Opinião

O HC nº 208.240 e o debate sobre o racial profiling no Brasil

Autor

  • David Pimentel Barbosa de Siena

    é professor de Criminologia Direito Penal e Direito Processual Penal da Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira Cobra (Acadepol) da Strong Business School (Strong FGV) da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e da Universidade Nove de Julho (Uninove) doutorando e mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC) delegado de polícia do estado de São Paulo (PC-SP).

2 de dezembro de 2023, 15h17

O conceito de racial profiling diz respeito à ação de agentes públicos, principalmente policiais, que utilizam a raça, etnia ou indicadores relacionados como critério para fundamentar suspeitas criminais. Em termos mais específicos, o perfil racial refere-se à prática de selecionar ou abordar um indivíduo com base predominantemente em sua raça, em detrimento de características ou comportamentos suspeitos mais apropriados.

Quando os policiais utilizam de maneira inadequada a raça como critério em suas tomadas de decisão, isso pode ser encarado como “policiamento com viés racial” ou simplesmente racial profiling. Com relação as “causas” das disparidades raciais no sistema de justiça criminal, embora diversos fatores possam ser considerados, os dados de crimes e pesquisas de opinião pública indicam que as abordagens, prisões e condenações de negros ocorrem em números desproporcionais em relação às taxas de envolvimento em atividades criminais.

A utilização da raça como critério em decisões oficiais ou governamentais é um dos problemas mais significativos enfrentados por diversas sociedades, com destaque para os Estados Unidos. Antes da década de 1990, o termo racial profiling tinha pouca relevância para o público em geral. No entanto, durante esse período, o racial profiling emergiu como uma preocupação dominante na sociedade estadunidense, especialmente nos círculos políticos. A chamada war on drugs promoveu o racial profiling em atividades policiais rotineiras, intensificando policiamento com tendências discriminatórias. Essa prática inicial surgiu em um momento de declínio nos índices de criminalidade, que era atribuído às estratégias de policiamento mais agressivas.

Muitos departamentos de polícia estadunidenses reagiram às acusações de perfil racial negando veementemente sua existência, embora não dispusessem de dados estatísticos para respaldar suas negações. Desde o final da década de 1990, esses órgãos policiais passaram a coletar dados relacionados ao comportamento de seus policiais que poderiam indicar a ocorrência de racial profiling. Estatísticas recentes demonstram que mais de quatrocentas agências já coletaram dados sobre abordagens de veículos, e vinte e três estados aprovaram legislações que exigem estudos sobre racial profiling.

A persistente estereotipagem racial de criminosos, especialmente a associação entre negros e crime nos Estados Unidos, tem raízes profundas na cultura. Este estigma, fortalecido após o movimento pelos direitos civis, desempenhou um papel na justificação velada do perfil racial por parte da aplicação da lei. Vários fatores contribuem para esses estereótipos, incluindo a representação desproporcional de negros nas estatísticas criminais, a mídia que enfatiza crimes envolvendo negros e o uso de hoaxes raciais. Esses estereótipos prejudiciais persistem, afetando as percepções sobre raça e criminalidade, destacando a necessidade de desafiar e corrigir essas noções no sistema de justiça criminal e na sociedade em geral (Welch, 2007).

São identificadas quatro perspectivas acadêmicas em relação à pesquisa sobre racial profiling: 1) a perspectiva legalista se caracteriza pela preocupação com a igualdade racial/étnica nos processos e procedimentos policiais; 2) a  perspectiva normativa está principalmente preocupada com a igualdade substantiva e procedimental; 3) a abordagem criminológica/justiça criminal é dominada pela preocupação em entender o comportamento policial; 4) por fim, a perspectiva econômica considera a igualdade de resultados do comportamento policial como fundamental para entender a discriminação racial/étnica pela polícia.

Na literatura criminológica, esse fenômeno é fundamentalmente discutido em relação às taxas de encarceramento nos Estados Unidos, particularmente no contexto das prisões por crimes relacionados a drogas (Glaser, 2014). A análise dos dados do Bureau of Justice Statistics e do censo dos Estados Unidos, revela que, embora as taxas gerais de encarceramento tenham aumentado consideravelmente desde a década de 1970, o crescimento desproporcional recai principalmente sobre a população afro-americana. Isso indica que as prisões de afro-americanos contribuem significativamente para as altas taxas de encarceramento no país.

Kitossa (2020) argumenta que, as estruturas sociais contemporâneas neo-liberais-coloniais, o racial profiling e o carding são tecnologias necropolíticas mutuamente reforçadoras de statecraft racista. Esses mecanismos se alinham com a noção de Foucault (2008) sobre biopoder e ressoam com a tese de Mbembe (2018) sobre necropolítica. Eles funcionam como instrumentos de statecraft projetados para tornar os cidadãos “legíveis” e, consequentemente, “controláveis” (Scott, 1998).

A prática do perfilamento racial e a tecnologia do carding permitem que aqueles no poder do complexo industrial criminal cataloguem, modifiquem, disciplinem, encarcerem, vigiem e, em última análise, exerçam controle sobre as populações marginalizadas. Essa abordagem, frequentemente denominada por Jonathan Simon (2006) de “governar por meio do crime”, envolve a fabricação de um inimigo doméstico para induzir o medo e convencer os cidadãos a abdicar de seus direitos em troca de uma proteção percebida (Tilly, 1985). O perfilamento racial afirma que, com base em evidências qualitativas e quantitativas, a racialização negativa é a presunção orientadora por trás das ações coercitivas na criminalização e punição de descendentes africanos, povos indígenas e outros grupos racializados (Willis-Esquida, 2007).

Como modo de controle social, o racial profiling tem raízes nas camadas de exploração capitalista entrelaçadas com o desenvolvimento histórico da criminalização ligada ao apartheid, colonialismo e escravidão. Marcadores culturais como cor da pele, roupas, penteados, tatuagens e outras características associadas à racialização negativa têm sido usados para significar suposta criminalidade. Essa percepção de criminalidade, por sua vez, leva a uma vigilância intensificada pela polícia.

O carding, uma extensão do perfilamento racial, envolve a inserção de detalhes biográficos, de personalidade, biométricos e genéticos dos cidadãos em bancos de dados policiais, sob o pretexto de abordagens ‘aleatórias’, facilitando o gerenciamento preventivo da criminalidade. O racial profiling e o carding podem mirar em grupos marginalizados, mas suas implicações se estendem ao controle de toda a população, convencendo todos os cidadãos, em nome de sua própria segurança, a se submeterem a buscas, apreensões e inclusão de dados biográficos. Em essência, o perfilamento racial e o carding servem como pretexto para gerenciar toda a “manada” social.

A questão de saber se os policiais tomam as suas decisões a partir do racial profiling é um grande dilema que preocupa pesquisadores, autoridades policiais, judiciárias e cidadãos em todo o país. Essa questão é complexa, mas muitos estão em busca de respostas claras para determinar se o perfil racial ocorre, onde acontece e quem está envolvido (Robin, 2008).

A abordagem mais recente para encontrar uma resposta envolve a aplicação do “teste de resultados”, que consiste em uma análise estatística das taxas de sucesso de buscas realizadas em diferentes grupos raciais ou étnicos, ou seja, buscas que resultam na descoberta de itens ilegais. Economistas têm argumentado que essa análise estatística das taxas de sucesso pode ser útil para distinguir entre discriminação estatística e preconceito por parte da polícia (Ayres, 2002; Knowles, Persico & Castleman, 2001; Persico & Todd, 2006). Entretanto, o “teste de resultados” se fundamenta em diversas premissas subjacentes sobre o comportamento tanto dos policiais quanto dos cidadãos, as quais não se alinham com o conhecimento existente sobre como as decisões são tomadas durante os encontros entre agentes de segurança e indivíduos. A incapacidade de se adequarem a essas premissas subjacentes levanta dúvidas sobre a validade das conclusões derivadas do teste de resultados.

Os resultados da pesquisa de Hayle et al (2016) sugerem que a explicação para abordagens e revistas policiais varia entre jovens de rua e estudantes do ensino médio, com jovens negros do ensino médio mais propensos a relatar essas experiências devido ao seu status marginalizado, enquanto jovens de rua, independentemente de sua raça, são igualmente suscetíveis a essas abordagens devido a altos níveis de comportamento desviante. Isso destaca a complexidade do racial profiling no policiamento, com a teoria do consenso sendo mais apropriada para jovens de rua e a teoria do conflito para estudantes negros do ensino médio. A pesquisa enfatiza a necessidade de abordagens teóricas diversas ao analisar essa questão complexa e destaca a interseção entre raça, comportamento e contexto social como crucial na compreensão do perfil racial no policiamento.

No Canadá, o tema também dividi opiniões (Kitossa, 2014). Um relatório do Toronto Star, publicado em 2002, que noticiou existirem nítidas evidências de racial profiling, com base em dados policiais. A partir desse ponto de partida, surgiram perspectivas criminológicas divergentes que moldaram esse debate multifacetado. Por um lado, existem aqueles que negam veementemente a existência do perfilamento racial, argumentando que as alegações são mera retórica inflamatória.

Por outro lado, alguns argumentam que o perfilamento racial pode ser uma questão de aparência, sugerindo que determinados grupos podem atrair um policiamento direcionado devido à percepção de uma maior propensão à criminalidade. Outros ainda defendem uma abordagem de interação simbólica, que enfatiza a importância de entender as visões tanto da polícia quanto das comunidades racializadas. Além disso, uma perspectiva crítica lança luz sobre o viés racial na aplicação da lei, argumentando que isso é intrinsecamente ligado ao racismo histórico no Canadá.

Fredrickson & Siljander (2002) evidenciam a distinção entre perfilamentos criminal e racial. Enquanto o perfilamento criminal é considerada uma prática legítima e essencial das forças de segurança, em que os policiais usam uma variedade de indicadores para identificar atividades criminosas em potencial, o perfilamento racial é muitas vezes mal compreendida e confundida com a primeira. O problema decorre do fato de que um perfil criminal pode incluir fatores como raça, origem nacional ou outras categorias protegidas. Isso levanta a questão de como distinguir entre o uso legítimo de informações demográficas em um perfil criminal e a discriminação racial injusta.

Há um debate contínuo sobre tornar o racial profiling ilegal, embora Fredrickson & Siljander (2002) argumentem que tal medida pode ser redundante, considerando que já existem leis que proíbem a discriminação injusta. A chave para abordar preocupações sobre perfilamento racial está em garantir práticas de aplicação da lei justas e não tendenciosas. Isso envolve não apenas a promoção de medidas para detectar e evitar práticas discriminatórias, mas também a ênfase na contratação de oficiais altamente qualificados, fornecimento de treinamento de qualidade, liderança competente e estabelecimento de órgão correcionais devidamente capacitados e treinados.

Os dados revelados por pesquisas recentes no Brasil lançam luz sobre a persistente realidade do racial profiling e do racismo estrutural no sistema de segurança e justiça do país. O estudo coordenado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) demonstrou que o estereótipo racial desempenha um papel significativo nas abordagens policiais, com jovens negros sendo os principais alvos das ações de agentes de segurança. Os números revelam que 63% das pessoas abordadas pela polícia no Rio de Janeiro são negras, em comparação com apenas 31% de brancos, apesar da composição racial mais equilibrada da população na cidade.

Além disso, o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2017 evidenciou que cerca de 64% dos presos no Brasil são pretos ou pardos, ressaltando o impacto desproporcional do sistema prisional na população negra. O estudo do Colégio Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege) também apontou que 83% das pessoas acusadas indevidamente com base em reconhecimento fotográfico eram negras. Esses dados refletem a triste realidade da priorização de pessoas negras como suspeitas, o encarceramento em massa dessas comunidades e a violência nas abordagens policiais contra a população negra, alimentando as engrenagens do racismo estrutural no Brasil.

O Habeas Corpus nº 208.240 aborda um caso fundamental que está sendo julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e se concentra na validade das provas obtidas por meio de abordagens policiais motivadas pela cor da pele dos suspeitos. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo alega que a prisão em flagrante que levou à condenação de Francisco Cicero dos Santos Júnior por tráfico de drogas deve ser considerada nula, pois a busca policial foi realizada com base na filtragem racial, ou seja, no fato de o suspeito ser negro.

O caso em questão tem implicações profundas e transcende a esfera individual, uma vez que levanta preocupações mais amplas sobre o perfilamento racial e o racismo estrutural existente na polícia brasileira. Independentemente do resultado específico deste caso, a discussão em abstrato merece atenção especial do STF e da sociedade como um todo.

Um dos argumentos apresentados no caso é o do perfilamento racial, uma prática em que indivíduos são submetidos a abordagens policiais injustas com base em sua raça ou etnia, em vez de evidências concretas de atividade criminosa. Esse tipo de abordagem pode ocorrer mesmo sem intenções explícitas de racismo, mas suas implicações são igualmente prejudiciais. A questão levantada pelo caso é se o sistema de justiça brasileiro deve tolerar ou condenar tal prática.

Além disso, a guerra às drogas resultou em uma população carcerária majoritariamente composta por pessoas negras. Isso ilustra como políticas públicas aparentemente neutras podem ter impactos desproporcionais em comunidades racialmente discriminadas. O julgamento do Habeas Corpus nº 208.240 é uma oportunidade crucial para a justiça brasileira enfrentar questões de discriminação racial no sistema de justiça criminal e buscar soluções que promovam a igualdade perante a lei.

O caso em análise no STF destaca a importância de abordar o perfilamento racial e o racismo estrutural na polícia brasileira. Os argumentos apresentados no processo têm implicações significativas não apenas para o indivíduo envolvido, mas também para a justiça e a igualdade no sistema legal brasileiro como um todo. O tribunal deve considerar não apenas o caso específico, mas também as implicações mais amplas do racial profiling no Brasil ao tomar sua decisão.

Referências:
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Glaser, J. Suspect Race: Causes and Consequences of Racial Profiling. 1ª edição, Oxford University Press, 2014.

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Autores

  • é professor de Criminologia, Direito Penal e Direito Processual Penal da Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira Cobra (Acadepol), da Strong Business School (Strong FGV) e da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), doutorando e mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC) e delegado de polícia do estado de São Paulo (PC-SP).

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