamente, uma mercadoria. Alguns se arriscam até a apelar para a formação dos preços — repise-se, nunca ter visto uma ficha técnica — seguramente bradando a adequada classificação (fosse a função do desodorante, deveria ser barato que um hidratante).

São tantos os exemplos das “besteiras” sobre o tema em análise que se pretendêssemos  reuni-los em coletânea, certamente superariam, em volume, a trilogia do Febeapá escrita por Porto na década de 60. À despeito da ânsia natural do ser humano em explorar o que não conhece, e a exemplo do que as citadas crônicas que buscavam relevar — situações absurdas que ocorriam durante o período militar —, é certo que já não se pode mais aceitar, sem ressalvas, que qualquer pessoa comente o que bem entender quando o assunto é identificar a adequada nomenclatura de uma mercadoria.

O ponto de partida para que alguém se alce à condição de “debatedor/classificador” é necessariamente conhecer, previamente, do produto sobre o qual serão emitidas suas afirmações. Sem nunca sequer ter tido acesso à composição química do “desodorante/hidratante” analisado, por exemplo, torna-se absolutamente impossível vociferar sobre a sua função com vistas a fundamentar esta ou aquela posição. A tarefa de classificar uma mercadoria não é mística ou visionária, é lógica, exata, respeita e fundamenta-se em uma metodologia própria.

Outro detalhe importante: não é porque se conhece, sob o viés técnico ou científico, do produto que milagrosamente se está apto a classificá-lo juridicamente, conforme as normas jurídicas internacionais devidamente internalizadas no sistema jurídico brasileiro. Há uma distância instransponível entre descrever tecnicamente o produto e classificá-lo juridicamente. Diz-se intransponível pois o objetivo das normas legais sobre classificação não é atribuir ao produto classificado uma denominação mais próxima da sua utilidade ou função. Pelo contrário, inclusive. Poucas são as posições no Sistema Harmonizado que fazem referência expressa à mercadoria tomando em consideração sua destinação ou utilidade. Na maioria absoluta dos casos, é irrelevante identificar como você ou sua avó fazem uso daquela mercadoria.  Ainda aqui, um alerta importante extraído da obra de Porto: “Consciência é como vesícula: a gente só se preocupa com ela quando dói”.

Por fim, nunca é demais lembrar que a classificação das mercadorias nem de longe pode ser encarada como vilã nos debates sobre simplificação e facilitação do sistema tributário brasileiro. Ao aprofundar-se no estudo das classificações, é possível verificar que a própria Convenção Internacional do Sistema Harmonizado, em seu preâmbulo, não faz absolutamente nenhuma referência à utilização da nomenclatura harmonizada como instrumento de arrecadação fiscal. A bem da verdade, na única oportunidade em que se manifesta sobre custos o faz sob a óptica das despesas que necessariamente seriam acrescidas aos processos de importação e exportação de mercadorias fosse necessário proceder à eventuais traduções de idiomas.

Em resumo, a tarefa de classificar juridicamente uma mercadoria têm por objetivo a uniformização, a harmonização e, por consequência, a facilitação do comércio dos bens tangíveis e assim cumpre, até hoje, este papel. Incentivar os debates vazios e desprovidos de qualquer respeito científico sobre o tema vai na linha do que já nos alertava o cronista re-homenageado neste texto: “ou o Brasil acaba com a besteira, ou a besteira acaba com o Brasil”.

 

[1] “O Febeapá em matéria de classificação fiscal”. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-jul-18/territorio-aduaneiro-febeapa-materia-classificacao-mercadorias#_ednref7. Acesso em 31 do out de 2023

[2] Floriano, Daniela. A classificação jurídica das mercadorias. In: Direito Aduaneiro Contemporâneo: Temas de impacto no Direito Aduaneiro e Comércio Exterior. Coord. Robson Crepaldi, Rodrigo Alexandre Lazaro Pinto e Sidnei Lostado. São Paulo: Editora Dialética, 2022.

[3] Para adequadamente realizar a classificação de uma mercadoria, o profissional deve se orientar, obrigatoriamente, pelas Regras Gerais para Interpretação do Sistema Harmonizado (RGIs), enunciadas na Convenção Internacional do Sistema Harmonizado (Decreto nº 97.409/1988), e pelas Regras Gerais Complementares, no âmbito dos debates do 7º e 8º dígito numérico, inseridos pelo Mercosul. Elementos subsidiários, tais como Notas Explicativas do Sistema Harmonizado (NESH), Pareceres de Classificação emitidos pela Organização Mundial das Aduanas, Soluções de Consulta publicadas pelo Centro de Classificação de Mercadorias (CECLAM) igualmente integram os instrumentos legais obrigatoriamente necessários para classificar uma mercadoria.

[4] De acordo com os dados oficiais divulgados pelo Ministério da Economia, em 2022 foram registradas aproximadamente 4,7 milhões de declarações de importação e exportação. Disponível em: “Balanço Aduaneiro 2022 – Janeiro a Dezembro”, no link: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/relatorios/aduana/balanco-aduaneiro-2022.pdf. Acesso em 18.11.2023.

 

 

Autores

  • é professora, pesquisadora, coordenadora do Grupo de Pesquisa Capes "Família e Políticas Públicas: Projeção Econômica das Famílias", doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e mestre e especialista pela Universidade Harvard.

  • é sócia do escritório DFloriano Advogados, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, professora de Direito Aduaneiro e Tributário nos cursos de extensão e pós-graduação do Ibet, IBDT, PUC-Cogeae, EPD, Ebradi, Apet e ABDConst e pesquisadora do NEF FGV-SP e UFMG.

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