Tribunal do Júri

O Tribunal do Júri na Argentina como inspiração para o Brasil (parte 2)

Autores

  • Lisandra Panzoldo

    é pós-graduanda em Direito Processual Penal pela Faculdade Damásio e em Direito Probatório no Processo Penal pela Escola da Magistratura Federal (Esmafe) estagiária da Defensoria Pública de São Paulo - Unidade Júri (DPESP) e autora do livro O Tribunal do Júri no Brasil e na Argentina. Estudo Comparado" (também publicado na Argentina).

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

6 de agosto de 2022, 8h03

Na semana passada, na primeira parte do artigo, começamos a discutir o modelo de júri argentino, explicando sua implementação com respeito efetivo ao sistema acusatório, bem como alguns aspectos pré-processuais e a fase de selecionamento dos jurados (voir dire). Nesta semana abordaremos a fase de instrução aos jurados, a quantidade de jurados, além do sistema de tomada de decisão.

Spacca
No modelo argentino, as alegações das partes (ou debates) são realizadas em dois momentos: (1) nos alegatos de apertura — como "alegações iniciais" antes da instrução probatória; e (2) nos alegatos de clausura – como os "debates" propriamente ditos, em que as partes podem argumentar com base nas provas que foram produzidas.

Entretanto, antes das alegações das partes, há uma fase de instruções aos jurados por parte do juiz togado. Na Argentina e nos países de common law, as instruções possuem um papel fundamental e, por isso, são apresentadas em diversos momentos — antes, durante e depois dos debates — e cada uma com um objetivo diferente.

Em sua tese de doutorado, o jurista Andrés Harfuch esclarece que um veredicto sem a etapa das instruções é tão grave quanto uma decisão de juiz sem fundamentação ou embasamento legal [1]. É certamente uma fase que precisa ser melhor desenvolvida no Brasil, ainda mais considerando a recomendação da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso V.R.P., V.P.C. y otros vs. Nicaragua (2018), que advertiu sobre a violação do devido processo legal a partir da ausência de instruções obrigatórias do juiz sobre questões de direito aplicável no júri [2].

Destaca-se que a Asociación Argentina de Juicio por Jurados (AAJJ) esclarece em detalhes a importância dessas instruções e coloca à disposição dos interessados vídeos de casos importantes legendados em português dessa etapa do julgamento [3].

Mas, quais são os temas das instruções? Basicamente se aborda sobre o direito constitucional, o direito probatório e penal [4], esclarece-se sobre a função do juiz e dos jurados, a imparcialidade, a credibilidade das testemunhas, o que deve ser ou não considerado como prova, destaca-se sobre o princípio da presunção de inocência, o conceito do standard probatório da dúvida razoável, dentre outros. É a partir desse momento que o jurado começa a motivar seu veredicto, ainda que de forma implícita.

Como normalmente os jurados não possuem formação jurídica, essas informações são necessárias como forma de assegurar que os acusados tenham seus direitos constitucionais preservados. Neste sentido um precedente da Suprema Corte de Mendoza, que define o papel das instruções:

"[…] as instruções devem ter como objetivo dirigir as ações dos jurados para a reconstrução histórica do passado, visando determinar se o fato sustentado pela acusação está provado e se o acusado é culpado. […] Como tais, devem orientar o processo de confrontação de argumentos e também a deliberação, para fins de solidificar o convencimento so­bre a resolução adotada para o caso. Para tanto, o texto das instruções deve conter a lista de ferramentas jurídicas, tanto sobre a avaliação das provas, como o julgamento da lei. […] Outra questão que deve ocupar­-se o juiz togado é que a instrução seja dada de maneira clara. Tendo em vista seus destinatários, as instruções devem ser redigidas pensando nos jurados, pois são eles que se encarregarão de colocar em prática as questões relativas ao caso submetido à decisão" [5].

Aliás, vale a pena a reflexão sobre as instruções para a realidade brasileira, eis que as instruções são importantes ferramentas para o "aprimoramento da atuação do Conselho de Sentença e de garantia da racionalidade de seus veredictos", conforme já destacamos anteriormente aqui no ConJur em 29 de abril de 2021 ("Tribunal do Júri: as instruções e o aperfeiçoamento dos julgamentos") [6].

Outro fator de controle que mitiga a possibilidade de arbitrariedade nas decisões é o número de membros do conselho de sentença, lembrando ainda que estes foram selecionados por intermédio de um método que busca a imparcialidade (voir dire), recebem instruções do juiz e precisam tomar uma decisão unânime/consensual para condenar ou absolver.

O número de 12 jurados não foi adotado aleatoriamente. Perpassou por uma história de 800 anos de tentativa e erro, tendo sido testado por diversos modelos de júri. Entende-se que este número é capaz de garantir (1) ampla representação da sociedade; (2) redução da possibilidade de erro judicial; (3) representa um número significativo de juízes cidadãos; (4) permite chegar a veredictos unânimes; e (5) que possui um tamanho considerado manejável para a administração de um sistema de justiça [7].

Como corolário da garantia a um julgamento justo, na Argentina há necessidade de paridade de gênero no conselho de sentença, sendo o primeiro país no mundo a adotar essa medida. Trata-se de fator que impacta diretamente no veredicto, especialmente quando se está diante de um caso de violência de gênero.

Intimamente ligada à quantidade de 12 jurados é a exigência da unanimidade no veredicto. Sem muito empenho de raciocínio, fica claro que uma decisão unânime de doze jurados legitima a decisão, refletindo na confiança que a sociedade tem no sistema de jurados quando comparada ao júri do Brasil (onde, como se sabe, precisa-se apenas de uma maioria simples de sete e não possui os sistemas de garantia aqui expostos).

Mas como é possível que doze pessoas desconhecidas cheguem a um veredicto unânime? Assim como nos Estados Unidos da América, a unanimidade é consensual, sendo consolidada a partir da deliberação sigilosa entre os jurados. Perceba-se que a deliberação ocorre após a apresentação do caso, a avaliação das provas (instrução probatória), debates das partes e instrução por parte do juiz presidente. Então, nesta fase, os jurados discutem e ponderam entre si os fatos e aplicam a lei e informações orientadas pelo juiz.

É na deliberação dos doze membros que se constrói, realmente, uma opinião que representa a sociedade (e não na simples soma de opiniões individuais e imotivadas como acontece no Brasil). Alberto Binder, antes mesmo da implementação do júri em seu país, já reforçava a importância da deliberação do jurado como instituto processual central que controla e estabiliza os veredictos [8].

Em nosso país, a decisão é tomada por intermédio da votação dos quesitos, o que ainda constitui a fase de maior causa de arguição de nulidades que chegam à apreciação na nossa Corte Suprema [9]. Na Argentina, no entanto, este tema é bem mais simples. Os jurados recebem um formulário de veredicto e marcam com um "X" ao lado da opção escolhida por unanimidade: culpado — e seus diferentes graus de culpa —, ou não culpado.

Após uma decisão de absolvição, resta proibido à acusação recorrer. Isso por conta de todos os mecanismos de controle de veredicto que evitam, significativamente, a arbitrariedade e obedecendo efetivamente o disposto no artigo 8.4, CADH e 14.7 PIDCP [10].

Vemos, por fim, que nenhum aspecto do júri na Argentina deve ser visto de maneira isolada, pois é o conjunto das garantias que permite seu sucesso, fazendo com que a sociedade confie nesse sistema e não questione a decisão final. Por tudo isso é que o país vem ganhando a atenção não só dos demais países da América Latina, mas também dos Estados Unidos, Canadá, dentre outros.

A comunidade jurídica e os legisladores precisam aproveitar a oportunidade de reforma do Código de Processo Penal para implementação de um modelo de tribunal do júri que seja realmente democrático e adversarial, substancializando as garantias já previstas na Constituição Federal. Que a experiência dos demais países da América, principalmente da Argentina, sirva de inspiração.

 


[1] HARFUCH, Andrés. El veredicto del jurado. Ad-Hoc, Buenos Aires, 2019. p. 381.

[2] Corte IDH – Caso VRP, VPC y otros vs. Nicaragua. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas, Sentencia de 08 de marzo de 2018.

[4] Por exemplo, explica-se o que é legítima defesa, excesso culposo, excesso doloso, emprego de arma de fogo, qualificação por vínculo, agravante por violência de gênero, atenuantes, dentre outros, de acordo com o caso.

[5] Petean Pocoví, Alberto Sebastián P/ Homicidio Criminis Causa S/ Casación. Suprema Corte De Justicia — Sala Segunda — Mendoza.

[6] Da mesma forma, tanto o livro "Manual do Tribunal do Júri", quanto o "Plenário do Tribunal do Júri", ambos publicados pela Editora RT – Thomson Reuters Brasil, escritos por Rodrigo Faucz Pereira e Silva e Daniel Ribeiro Surdi de Avelar, explicam como as instruções já podem / devem ser aplicadas no júri brasileiro mesmo com a sistemática legal atual, bem como discorrem sobre algumas das perspectivas críticas do tema.

[7] HARFUCH, Andrés. El veredicto del jurado. Ad-Hoc, Buenos Aires, 2019. p. 441.

[8] Conferência de Alberto Binder sobre o Tribunal do Júri: "Criticando a los jueces profesionales, defendiendo al jurado", Mendoza, 2005. (15’02”). Disponível em: http://www.juicioporjurados.org/2012/06/video-imperdible-conferencia-de-binder.html. Acesso em 11 jul. 2022.

[9] PANZOLDO, Lisandra; FELIX, Yuri. Tribunal do Júri: As nulidades no Supremo Tribunal Federal. Boletim Trincheira Democrática. Instituto Baiano de Direito Processual Penal. Ano 4, nº 16 — Agosto/2021. Disponível em: http://www.ibadpp.com.br/novo/wp-content/uploads/2021/09/ TRINCHEIRA_AGOSTO_2021.pdf

[10] HARFUCH, Andrés; DEANE, Matías M.; CASCIO, Alejandro; PENNA, Cristian D. La garantía del ne bis in idem y la prohibición del recurso del acusador público o privado contra la sentencia absolutoria. LA LEY, Suplemento Penal y Procesal Penal, n.º 5, Agosto 2020.

Autores

  • é bacharelanda em Direito pela Universidade São Judas Tadeu (USJT), estagiária da Defensoria Pública de São Paulo - Unidade Júri e autora do livro "O Tribunal do Júri no Brasil e na Argentina. Estudo Comparado" (publicado também na Argentina).

  • é advogado criminalista, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI, professor de Processo Penal da FAE e do programa de mestrado em Psicologia Forense da UTP.

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