Tribunal do Júri

A ausência de motivação dos veredictos no júri

Autores

  • Lisandra Panzoldo

    é pós-graduanda em Direito Processual Penal pela Faculdade Damásio e em Direito Probatório no Processo Penal pela Escola da Magistratura Federal (Esmafe) estagiária da Defensoria Pública de São Paulo - Unidade Júri (DPESP) e autora do livro O Tribunal do Júri no Brasil e na Argentina. Estudo Comparado" (também publicado na Argentina).

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

8 de outubro de 2022, 8h00

Uma das críticas realizadas em relação ao júri é a ausência de motivação das decisões tomadas pelo Conselho de Sentença [1]. No entanto, o que no modelo brasileiro é visto até como uma arbitrariedade, é considerado em outros modelos como uma conquista da cidadania frente ao poder do Estado.

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A Corte Europeia de Direitos Humanos em Taxquet v. Belgica [2] reacendeu o tema sobre a não motivação dos veredictos em países de cultura predominantemente inquisitorial. Esta decisão esclarece que os veredictos podem ser imotivados e rebate alguns dos argumentos dos motivacionistas. [3]. Isso porque a falta de fundamentação escrita não significa ausência de fun­damentação. Tampouco se pode dizer que os jurados decidem por motivos extrajurídicos ou arbitrariamente apenas porque não explicitam suas razões.

Alberto Binder leciona que "o significado de 'íntima convic­ção' não tem a ver com algo emocional ou sem controle, como muita doutrina erroneamente interpretou" [4], pois o que faz com que a convicção seja íntima é o fato de que ela não será externada, sendo uma salvaguarda para os jurados, mas também será íntima porque varia com a experiência e vivência de cada jurado e seu sentido comum.

Todavia, a abrangência daquilo que se tem por "íntimo" não é irrestrito. Nos países de common law e na Argentina, por exemplo, as instruções do juiz aos jurados e as provas apresentadas delimitam a interpretação do que é "íntimo".

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Outro argumento colocado em debate seria de que o fato de não se conhecer os motivos do veredicto impediria uma eventual revisão da condenação, pois o acusado não saberia as razões que levaram os jurados àquela decisão. Neste diapasão, precisa-se voltar ao caso Taxquet. A Corte Europeia de Direitos Humanos, utilizando outros precedentes, entendeu que o veredicto de um sistema clássico de jurados conta com diversas salvaguardas que permitem que o acusado conheça adequadamente os motivos de sua condenação.

Para a corte "a falta de motivação do veredicto de um Júri Popular não viola, por si só, o direito do acusado a um julgamento justo", pois "a tarefa do Tribunal diante de um veredicto não fundamentado é exa­minar se, à luz de todas as circunstâncias do caso, o procedimento pro­porcionou garantias suficientes contra a arbitrariedade e permitiu ao acusado compreender sua condenação" [5].

Em resumo, há três aspectos contidos na decisão supracitada que justificam a decisão imotivada [6]

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1. Que os sistemas de justiça que são regidos por um sistema clássico de jurados — com íntima convicção e veredicto geral — constituem um fair trial com garantias processuais suficientes para respeitar as normas das convenções internacionais de direitos humanos;

2. Que não se pode exigir motivação do veredicto, e

3. Que a fundamentação do veredicto dos jurados — por fatos e direitos — encontram-se na acusação do promotor e nas instruções do juiz.

No caso Canales, a decisão da Corte Suprema de Justicia de la Nación da Argentina reitera que os jurados decidem seu voto com um sistema de avaliação de provas conhecido como íntima convicção, apenas após o confronto de argumentos, apresentadas as razões e uma efetiva deliberação, sendo que tal sistema não requer explicação das razões que formaram seu convencimento. Ainda nesta decisão, diz-se — reafirmando Taxquet — que esse fato não impede a revisão da decisão, uma vez que a justificativa não reside na expressão escrita, e sim na coerência entre as afirmações das partes, das provas e o sentido da sentença [7].

Tomando por base o modelo de júri argentino que já apresentamos brevemente em artigos anteriores [8], percebe-se que a ausência de motivação não tem relação com um julgamento justo. E por quê? Porque os veredictos são devidamente fundamentados por todos os mecanismos de controle que tem o júri clássico da common law como, principalmente, um sorteio aleató­rio dos jurados, audiência de admissibilidade probatória, fase de voir dire realizado em audiência pública, ampla etapa de debates, pelas instruções do juiz aos jurados [9], pela deliberação [10] por 12 jurados, além da exigência de unanimidade no veredicto [11].

Todo este conjunto funciona como fundamentação implícita. O fato de não ser externada as fundamentações dos veredictos, somado ao standard de prova "além da dúvida razoável" determina uma profunda mudança epistemológica de todo o processo, pois estabelece a exigência de se alcançar alguns graus de certeza antes de se emitir um juízo subjetivo acerca do fato. Ou seja, para que se sustente uma condenação é imperioso que ela se apoie em razoável quantidade de provas válidas, sendo que, em conjunto com as instruções do juiz togado, funcionarão como controle e fundamentação suficiente [12], até mesmo porque as instruções são formuladas com a participação da ambas as partes [13].

Mais uma vez retornando à decisão da CEDH, "são as instruções que o juiz transmite ao júri que fundamentam o veredicto. O juiz os instrui sobre todas as questões jurídicas expostas e explica quais regras — os jurados — devem seguir quando se retiram para deliberar para chegar a um veredicto" [14].

Por outro lado, deve-se afastar o pensamento um tanto ingênuo de que a sentença proferida pelo juiz profissional reflete fielmente o processo de tomada de decisão, com todos os detalhes, vieses e razões. Neste sentido, veja-se a decisão da Corte Suprema do Canadá:

"As razões escritas de um juiz só revelam a razão final que o juiz conside­rou para decidir o caso. Elas não revelam, necessariamente, todos os pro­cessos de pensamento, as hesitações, os questionamentos e as revisões que levaram a essas razões finais por escrito. Da mesma forma, os pensamen­tos e discussões dos jurados que ocorrem no decorrer de suas deliberações não são revelados – apenas o veredicto final do júri é tornado público" [15].

Aliás, o modelo brasileiro vai além, pois prevê, no artigo 5º XXXVIII, "b" da Constituição Federal, o "sigilo das votações", o qual constitui uma garantia que, em tese, inviabiliza a própria motivação expressa das decisões [16]. No entanto, devemos ir além de uma interpretação meramente legalista. Talvez não se tivesse uma crítica tão ácida da ausência da fundamentação do veredicto se o sistema de júri funcionasse verdadeiramente como uma garantia.

Por isso, precisa-se avançar na discussão (mesmo a partir do direito comparado), para ampliar os instrumentos de controle da decisão do júri, a fim de se distanciar de uma cultura inquisitiva. A implementação de instruções aos jurados, em conjunto com a deliberação entre os jurados, viabiliza o aumento na qualidade e a racionalidade das decisões, evitando veredictos arbitrários e solipsistas, sem a necessidade de que se expresse publicamente as razões de cada um dos jurados.


[1] Neste sentido o entendimento de Aury Lopes Jr. e Lenio Streck, os quais consideram a falta de fundamentação como o maior problema do júri brasileiro.

[2] Corte EDH, Taxquet v Belgica, 2010.

[3] TARUFFO, Michele. Verdad, prueba y motivación en la decisión sobre los hechos — México: Tribunal Electoral del Poder Judicial de la Federación, 2013. p. 95.

[4] BINDER, Alberto M. Crítica a la justicia profesional. Revista Derecho Penal. Año I, N° 3. Ediciones Infojus, p. 66.

[5] Corte EDH, Taxquet v Belgica, 2010. Considerando 92 e 93.

[6] São os pontos centrais da tese de doutorado do jurista argentino Andrés Harfuch (HARFUCH, Andrés. El veredicto del jurado. Ad-Hoc, Buenos Aires, 2019.)

[7] CSJN, "Canales, Mariano Eduardo y otro s/ homicidio agravado", 2019.

[9] Defendemos o sistema de instruções aos jurados em diversos textos, inclusive aqui no ConJur: "Tribunal do Júri: as instruções e o aperfeiçoamento dos julgamentos".

[11] Código Procesal Penal de Buenos Aires – artículo 106: Motivación. Las sentencias y los autos deberán ser motivados, bajo sanción de nulidad. Los decretos deberán serlo, bajo la misma sanción, cuando este código o la ley lo disponga. En el caso del juicio por jurados las instrucciones del juez al jurado constituyen plena y suficiente motivación del veredicto." (grifo nosso)

[12] SCHIAVO, Nicolás. Fundamentos conceptuales del veredicto inmotivado http://www.juicioporjurados.org/2012/08/fundamentos-conceptuales-del-veredicto.html. Acesso em 12 set. 2022.

[13] HENDLER, Edmundo S. Experiencia, prejuicios y fundamentación en el juicio por jurados — II Congreso Internacional de Juicio por Jurados — 1ª ed. — Buenos Aires: Editorial Jusbaires, 2015.

[14] Corte EDH, Taxquet v Belgica, 2010 (considerando 77)

[15] SCC — "R vs. Pan"; "R vs. Sayer" 2001 SCC 42 (considerando 44).

[16] Nesta linha a interpretação do Superior Tribunal de Justiça: STJ – HC 81.352/RJ – rel. Arnaldo Esteves Lima – 5ª Turma – j. 7/10/2008; STJ – HC 382.582/RS – rel. Sebastião Reis Júnior – 6ª Turma – j. 4/9/2018.

Autores

  • é bacharelanda em Direito pela Universidade São Judas Tadeu (USJT), estagiária da Defensoria Pública de São Paulo — Unidade Júri e autora do livro "O Tribunal do Júri no Brasil e na Argentina. Estudo Comparado" (publicado também na Argentina).

  • é advogado criminalista, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI, professor de Processo Penal da FAE e do programa de mestrado em Psicologia Forense da UTP.

  • é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap), professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro Honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros e professor de Processo Penal.

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