Público & Pragmático

Compartilhamento de posts e a inviabilidade de ampliação da conectividade

Autores

  • Daniel Gabrilli de Godoy

    é doutorando em Direito pela USP mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP master em Diritto Privato Europeo pela Università degli Studi di Roma pós-graduado em Direito Administrativo pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo e pós-graduado em Políticas Públicas pela Escola Paulista de Direito de São Paulo. Bacharel em Direito pela PUC-SP.

  • Mariana Carnaes

    é advogada especialista em Direito Regulatório membro da Infrawomen Brazil e da Comissão do Acadêmico de Direito da OAB-SP mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP doutora em Direito Administrativo pela USP e autora dos livros Compromisso de Ajustamento de Conduta e a Eficiência Administrativa.

3 de dezembro de 2023, 8h00

“Esta semana vou voltar ligar pra ela
Vou marcar um novo encontro no lugar que a gente goste
Um novo encontro sei que vou deixar marcado
Num lugar acostumado debaixo daquele poste
Poste de luz que fica na avenida
A sua luz colorida serve pra enfeitar nós dois
O poste velho madeira já apodrecida
Traz recordações sentidas do tempo que já se foi”

Poste de Luz — Bob e Robison

Quando a música Poste de Luz foi lançada, em 1986, os postes eram de madeira e as lâmpadas amareladas.

Quase 40 anos depois, a realidade mudou muito. Os postes de luz, mantidos pela administração pública municipal (ainda que por meio de concessão), em muitos lugares se modernizaram e não são mais de madeira, como mencionado na música e as lâmpadas são de LED.

Mas e os postes de energia? O quanto avançamos?

Antes de adentrar no cenário atual dos postes, cabe retomar um pouco da responsabilidade sobre os postes de energia.

Pois bem. A exploração dos serviços e instalações de energia elétrica compete à União, nos termos do artigo 21, XII, b, da Constituição.

Ainda, por força do artigo 3º, II, da Lei nº 9.427/96, compete à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) a contratação de concessionárias para a produção, transmissão e distribuição de energia elétrica.

O termo “produção” é autoexplicativo, a transmissão é a atividade de transporte da unidade de produção/geradora até a estação de distribuição e, por fim, a distribuição é o que viabiliza a chegada da energia elétrica até as casas dos indivíduos.

A atividade das distribuidoras é, então, aquela mais “fiscalizada” no dia a dia. Tanto é assim que, mesmo quando ocorre falta de luz não atribuível à distribuidora, mas às transmissoras ou geradoras de energia, como foi a situação noticiada no último mês de agosto, sob a ótica da população a culpa é sempre da distribuidora, aquela a quem o usuário paga pelo serviço.

A famosa frase “mas para cobrar eles são bons”, sem dúvida, já foi dita em muitas casas brasileiras.

Voltando-se, então, às distribuidoras, tem-se que os serviços são prestados em razão dos contratos celebrados entre as empresas e a Aneel, observadas as áreas concedidas.

A título de exemplo, muitos municípios do estado de São Paulo, incluindo a capital e a região do ABC, têm por distribuidora a Enel, antiga Eletropaulo, a quem fora concedida a distribuição de energia elétrica na região definida pela Resolução Aneel nº 72/98 por força do Contrato de Concessão nº 162/98, bem como Decreto nº 27/98. O contrato, com prazo de 30 anos, deve permanecer vigente, ao menos, até 2028.

Sendo a Enel a distribuidora, os postes de energia dos municípios que integram a sua área de concessão correspondem à infraestrutura que lhe pertence. Neste sentido, a ela cumpre instalar a infraestrutura e mantê-la, assim como ocorre nos demais estados, sem prejuízo das hipóteses em que houver deslocamento ou remoção de poste para atendimento de interesses privados, quando o custo será atribuído ao interessado, nos termos do artigo 110, da Resolução Normativa Aneel nº 1000/21.

Ocorre que, muito embora a infraestrutura seja da distribuidora, não é somente ela que a utiliza.

Os postes, historicamente, são utilizados também, por exemplo, pelas empresas de telecomunicação, o que demanda a conciliação de interesses de setores distintos.

Não por outra razão, já foi sinalizada há muitos anos a preocupação da Aneel, Anatel e ANP no sentido de regulamentar situações como essa, em que há uma demanda pelo compartilhamento de infraestrutura, tendo sido editada a Resolução Conjunta nº 1/99.

O compartilhamento depende da observância dos termos da resolução e pressupõe a otimização de recursos, redução de custos operacionais e da disponibilização da capacidade excedente, ou seja, ele é cabível desde que não comprometa a atividade finalística do detentor da infraestrutura: a distribuição de energia elétrica. Isso é o que consta da Resolução Normativa Aneel nº 1.044/22.

Considerando, assim, a necessidade de conciliação de interesses de setores diferentes, especialmente elétrico e telecomunicações, se mostrou necessário também às agências reguladoras fixarem preço de referência para o compartilhamento de postes, o que foi estabelecido na Resolução Conjunta nº 4/14, da Aneel e Anatel.

As receitas advindas do compartilhamento, porém, demandam o seu compartilhamento em prol da modicidade tarifária, e nesse sentido se tem, por exemplo, a quinta subcláusula da cláusula primeira do já citado contrato da Enel.

A já mencionada Resolução Normativa Aneel nº 1.000/21, previu expressamente no artigo 629, § 1º, inciso V, que o compartilhamento de infraestrutura configura atividade acessória própria, o que significa, nos termos da resolução, que é “prestada somente pela distribuidora e sujeita à fiscalização da Aneel”. E tais atividades têm, por repercussão tarifária, como já mencionado, a necessidade de contribuir para a modicidade (artigo 645).

O Proret (Procedimentos de Regulação Tarifária) da Aneel conta com o Módulo 2.7 — Outras Receitas (Anexo XX), no qual é previsto que o compartilhamento das receitas será de 60% da receita bruta, sendo que “um percentual de 40% será atribuído à concessionária, com fins de estimular a eficiência na prestação do serviço, enquanto a outra parcela será destinada aos consumidores do serviço de distribuição de energia elétrica”.

Trazido todo este histórico fica evidente que (1) há uma certa posição de dominância do setor elétrico, como detentor da infraestrutura do poste; e (2) o compartilhamento de infraestrutura entre setores é discussão de longa data e necessária ante a essencialidade dos serviços que deste equipamento dependem.

Veja. Como indicado acima, a primeira resolução conjunta é de 1999, quando não se pensava, por exemplo, na facilidade de acesso à internet e transmissão de dados atualmente verificada, na utilização de fibra óptica, dentre outras inovações.

Mesmo desde a edição da Resolução Conjunta nº 4/14, da Aneel e Anatel, muita coisa mudou.

O que foi estabelecido para fins de compartilhamento da infraestrutura vem gerando grandes ganhos às distribuidoras de energia elétrica, inclusive como recentemente analisado por João Rezende, ex-presidente da Anatel, tendo atuado junto à agência quando da edição da mencionada resolução [1].

Isso porque, se quando editada a norma eram poucas as empresas que necessitavam utilizar os postes, hoje esse número aumentou e, consequentemente, aumentou os ganhos das empresas do setor elétrico — uma rápida olhada no emaranhado de fios que se tornaram os postes comprova isso facilmente.

Assim, se é verdade que a edição da resolução conjunta estabelecendo preço de referência há dez anos fazia sentido frente à realidade dos setores, atualmente é necessário repensar o modelo, especialmente tendo em vista a realidade de cada empresa.

Inclusive, no ano passado, o Ipea desenvolveu interessante estudo refletindo sobre as possíveis alternativas para reduzir os conflitos existentes em função do compartilhamento de infraestrutura dos postes, como, por exemplo, a criação de um operador neutro voltado à gestão de tal compartilhamento, maior transparência, dentre outros, chamado “Avaliação dos Conflitos do Compartilhamento de Postes entre Setores de Distribuição de Energia e Telecomunicações” [2].

É possível concluir, com facilidade, que não há resposta simples, rápida e tampouco única para assegurar que se tenha um melhor caminho para o compartilhamento da infraestrutura dos postes, mas as discussões devem ser mais bem aprofundadas.

A atuação do setor elétrico, setor de telecomunicações e provedoras de internet é o que viabiliza, no mundo digital, o desenvolvimento de nossas atividades diárias.

A época dos postes de madeira se foi para a iluminação, assim como para os postes de energia as necessidades mudaram, se ampliaram.

O papel das agências reguladoras, muito bem desempenhado quando surgiu a necessidade de regulamentar o compartilhamento de infraestrutura, deve ser retomado e repensados os custos atribuídos pelo setor elétrico aos demais, sob pena de benefício de um, em detrimento dos demais.

Sob a ótica da Anatel, a medida estaria alinhada com o seu Plano Estratégico para os anos de 2023-2027, mais especificamente com as diretrizes da política pública de estímulo a negócios inovadores, expansão e compartilhamento de infraestrutura.

É adequando as normas à realidade da utilização dos postes atualmente que se viabilizará o propósito de “conectar o Brasil para melhorar a vida de seus cidadãos”, conforme definido no Plano Estratégico. Essa evolução nos estudos com vistas a melhor regular a atividade e compartilhamento dessa infraestrutura é essencial para a economia digital que cresce exponencialmente de importância no Brasil e no mundo.


[1] Disponível em: < https://www.telesintese.com.br/rezende-o-subsidio-de-telecom-para-o-setor-eletrico-no-uso-dos-postes/> Acesso em: 05/09/2023.

[2] MARTINS, Bruna de Abreu. KUBOTA, Luis Claudio. Barros, Luiz Alexandre Moreira. ROSA, Mauricio Benedeti. Texto para discussão: Avaliação dos conflitos do compartilhamento de postes entre os setores de distribuição de energia e telecomunicações. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.- Brasília : Rio de Janeiro : Ipea, 2022.

Autores

  • é doutorando em Direito pela USP, mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP, master em Diritto Privato Europeo pela Università degli Studi di Roma, pós-graduado em Direito Administrativo pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo e pós-graduado em Políticas Públicas pela Escola Paulista de Direito de São Paulo. Bacharel em Direito pela PUC-SP.

  • é advogada especialista em Direito Regulatório, membro da Infrawomen Brazil e da Comissão do Acadêmico de Direito da OAB-SP, mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP, doutora em Direito Administrativo pela USP e autora dos livros Processo administrativo negocial e Compromisso de Ajustamento de Conduta e a Eficiência Administrativa.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!