Território Aduaneiro

O "Febeapá" em matéria de classificação de mercadorias

Autor

  • Rosaldo Trevisan

    é doutor em Direito (UFPR) professor assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA) do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI) auditor-fiscal da Receita Federal membro especialista do Carf e membro da Junta Diretiva da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).

18 de julho de 2023, 8h00

Neste 2023, mais precisamente em 11 de janeiro, completaram-se 100 anos do nascimento de Sérgio Marcus Rangel Porto, escritor, cronista, jornalista e radialista que publicou 14 livros, entre eles As Cariocas [1] e Febeapá, um dos dez livros escritos sob o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, adotado em 1951, com inspiração em Serafim Ponte Grande, personagem de Oswald de Andrade [2]. O texto de hoje é uma homenagem a Sérgio Porto, buscando incorporar seu espírito irônico e provocador, ainda que sem sua genialidade.

Spacca
O pensamento sagaz e apimentado de Sérgio Porto deu origem a personagens como "A Velha Contrabandista", em crônica na qual se exploram as agruras de uma velhinha ao passar pela alfândega, montada em uma "lambreta", trazendo "sacos de areia" [3].  Mas a aproximação que será aqui feita com o Direito Aduaneiro trata de outro tema: a classificação de mercadorias.

Nos Febeapá (“Festival de Besteira que Assola o País”) 1, 2 e 3, escritos em 1966, 1967 e 1968 (ano em que o autor morreu, aos 45 anos, vítima de infarto), reúnem-se crônicas repletas de ironias e deboches com o período inicial do regime militar no Brasil [4]. Nenhuma delas foi sobre classificação de mercadorias.

Nós é que publicamos, aqui mesmo na ConJur, sobre classificação de mercadorias, textos como o de Liziane Meira e Daniela Floriano ("Vamos falar sobre classificação de mercadorias?") [5], e o de Leonardo Branco ("Perder-se no labirinto: o erro na classificação de mercadorias e o Carf") [6], agora reunidos na coletânea Território Aduaneiro [7]. Mas o rastro do vínculo com o "Febeapá" está escondido em nota de rodapé publicada em coluna em homenagem aos despachantes aduaneiros ("Um guia na selva aduaneira: o papel do despachante aduaneiro") [8].

A nota de rodapé surge após o seguinte excerto do texto: "Só um profissional capaz e tecnicamente preparado pode assessorar o importador e a ele explicar, v.g., que classificar uma mercadoria na nomenclatura não é 'dizer o que ela é'". E o conteúdo da nota, que aqui transformaremos em coluna, é o seguinte:

"Esse equívoco é frequente em veículos de comunicação e no público leigo em matéria aduaneira, que muitas vezes não compreendem a distinção entre 'dizer o que é uma mercadoria' (atividade técnica que, dependendo do grau de complexidade, pode demandar auxílio de perícia) e classificar tal mercadoria (atividade jurídica de interpretar em que código numérico da nomenclatura deve ser classificada uma mercadoria, segundo as Regras Gerais Interpretativas, e instrumentos complementares, presentes em tratados internacionais/regionais). 'Dizer o que é' um doce 'Romeu e Julieta' (50% queijo e 50% goiabada) não parece difícil, mas pode demandar perícia (por exemplo, para verificar se os percentuais estão corretos ou se a composição de cada metade corresponde à substância declarada). No entanto, classificar na NCM o doce 'Romeu e Julieta' não é atividade a cargo de perícia, ou de órgãos como a Secex ou a Anvisa. A legislação, no Brasil, incumbe tal atividade de classificação à RFB, que pode inclusive solucionar dúvidas do importador antes da concretização da operação, para auxiliá-lo (tema hoje disciplinado na IN RFB 2.057/2021), em alinhamento com as melhores práticas internacionais (v.g., as 'soluções antecipadas' tratadas no art. 3.9.a.i do AFC/OMC) [9]. Por fim, agregue-se sugestão de resposta aos que endossam a catilinária '…tinha que ser no Brasil…', acreditando que a classificação de mercadorias é um problema tupiniquim: os seis dígitos iniciais do código NCM são fruto da Convenção do Sistema Harmonizado, vigente em 160 países, e aplicável em 212 territórios aduaneiros".

A nota permanece atual, e precisa aqui ser enfatizada, tendo em conta o "Festival de Besteira que Assola o País", atualmente, em matéria de classificação de mercadorias.

Já alerto o leitor que não tratarei de hard cases de classificação de mercadorias, questões que envolvem controvérsias e polêmicas sobre a interpretação, v.g., de Notas de Posição e de Notas Explicativas do Sistema Harmonizado, ou Pareceres de Classificação. Não tenho a mínima pretensão de chamar de "besteira" as posições jurídicas divergentes da minha (conduta que lamentavelmente é também comum, hoje, em publicações).

Reservarei a palavra "besteira" exclusivamente para o que é flagrantemente incorreto, para o erro óbvio e ululante, no linguajar de Nelson Rodrigues [10].

A "Besteira"-mor é a crença de que os órgãos julgadores, administrativos e/ou judiciais, "dizem o que é…" uma determinada mercadoria. Por exemplo, em um texto (e há vários assim!) que informe "Carf diz que focinho de porco é tomada", há um erro técnico grave, ao se imaginar que o Carf teria competência para estabelecer o que é um "focinho de porco" e/ou o que é uma "tomada", quando o tribunal administrativo tem competência apenas para se manifestar sobre a classificação de mercadorias segundo as regras do Sistema Harmonizado, que é fruto de Convenção promulgada no Brasil pelo Decreto 97.409/1988, atividade indiscutivelmente jurídica (interpretação de normas derivadas de tratado internacional). O segundo erro grave, acentuado por falácia ou até parcialidade, em um texto do gênero do aqui descrito, é partir da perigosa premissa de que se sabe com certeza, de antemão, que a mercadoria analisada pelo Carf era efetivamente um "focinho de porco", mas que ainda assim o tribunal disse ser "tomada", contrariando "…a realidade do mundo dos fatos".

Pois bem, registre-se e enfatize-se: o Carf (ou qualquer outro tribunal, administrativo ou judicial) não pode dizer que "o que é" determinada mercadoria. Pode apenas, depois de saber suas características e composição, se necessário com auxílio de perícia em tal tarefa, interpretar qual é a sua classificação, segundo as citadas regras do Sistema Harmonizado (SH) e normas complementares, atividade, repita-se para reforçar a ideia, indiscutivelmente jurídica.

E, sendo jurídica a atividade de classificar mercadorias no SH, interpretando o teor das regras e normas presentes em tratado internacional, não faz sentido algum que o julgador, administrativo ou judicial, peça para que um perito efetue a classificação de uma mercadoria. Um pedido nesse sentido equivaleria a terceirização da atividade judicante, deixando ao perito a interpretação da norma presente na Convenção do SH e em regramentos jurídicos complementares.

Ou seja, um laudo sobre classificação de mercadorias é um parecer jurídico, enquanto que um laudo pericial sobre as características e a composição da mercadoria, sem se imiscuir nas regras do SH, é um parecer técnico. Mesclar esses dois universos é, para usar o linguajar de Sérgio Porto, "besteira".

Outra boa amostra do "Febeapá", que gera muitos comentários na Internet, é a crença de que existem "cases" de planejamento tributário alterando a classificação da mercadoria pela simples mudança de embalagem de apresentação, sem alteração da composição e das características do produto. As mudanças de classificação, inclusive a que o leitor deve estar imaginando, ao ler as linhas acima, ocorrem somente se alterada também a composição e/ou as características intrínsecas da mercadoria.

Quando encontrar um texto com um planejamento "genial" de classificação, saiba: o pressuposto básico do Sistema Harmonizado é o seguinte: "Para cada mercadoria existente no universo ou que ainda existirá, existe uma e tão-somente uma classificação correta". A classificação, assim, não é contingencial, à escolha do cliente. O cliente pode, no máximo, passar a importar outra mercadoria, o que, aí sim, demandaria nova classificação.

Ainda no reino do "Febeapá", existe crença de que órgãos domésticos como a Anvisa, o Inmetro e a Suframa seriam aptos a classificar mercadorias, em detrimento da classificação adotada internacionalmente pelas Aduanas. Não bastasse essa conclusão mesclar "o que é" (técnico) com "onde se classifica no SH" (jurídico, como aqui excessivamente endossado), convém esclarecer que o SH foi pensado como nomenclatura mundial, no âmbito do Conselho de Cooperação Aduaneira (hoje conhecido como "Organização Mundial das Aduanas" – OMA), e que a representação no Comitê do SH incumbe às Aduanas, seja no Brasil ou em outro dos 160 membros da Convenção.

A nomenclatura, assim como as notas, pareceres e demais instrumentos do SH, são redigidos em Bruxelas, na OMA, por membros das Aduanas, que sequer sabem quais são as alíquotas das mercadorias classificadas, ou os tratamentos administrativos, em cada país. Essa é exatamente a neutralidade que se busca na classificação de mercadorias. Assim são determinados os seis dígitos iniciais do código NCM, com base no SH, com validade mundial (sendo os dois restantes regionais, no âmbito do Mercosul).

Portanto, se cada órgão doméstico de cada país pudesse eleger uma classificação distinta da internacionalmente adotada no SH (ou pudesse usar definições diferentes das adotadas internacionalmente), de nada valeria a Convenção celebrada no âmbito da OMA, seguida por 212 territórios aduaneiros. Se "freezer", "cosmético" ou "cimento Portland" significar, para algum órgão do Brasil, algo diferente do que significa para efeitos do SH, mundialmente, não deveria haver dúvida de que prevalece o SH, derivado de tratado internacional específico. É certo que tais órgãos, se anuentes, podem restringir ou proibir a importação de determinadas mercadorias, ou tecnicamente "dizer o que elas são", para tais efeitos (proibições/restrições/licenças), mas isso está bem distante de classificá-las segundo regras jurídicas de um acordo do qual o órgão não participou, e nem tem representação em Comitê Técnico.

Aliás, quem detém, no Brasil, a competência legal para responder consultas sobre classificação de mercadorias, é a RFB (Lei 9.430/1996 e Decreto 70.235/1972), exatamente o órgão que participa do Comitê do Sistema Harmonizado, na OMA.

A solução de consulta, no Brasil, é vinculante apenas contra o fisco, sendo frequentes os casos em que o importador recorre às instâncias administrativas e judiciais em autuações e pedidos de restituição para os quais já houve solução de consulta desfavorável às suas pretensões [11].

Cabe ainda agregar que o procedimento de solução de consulta evoluiu muito nos últimos anos, passando as decisões a serem colegiadas — no âmbito do Centro de Classificação fiscal de Mercadorias (Ceclam) [12] —, emitidas por especialistas no assunto (muitos deles representantes do Brasil no Comitê do SH).

Hoje, vários dos temas sobre classificação de mercadorias que ainda ensejam algum debate em colegiados do Carf, estão sedimentados em posicionamentos do Ceclam [13], até em manifestações da OMA.

A importância da consolidação dos posicionamentos sobre classificação de mercadorias no Brasil (principalmente dos temas que ainda são polêmicos), e de que tais posicionamentos estejam alinhados ao SH, reside não só no cumprimento de tratados, mas na própria defesa da livre concorrência, evitando que determinadas empresas, adotando classificação (incorreta) que destoe da utilizada em seu segmento, possam obter vantagem competitiva desleal [14].

O melhor exercício para alguém que deseje classificar corretamente uma mercadoria no Sistema Harmonizado, é utilizar a nomenclatura, e não a tarifa, o que permite que se resista à tentação de saber a alíquota dessa ou daquela aparente possibilidade de classificação antes de aplicar as regras do SH.

Como antídoto a uma "besteira final", cabe destacar que as regras de classificação não são "macetes" que podem ser ignorados, e que a classificação não deve ser efetuada por aproximação, ou por busca de palavras (tentações frequentes ao público leigo), mas seguindo-se a Convenção do SH, determinando-se, exatamente nessa ordem, a posição (quatro dígitos iniciais), a subposição de primeiro nível (quinto dígito), a subposição de segundo nível (sexto dígito), o item (sétimo dígito) e o subitem (oitavo dígito), sendo apenas comparáveis os desdobramentos de mesmo nível.

É claro que esse não é um procedimento simples, e exige estudo e preparo, analisando-se a classificação da mercadoria não só no Brasil, mas internacionalmente (nos seis primeiros dígitos) e regionalmente (nos dois dígitos finais), e as normas complementares para interpretação do SH. Classificação de mercadorias, definitivamente, não é um tema doméstico.

Mas, para quem desejar um jeito mais fácil de classificar, bem ao estilo "Febeapá", há vários "cases" curiosos (e, acrescente-se, quase tão divertidos como os textos de Sérgio Porto) na Internet. Fica a dica.

 


[1] Que deu origem ao filme homônimo, dividido em três partes, sob a direção de Fernando de Barros, Walter Hugo Khouri e Roberto Santos, que contou com a participação de Norma Bengell, e com cartaz de divulgação com a inesquecível arte de Ziraldo.

[2] Agência Brasil. Sérgio Porto, 100 anos: o homem que criou Stanislaw Ponte Preta. Disponível (áudio e texto) em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/cultura/audio/2023-01/sergio-porto-100-anos-o-homem-que-criou-stanislaw-ponte-preta. Acesso em 16.jul 2023.

[3] O leitor que ficar curioso pode ler o texto, em "Primo Altamirando e Elas", p. 79, ou em: https://portal.educacao.go.gov.br/wp-content/uploads/2020/03/8%C2%BA-ANO-LP-I.pdf. Acesso em 16.jul 2023.

[4] Uma amostra dos "Febeapás" está disponível em: https://www.companhiadasletras.com.br/trechos/13843.pdf. Acesso em 16.jul 2023.

[7] Publicada pela Ed. Amanuense, em 2023, com adição de notas, comentários e índice alfabético remissivo.

[9] Sobre esse tema, a coluna recente de Fernando Pieri (Consultas fiscais dos importadores e as soluções antecipadas na aduana”), disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-jul-04/territorio-aduaneiro-solucoes-antecipadas-aduana. Acesso em 16.jul 2023.

[10] No "Febeapá 1" (p. 26), Sérgio Porto chega a mencionar Nelson Rodrigues em trecho com a ironia que é peculiar a ambos: "O ministro da (que Deus nos perdoe) Educação, sr. Suplicy de Lacerda, que viria a se tornar um dos mais eminentes membros do Festival, reunia a imprensa para explicar aquilo que o coleguinha Nelson Rodrigues apelidou de óbvio ululante. Disse que ia diminuir os cursos superiores de cinco para quatro anos. E acrescentou: 'Agora, os cursos que tinham normalmente cinco anos, passam a ser feitos em quatro'. Não é bacaninha?".

[11] Recordo do Acórdão 3403-003.186, em que o colegiado afastou unanimemente um resultado de solução de consulta (da época em que ainda era monocrático o procedimento). Em tal precedente, em declaração de voto, aclarei as diferenças entre os efeitos da consulta e os efeitos do julgamento efetuado pelo Carf.

[12] Recomendo ao leitor o Compêndio de Mentas do CECLAM, que pode dirimir muitas dúvidas de classificação, disponível em: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/aduana-e-comercio-exterior/classificacao-fiscal-de-mercadorias/compedio-ceclam.pdf. Acesso em 16.jul 2023.

[13] Recentemente, na Câmara Superior de Recursos Fiscais do CARF, foi tratado um desses temas (pneus para furgões), com desfecho unânime, no Acórdão 9303-014.096, alinhado com mais de uma dezena de Soluções de Consulta emitidas pelo Ceclam, inclusive de seu órgão central, o comitê. O julgado é um exemplo de debate travado à luz do Sistema Harmonizado, expurgadas as confusões que são bem descritas nesta coluna.

[14] Está em vias de publicação, no prelo, obra coletiva de orientandos nossos em pós graduação na UCB, que exploram, entre outros, três temas aqui lembrados em relação a classificação de mercadorias: o aspecto concorrencial é o primeiro deles, em artigo de Sura Helen Marcos Cot, vice-presidente da 3ª Turma do Ceclam; a questão da competência de outros órgãos para classificar em análise crítica a precedente do STJ é avaliada por Leandro Pereira de Oliveira, chefe da Divisão Aduaneira da 1ª Região Fiscal; e a classificação fiscal de peças anatômicas humanas, debatendo o resultado da Solução de Consulta 98.114/2020, é o assunto explorado por Sérgio Rodrigues Mendes, especialista do Carf.

Autores

  • é doutor em Direito (UFPR), professor, assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA), do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), auditor-Fiscal da RFB, membro especialista do Carf e membro da Junta Diretiva da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!