Direito Eleitoral

Confiabilidade das urnas eletrônicas do sistema eleitoral brasileiro

Autores

  • Renato Ribeiro de Almeida

    é coordenador acadêmico da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político) e conselheiro do Instituto Luiz Gama. É doutor em direito do estado pela USP e mestre em direito político e econômico pela Mackenzie. Autor de Direito Eleitoral da editora Quartier Latin e coautor de Participe! Eleições Partidos Políticos e Ideologias de A a Z da editora Liquet.

  • Silvio Luiz de Almeida

    é advogado e professor. Pós-doutor em Direito pela USP. Ex-professor visitante da Universidade de Columbia (EUA). Pesquisador da Universidade de Duke (EUA). Professor da Fundação Getúlio Vargas e da Mackenzie. Presidente do Instituto Luiz Gama.

24 de outubro de 2022, 14h43

As urnas eletrônicas brasileiras foram introduzidas nos anos 90 do século passado, a partir da evolução da Rede Nacional de Justiça e da infraestrutura necessária para um sistema de votação eletrônica. Antes da informatização do processo eleitoral, as fraudes eram constantes nas eleições. A criatividade dos fraudadores era gigantesca e haviam muitas possibilidades. Nesse artigo, compilamos e sistematizamos criticamente as informações disponibilizadas pela Justiça Eleitoral.

Spacca
Silvio Luiz de Almeida
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1 – Histórico anterior
Antes da adoção das urnas eletrônicas, as fraudes eram constantes. Abaixo estão relacionadas as mais conhecidas, identificadas pela própria Justiça Eleitoral[1].

Fraude durante a preparação das urnas
Essa modalidade de fraude era bastante simples. Eram depositadas cédulas já preenchidas dentro das urnas, antes mesmo que estas fossem encaminhadas às seções eleitorais.

Fraudes no transporte das urnas de lona até a seção eleitoral
Fraudadores interceptavam as urnas e as substituíam por outras, já com cédulas preenchidas em seu interior. Em alguns casos, as urnas chegavam a serem furtadas ou roubadas, o que inviabilizava a própria realização das eleições.

Fraude durante o processo de votação manual
Um fraudador, na condição de eleitor, chegava ao local de votação, recebia a cédula do mesário, entrava na cabine, mas, em vez de preencher a cédula e depositá-la na urna, guardava-a e colocava um papel qualquer na urna. Segundo o TSE, "o organizador da fraude, que estava fora da seção, recebia a cédula oficial, assinalava os candidatos desejados e a entregava para outro eleitor". "Esse eleitor depositava a cédula já preenchida, pegava outra em branco e a entregava para o organizador, que repetia o processo fraudulento à exaustão[2]."

Fraude no transporte das urnas de lona até a junta apuradora
Segundo o TSE, com o transporte de grande quantidade de urnas, já que a votação em papel necessitava de quantidade muito maior de urnas que as atuais urnas eletrônicas, havia maior possibilidade de que urnas fossem trocadas por fraudadores durante o transporte das seções de votação para o local em que se dava a apuração.

Fraude na apuração manual
Quando as eleições eram feitas em cédulas de papel, a apuração adentrava madrugadas e seguia por dias. A apuração era feita, muitas vezes, em ginásios e quadras poliesportivas. Pessoas da comunidade eram selecionadas (como ocorre com os mesários) para apurar. A fiscalização, na maior parte dos municípios brasileiros, especialmente os do interior, ocorria pela autoridade de apenas um juiz eleitoral. Até hoje não é raro encontrar pessoas que contribuem com seu testemunho sobre aquele período, com comum ocorrência dos próprios cidadãos que trabalhavam nas apurações portarem uma caneta esferográfica no bolso. Sob fiscalização pouco eficiente diante da quantidade de mesas apuradoras e pessoas envolvidas no processo, havia terreno fértil para a prática de crimes como o de votar no lugar dos brancos ou assinar mais de um candidato (para anular a cédula).

A apuração era tão rudimentar que, segundo o TSE, os "votos eram consolidados em mapas eleitorais após serem apurados (contados). A fraude ocorria de duas maneiras: a pessoa que informava os números da apuração para serem registrados no mapa eleitoral, chamado de escrutinador, "cantava os votos", ou seja, falava em voz alta os números errados para serem registrados no mapa; a outra maneira era a pessoa responsável por escrever os votos no mapa registrar valores diferentes dos votos cantados[3]".

2 – Adoção da urna eletrônica
As urnas eletrônicas brasileiras foram introduzidas nos anos 90 do século passado, a partir da evolução da Rede Nacional de Justiça e da infraestrutura necessária para um sistema de votação eletrônica. Trata-se de um longo processo de evolução que a Justiça Eleitoral cuidou ao longo de anos, para que finalmente fosse adotado o modelo atual de votação.

O desafio maior, desde o início, foi possibilitar a existência de um sistema seguro e confiável capaz de funcionar em todo o território nacional. Com efeito, tendo em vista que o Brasil é um país de proporções continentais e com sérias diferenças regionais quanto à disponibilidade da rede elétrica, o equipamento deveria ser suficientemente simples para funcionar em qualquer lugar, mesmo que alimentado por geradores.

Até mesmo modernos automóveis e celulares apresentam um percentual de modelos com defeitos de fabricação em suas extensas linhas de montagem. Em geral, equipamentos produzidos em larga escala revelam alguma taxa de problemas técnicos nos mais diversos seguimentos industriais.

E como todo equipamento elétrico, algumas urnas apresentam falhas e precisam ser substituídas por outras no dia das eleições, sem prejuízo dos votos já recebidos. Existe uma previsão estatística do número de urnas que geralmente com problemas. Em geral, o número é muito baixo em relação ao número total. Nas eleições municipais de 2020, apenas 0,75% das urnas precisaram ser substituídas. O montante global era de 400 mil[4]. Por esse raciocínio, a adoção de um equipamento que imprimisse o voto geraria a necessidade de maior complexidade. Quanto mais complexo, mais elevada a possibilidade de problemas técnicos ocorrerem na linha de montagem dos milhares de equipamentos produzidos.

3 – Exemplo brasileiro admirado pelo mundo
As urnas brasileiras servem de modelo para diversos países. O Brasil é um país de dimensões continentais e população aproximada de 213,3 milhões de habitantes[5]. É surpreendente que a Justiça Eleitoral brasileira consiga apurar todos os votos e divulgar o resultado em escala nacional ainda na mesma noite do dia do pleito.

Algumas falácias foram repetidas nos últimos anos de que países com economia mais pujante que a brasileira não adotam as urnas eletrônicas porque seriam frágeis e permitiriam fraude. Tais fake news tão somente pretendem desacreditar o sistema eleitoral brasileiro da pior forma: diante da ainda condição de país emergente, quem defende esse raciocínio afirma que o Brasil não poderia contar com tão sofisticado sistema de votação. Entretanto, segundo o Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Social (Idea), 23 países usam urnas com tecnologia eletrônica para eleições gerais e outros 18 as utilizam em pleitos regionais. Entre os países estão o Canadá, Índia e França, além dos Estados Unidos da América, que fazem uso das urnas eletrônicas em alguns estados[6].

Ainda sobre os Estados Unidos da América, destaca-se que o país utiliza o sistema de votação eletrônica em alguns estados, enquanto outros ainda adotam a votação em papel e até mesmo permitem a votação pelo sistema postal. Com efeito, naquele país, embora seja inegável sua pujança econômica, não há uma Justiça Eleitoral como a brasileira, que centraliza toda a administração das eleições, desde sua logística até a apuração. Lá, autoridades regionais gozam de autonomia para realizarem as eleições. Não há sequer uma padronização sobre o tamanho da cédula e a cor do papel. Ademais, todos os que acompanharam a polêmica envolvendo a apuração das últimas eleições presidenciais puderam notar que os maiores questionamentos do então presidente Donald Trump foram justamente nas localidades onde ocorreu votação em papel e/ou votação pelos correios.

4 – Justiça Eleitoral como terceiro garantidor
Nos primórdios da civilização, os seres humanos viviam em pequenos grupos, os utensílios eram poucos e a vida resumia-se às atividades de caça, pesca, coleta de furtos e, posteriormente, à atividade agrícola. Nesse período, cada indivíduo tinha o domínio completo de produção de todos os objetos que precisava.

Como a evolução da humanidade, mulheres e homens foram adquirindo novas habilidades, especializando-se cada vez mais. A pessoa poderia não ter nenhuma noção de como se fazia um sapato, uma espada ou uma veste. Todavia, poderia procurar profissionais como sapateiros, ferreiros e alfaiates para que fabricassem esses produtos.

Atualmente, quase ninguém tem domínio e até mesmo conhecimento completo dos modos com que os diversos produtos utilizados cotidianamente são fabricados. E é justamente nesse ponto que entra a figura do terceiro garantidor. Uma autoridade que irá atestar que determinado produto é confiável e pode ser utilizado sem ou com risco mitigados.

As pessoas entram em um avião ainda que desconheçam completamente como se dá a fabricação de uma aeronave. E por que fazem isso? Fazem porque há órgãos nacionais e internacionais que atestam a segurança desses veículos e voos. Da mesma forma, a maior parte da população brasileira toma diversas vacinas porque há um órgão estatal chamado Anvisa que atesta a segurança desses imunizantes. E da mesma forma há o Inmetro, as agências reguladoras etc.

E a Justiça Eleitoral, criada em 1932, atua justamente para que seja ela a garantidora do resultado das eleições, dada sua independência e imparcialidade com os diversos partidos e grupos políticos nacionais. Com efeito, a Justiça Eleitoral é composta por magistrados de diferentes tribunais, da Justiça Estadual e da Justiça Federal, e conta ainda com a presença de ministro e juízes oriundos da própria advocacia. Além disso, dispõe de milhares de servidores públicos concursados (e, portando, portadores de diversas ideologias e inúmeras visões de mundo), o que lhe confere ainda mais pluralidade e diversidade.

Dentro de um modelo democrático que pressupõe a disputa ferrenha e a polarização, tanto na esfera municipal quanto na disputa ao cargo de presidente da República, nada mais coerente que o legítimo garantidor da lisura das eleições seja um terceiro desinteressado na vitória de um ou outro grupo, e que atue como garantidor de que o resultado divulgado seja a legítima manifestação da vontade popular depositada nas urnas.

Não se trata de uma fé cega, mas na confiança que o Poder Judiciário, por meio da quase secular Justiça Eleitoral, é o mais capacitado para garantir a democracia, mais do que qualquer outro grupo ou instituição que se apresente ou se voluntarie para essa função.

5 – Zerésima e boletim de urna
Todas as urnas eletrônicas possuem dois importantes instrumentos de auditoria: a zerésima e ou boletim de urna. Segundo o TSE, "no caso da zerésima, o objetivo é mostrar, antes do início da votação, que aquela urna tem ‘zero voto’. O documento contém toda a identificação da urna, comprovando que nela estão registrados todos os candidatos e que não há voto computado para nenhum deles"[7].

Seu funcionamento ocorre sempre da mesma forma. O presidente da seção eleitoral liga a urna eletrônica e imediatamente "é verificado na tela se estão corretos os dados referentes a município, zona, seção, data e hora, bem como se a urna está operando com energia elétrica"[8].

Ainda segundo o TSE, "finalizadas essas conferências, e antes de o primeiro eleitor se dirigir à urna eletrônica, o presidente, na presença dos mesários e fiscais dos partidos políticos, imprime a zerésima, que deverá ser assinada por todos. Quando a votação termina, ela é encaminhada para a Junta Eleitoral, juntamente com a Mídia de Resultado (MR), a Ata da Mesa Receptora, duas vias do Boletim de Urna, a via do Boletim de Justificativa (BUJ), a via do Boletim de Identificação de Mesários (BIM), os formulários de justificativa, os cadernos de votação, os formulários de identificação da pessoa com deficiência e os demais materiais, conforme orientação da Justiça Eleitoral"[9].

Já o boletim de urna corresponde ao número exato de votos que a urna recebeu. Assim que a votação é encerada às 17h, a urna imprime cinco vias do boletim de urna. Uma das vias é afixada na porta da seção eleitoral, para conferência pública. Duas vias são encaminhadas para a Junta Eleitoral. Já as demais ficam com fiscais de partidos que estejam presentes no local da votação.

Segundo o TSE, no boletim de urna também é possível verificar o total de votos por partido, o total de votos por candidato, total de votos nominais, total de votos de legenda (quando for cargo proporcional) e total de votos nulos e brancos. Também há informação sobre o total de votos apurados, o eleitorado apto para votar na seção, a identificação da seção e da zona eleitoral, a hora do encerramento da eleição, o código interno da urna eletrônica e a sequência de caracteres para a validação próprio boletim[10].

Uma informação absolutamente relevante é que o boletim de urna também pode ser acessado no Portal do TSE ou pelo aplicativo Boletim na Mão[11], que garante o acesso e a conferência dos resultados mediante um QR Code. Dessa forma, toda a população pode conferir a votação em cada urna, em todo o território nacional. A soma dos votos apurados em todos os boletins corresponderá rigorosamente ao resultado divulgado pelo TSE.

6 – Testes dos códigos-fonte e da vulnerabilidade das urnas
Ao longo dos anos, o TSE vem convidando entidades e universidades para que façam os mais amplos possíveis testes sobre a vulnerabilidade das urnas eletrônicas. Em 2022, ganhou destaque o esforço conjunto de universidades que testaram exaustivamente as urnas brasileiras e atestaram sua confiabilidade. Nesse ano, a "Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) — entregaram TSE as conclusões dos estudos aprofundados que realizaram nos códigos-fonte do sistema eletrônico de votação e no modelo UE2020 da urna eletrônica. As instituições de ensino superior foram unânimes em atestar a segurança dos sistemas e dos equipamentos que registrarão os votos"[12].

Segundo o TSE, "a contribuição dos especialistas das instituições parceiras proporciona um ponto de vista externo ao trabalho desenvolvido pelos analistas de Tecnologia da Informação da Corte, além de garantir segurança e transparência ainda maiores ao processo de desenvolvimento dos softwares da urna eletrônica e do sistema eletrônico de votação".[13]

A íntegra dos relatórios técnicos emitidos pela USP, Unicamp e UFPE está disponível a todos e compiladas aqui nas notas de referências[14].

7 – Conclusões
O presente estudo teve a pretensão de trazer uma breve análise e compilação de informações oficiais sobre a segurança do sistema eleitoral brasileiro e, especialmente, das urnas eletrônicas. A partir de uma abordagem histórica, chega-se ao momento atual em que o sistema eleitoral pátrio é capaz de apurar e divulgar o resultado das eleições poucas horas depois de encerrada a votação, com elevada segurança.

Em meio ao ambiente de tantas teorias da conspiração e notícias falsas circulando nas redes sociais, a sociedade civil organizada e os movimentos sociais tiveram papel fundamental na redemocratização do país e na elaboração da Constituição Cidadã de 1988. Tais informações contidas nesse breve estudo não são desimportantes. Cabe a cada cidadão defender o Estado democrático de Direito e repelir qualquer tentativa autoritária de subjugá-lo.


[1] Informações disponíveis e compiladas de https://www.tse.jus.br/internet/temporarios/urna-seguranca/historico-das-fraudes-nas-eleicoes.html . Acesso em 29 de setembro de 2022.

[2] Idem.

[3] Ibidem.

[6] Informação disponível em https://www.idea.int/news-media/media/use-e-voting-around-world . Acesso em 29 de setembro de 2022.

[8] Idem.

[9] Ibidem.

[10] Ibidem.

[11] Link para download do aplicativo Boletim na Mão https://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-2020/aplicativo-boletim-na-mao . Acesso em 29 de setembro de 2022.

[13] Idem.

Autores

  • é advogado e professor de Direito Eleitoral. Doutor em Direito do Estado pela USP, mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É coordenador acadêmico da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político) e conselheiro do Instituto Luiz Gama.

  • é presidente do Instituto Luiz Gama e professor de Direito.

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