Opinião

Inconstitucionalidade de lei municipal pelo artigo 113 do ADCT, ativismo judicial e reforma política

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2 de dezembro de 2023, 11h13

A Constituição, em seu artigo 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), estabelece que a proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deve ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro.

Essa norma foi inserida pela Emenda Constitucional nº 95, de 2016, que instituiu o novo regime fiscal, com o objetivo de promover a responsabilidade fiscal dos entes federativos.

Ocorre que a aplicação do artigo 113 do ADCT aos estados e municípios é objeto de controvérsia na doutrina e jurisprudência.

Isso porque o “novo regime fiscal”, instituído pela EC n° 95, de 15 de dezembro de 2016, é restrito às finanças da União, consoante se depreende da simples leitura do artigo 106:

“Art. 106. Fica instituído o Novo Regime Fiscal no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União, que vigorará por vinte exercícios financeiros, nos termos dos arts. 107 a 114 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”.

Diversos doutrinadores, ao procederem à análise minuciosa da cláusula consubstanciada no artigo 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), alertaram quanto ao escopo da Emenda Constitucional 95/2016, ressaltando que seu destinatário é exclusivamente a União Federal. Nesse mesmo contexto, alinha-se o entendimento de Dirley da Cunha Júnior[1]:

“Esclareça-se, desde logo, que esse Novo Regime Fiscal somente se aplica à União e a seus órgãos públicos federais com autonomia orçamentária e financeira, que vigorará a partir de 2017 até o exercício de 2036, com a possibilidade, entretanto, de revisão (limitada ao ‘método de correção’, e não ao Regime em si, a partir do décimo ano de vigência por iniciativa do Presidente da República e limitada a uma alteração do método de correção dos limites por mandato presidencial.”

 A Exposição de Motivos[2] da Proposta de Emenda à Constituição no 241/2016, aliás, apresenta clareza evidente quanto a esse aspecto:   

“1. Temos a honra de submeter à elevada consideração de Vossa Excelência Proposta de Emenda à Constituição que visa criar o Novo Regime fiscal no âmbito da União. Esse instrumento visa reverter, no horizonte de médio e longo prazo, o quadro de agudo desequilíbrio fiscal em que nos últimos anos foi colocado o Governo Federal.”

Apesar disso, o Supremo Tribunal Federal vem entendendo, de forma reiterada, que o artigo 113 do ADCT se aplica a todos os entes da federação (ADI 6102, ADI 5816, ADI 6074).

Nos autos da ADI 6080, o ministro André Mendonça justificou a aplicação do artigo 113 do ADCT no âmbito do Estado à luz de métodos de interpretação literal, teológico e sistemático:

“5. Mérito. Art. 113 do ADCT. A despeito de a regra do art. 113 do ADCT ter sido incluída na Constituição pela EC nº 95, de 2016, que instituiu o Novo Regime Fiscal da União, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de que essa norma aplica-se a todos os entes federados, à luz de métodos de interpretação literal, teleológico e sistemático”.

Nos autos do MS 34.474-MC, por sua vez, o ministro Barroso defendeu a aplicação do artigo 113 do ADCT com base no equilíbrio fiscal:

“A responsabilidade fiscal é fundamento das economias saudáveis, e não tem ideologia. Desrespeitá-la significa predeterminar o futuro com déficits, inflação, juros altos, desemprego e todas as consequências negativas que advêm. A democracia, a separação de Poderes e a proteção dos direitos fundamentais decorrem de escolhas orçamentadas transparentes e adequadamente justificadas, e não da realização de gastos superiores às possibilidades do Erário, que comprometam o futuro e cujos ônus recaem sobre as novas gerações.”

O mesmo argumento foi utilizado o ministro Alexandre de Moraes nos autos da ADI 5816:

“A Emenda Constitucional 95/2016, por meio da nova redação do art. 113 do ADCT, estabeleceu requisito adicional para a validade formal de leis que criem despesa ou concedam benefícios fiscais, requisitos esse que, por expressar medida indispensável para o equilíbrio da atividade financeira do Estado, dirige-se a todos os níveis federativos.”

Assim, a partir de 2021 o órgão especial do Tribunal de Justiça de São Paulo revisou sua postura e passou declarar inconstitucionais normas tributárias de iniciativa de vereador por infringência ao artigo 113 do ADCT, alinhando-se à jurisprudência contemporânea do Supremo Tribunal Federal (ADIN n. 2086325-46.2020.8.26.0000, Rel. Des. Francisco Casconi, 29/06/2021).

No acórdão paradigmático, o eminente relator, desembargador Francisco Casconi entendeu que tal exigência restou “constitucionalizada” pela Emenda Constitucional n. 95/2016:

“Trata-se de exigência então prevista na Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), artigos 146 e 167, mas que restou “constitucionalizada” pela Emenda Constitucional nº 95/2016.”

Contudo, até que o equilíbrio orçamentário seja explicitamente inserido como um princípio a ser observado por todos os entes federativos na Constituição, a declaração de inconstitucionalidade de uma lei municipal com base em uma norma voltada para a União permanecerá objeto de controvérsia.

A uma porque a Constituição, ao prever o controle concentrado de constitucionalidade no âmbito dos Estados-membros, erigiu a própria Constituição Estadual à condição de parâmetro único e exclusivo de verificação da validade das leis ou atos normativos locais (artigo 125, § 2º). (ADI 409-MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno)

A duas porque na ausência de disposição expressa no texto constitucional acerca do equilíbrio orçamentário, não é factível atribuir-lhe a qualidade de preceito de reprodução compulsória.

Nos autos do RE 115.8273, o ministro Celso de Mello promoveu uma análise detalhada sobre o assunto, concluindo enfaticamente que o artigo 113 do ADCT não se configura como preceito de reprodução compulsória pelos Estados-membros pela literalidade da norma:

“O ora recorrente sustenta, na presente sede recursal extraordinária, que a lei complementar municipal ora questionada infringiu o art. 113 do ADCT federal. E invoca como único paradigma de confronto, para efeito de controle normativo abstrato, não o texto da Constituição Estadual, como dispõe o art. 125, § 2º, da Carta Política, mas cláusula fundada em preceito constitucional federal (ADCT, art. 113), muito embora referido preceito não configure, como resulta de sua própria literalidade, norma de reprodução obrigatória, que se pudesse considerar aplicável, de modo cogente, às unidades federadas subnacionais, como os Municípios, p. ex..”

Se por um lado, é louvável que a tentativa do Supremo Tribunal Federal em assegurar a estabilidade fiscal em todos os níveis governamentais, é questionável que essa busca se afaste do que foi claramente estabelecido pelo legislador constituinte derivado.

Embora o Poder Judiciário seja o guardião da Constituição, a atitude proativa dos magistrados tem desviado a atenção da sociedade para um profundo problema da democracia brasileira: a crise de representatividade e legitimidade dos poderes Legislativo e Executivo.

Diante disso, torna-se evidente a necessidade de uma reforma política, que jamais poderá ser feita por magistrados.


[1] CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 11ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2017. p. 1.171, item n. 2.3.13.

[2]https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=0DA688CE9158A9B966E67B61F2061032.proposicoesWebExterno1?codteor=1468431&filename=Tramitacao-PEC+241/2016  

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