Direito Eleitoral

Resistência democrática do TSE em 2022: missões e observação

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  • Marcelo Ramos Peregrino Ferreira

    é doutor em Direito (UFSC) membro fundador da Abradep (Associação Brasileira de Direito Eleitoral) presidente da Caoeste (Conferência Americana de Organismos Eleitorais Subnacionais) pela Transparência Eleitoral e integrante do Iasc (Instituto dos Advogados de Santa Catarina).

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21 de novembro de 2022, 8h56

Antecedentes
As Missões de Observação Eleitoral (MOE) são uma tradição do sistema internacional de proteção dos direitos humanos e servem como um instrumento de melhorias dos processos eleitorais internos. O objetivo mais evidente dessa atuação internacional é a promoção da democracia e dos direitos humanos, nos termos dos princípios eleitorais aceitos em matéria de eleições democráticas autênticas.

As MOE vêm se organizando desde a década de 1960 em um conceito bastante indefinido com um caráter simbólico, iniciando-se em 1962 com a participação de três delegados da OEA nas eleições da Costa Rica[1]. Nos anos 1990 o esforço robusteceu-se e o papel das MOE é de institucionalizar e criar standards para a atuação dos órgãos eleitorais nacionais. A criação desses parâmetros e a obediência jurisprudência sobre os direitos políticos do sistema interamericano são elementos de reforço da credibilidade dos organismos eleitorais, em um contexto de intensa hostilidade dos poderes políticos à independência desses órgãos.

A Carta Democrática Interamericana tem um capítulo próprio sobre a democracia e as missões de observação eleitoral. Os países integrantes da OEA e da ONU tem a obrigação internacional de organização, realização e garantia de processos eleitorais livres e justos.

A OEA dispõe de um manual das observações eleitorais e sua metodologia, desde um conceito de eleições democráticas até as perguntas específicas que devem ser respondidas pelos observadores para avaliação.

No Brasil, o cenário normativo é favorável à atuação internacional. A CF de 1988 possui uma inequívoca abertura para o cenário internacional, seja pelas propostas de fundo como a dignidade da pessoa humana na qualidade de fundamento da República ou pela generosa cláusula de recepção dos tratados internacionais de direitos humanos (art. 5º, § §3º).

Apesar do rico arcabouço normativo a jurisprudência nacional e as Cortes continuam a olvidar os entrelaçamentos transconstitucionais e os ricos diálogos com essas fontes externas.

Na mesma medida, o Brasil não tem uma larga tradição do uso de MOE para o aprimoramento de seus processos internos.

Desde a CF/88, a abertura nacional do Brasil para o tema do Sistema Internacional de Proteção aos Direitos Humanos, caminha a passos lentos. O tratamento dado para as MOE ou ausência da incidência jurisprudencial dos tratados internacionais mostra a dificuldade do país em inserir-se nesse esforço transnacional.

É como se a ruptura do paradigma de uma soberania alargada, com a submissão integral do súdito ao regramento doméstico, em matéria de direitos humanos, não tivesse ocorrido em 1945 com a criação da ONU e inexistisse uma aspiração internacional de proteção aos direitos humanos, como bem dispõe Melina Fachin[2]:

É essa ordem de ideias que fornece o embasamento para a consolidação de um sistema normativo internacional de proteção dos direitos humanos que congrega, ao lado (e também em limitação) das ordens estatais soberanas, obrigações internacionais devidas ao respeito, à proteção e à realização dos direitos humanos.

A riqueza desse cenário é solenemente ignorada e repelida pela jurisprudência das Cortes Eleitorais como se o Brasil não fosse parte da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, submetendo-se inclusive à cláusula facultativa de jurisdição e à jurisprudência vinculante da Corte Interamericana. Mesmo em sendo o Brasil reiteradamente condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo desrespeito a esse ordenamento jurídico internacional[3], esse bloco de convencionalidade, o avanço é tímido e não seria exagero afirmar o solipsismo da jurisprudência nacional sobre o tema do direito internacional dos direitos humanos, em especial, a incidência normativa dos tratados internacionais sobre o direito eleitoral[4].

É de se ressaltar a existência de recomendação do CNJ para a observância dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos e o uso da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos[5]. Na mesma direção é o enunciado 5 do TSE sobre o mesmo tema.

Situação atual da observação eleitoral no Brasil
A indiferença ao cenário internacional é sentida também no tema das MOE.

A abertura dos países ao aparato internacional de proteção significa a compreensão da diminuição do conceito de uma soberania alargada no paradigma anterior à Segunda Guerra. O contemporâneo direito de ingerência dos organismos supraestatais nos casos de violações reiteradas aos direitos humanos não se coaduna com o isolamento. Um certo alheamento do Brasil à essa concepção explica muito a incapacidade e desinteresse do país nas MOE, sendo ainda percebida a participação do estrangeiro com alguma desconfiança.

A qualidade da Justiça Eleitoral brasileira, capaz de levar o direito ao voto aos mais afastados rincões do país, na forma eletrônica, há mais de 25 anos, sem qualquer alegação séria de fraude, com resultados rápidos e com integridade, decerto, pode também ter apontado para a inutilidade das MOE.

Todavia, desde o início do governo Bolsonaro, a Justiça Eleitoral e seu processo de apuração estiveram sob intenso ataque. A integridade da urna eletrônica, a independência dos juízes do STF e TSE e a correção do processo eleitoral tem dominado o debate político nos últimos anos.

As MOE se tornam uma realidade, a partir da necessidade de dar uma resposta à inclemente campanha contra as urnas eletrônicas e à própria idoneidade das Cortes Superiores, geradas pelo Presidente da República e seus correligionários. As MOE no Brasil surgem mais devido à desconfiança do processo eleitoral e menos à necessidade da obediência a standards de integridade. Uma certa hybris brasileira sobre seu sistema eleitoral, modelo de integridade e autenticidade[6], dá espaço à necessidade pragmática de responder aos críticos por meio da abertura internacional do seu processo eleitoral.

Assim, o TSE inicia com o então presidente ministro Edson Fachin e com o atual, presidente ministro Alexandre de Moraes, de forma louvável e corajosa, um novo capítulo das missões do Brasil premido pela enorme hostilidade do Executivo ao processo eleitoral brasileiro.

A história e a eleição presidencial de 2022
O ministro Gilmar Mendes, presidente do TSE, e o secretário-geral da OEA, Luis Almagro, assinaram em Washington o acordo relativo aos procedimentos de observação das eleições gerais de 2018. A MOE da OEA de 2018 foi um marco na história eleitoral nacional. O Brasil recebeu 83 especialistas de 18 nacionalidades, liderados pela ex-presidente da Costa Rica, Laura Chinchilla, espalhados por 12 Estados e o Distrito Federal[7]. O relatório trouxe considerações da MOE sobre o processo eleitoral brasileiro sem qualquer reparo ao sistema ou ao funcionamento da urna eletrônica[8].

Em 2020 ocorreu também um projeto piloto do TSE para observação das eleições municipais[9].

Deve ser destacado ainda o Projeto Integridade Eleitoral, Observação das Eleições Suplementares de Petrolândia (SC) de 2021, organizada pela Caoeste e Transparencia Electoral, primeira MOE feita por uma delegação internacional em uma eleição municipal suplementar e que foi vencedor de um importante prêmio internacional da Rede Mundial da Justiça Eleitoral[10].

As eleições presidenciais de 2022 sinalizam o ápice da polarização política no país. Um pleito marcado pela intensa atuação judicial sobre a propaganda e as redes sociais, em resposta às milícias digitais promotoras da mentira em dimensões avassaladoras[11].

Foram credenciadas delegações nacionais e internacionais. Além disso, foram admitidas missões de acompanhamento das eleições realizados pela Rede Mundial da Justiça Eleitoral, o Idea e a Universidade Complutense de Madrid.

Conclusões
A Caoeste e a Transparencia Electoral America Latina, entidade que há mais de dez anos atua na região, tem feito um enorme esforço para a democratização das MOE. Os chamamentos públicos têm sido realizados junto à Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Partidário (Abradep) e no Colégio Permanente dos Juristas da Justiça Eleitoral (Copeje), graças à visão de pessoas como Telson Ferreira e Luiz Casagrande Pereira.

A Transparencia Electoral America Latina, com mais de 50 bem sucedidas missões, não podia deixar de participar das eleições brasileiras, fazendo-o com uma rica delegação de mais de seis nacionalidades da região, sob a liderança de Leandro Querido e organização de Eduardo Repilloza e Bruno Franco Lacerda Martins. Encontrou no Brasil um ambiente aberto e receptivo para o monitoramento eleitoral por parte do TSE, tendo as autoridades eleitorais permitido acesso a todos os ambientes e prestados todas as informações solicitadas.

Os dados disponíveis apontam a vinda em 2022 de mais de 433 observadores de 33 nacionalidades, o que demandou uma preparação imensa da Justiça Eleitoral na formação de mesários e servidores em todo o país sobre essa participação internacional nas eleições.

O TSE teve um incomensurável zelo também em garantir a autonomia das missões permitindo acesso, mas não se imiscuindo nos trabalhos respectivos. O TSE, por meio de seus juízes e servidores, marcou presença no cenário das boas práticas eleitorais, tendo sido consenso a idoneidade, integridade e segurança do processo dentre os observadores.

Os esforços do TSE e do seu presidente, Alexandre de Moraes, tem sido hercúleos tanto na defesa dos seus procedimentos como da própria democracia, sendo a organização das missões, os convites aos estrangeiros e a regulamentação do tema, sobretudo, atos de coragem e de resistência democrática na mais polarizada das eleições brasileiras.

O regulamento do TSE deve ser celebrado como uma espécie de maturidade internacional sobre a necessidade de compartilhar conhecimento e do intercâmbio com outras entidades, em favor da democracia representativa. Em conclusão, a Resolução 23.678/2021 cumpriu seu papel em regular as MOE, em estrita obediência aos standards internacionais.

Adormecidas as promessas de abertura internacional da Carta de 1988, a descompostura do poder político contra a institucionalidade eleitoral parece ter despertado o papel extremamente relevante desse olhar externo sobre o processo eleitoral. Se é possível extrair algo bom da campanha contra a Justiça Eleitoral e o STF talvez tenha sido exatamente o retorno da pauta das MOE como estratégia de defesa e aprimoramento da democracia, porque os muitos relatórios contêm muitas sugestões para a melhoria do sistema nacional.

Este capítulo da história eleitoral merece ser comemorado com a abertura do Brasil às práticas arraigadas das democracias de outros países. O TSE escreveu essas páginas com muita qualidade, demonstrando, mais uma vez, sua essencialidade para o regime democrático.


[1] MOREIRA, Paula Gomes. Observação Internacional de Eleições na Terceira Onda: Haiti e México em perspectiva comparada / Paula Gomes Moreira; orientador Maria Helena de Castro Santos. — Brasília, 2016. p. 56.  Disponível em:  2016_PaulaGomesMoreira.pdf (unb.br) Acesso em 26.12.21

[2] FACHIN, Melin Girardi.  Direito Humanos e Desenvolvimento. RJ : Renovar, 2015, p. 21.

[3] O Caso Damião Ximenes Lopes, 2006; Caso Escher e outros, 2009; Caso Garibaldi, 2007; Caso Gomes Lund, 2010; em 2021, a primeira condenação do Brasil quanto ao tema do feminicídio da vítima Márcia Barbosa de Souza. Este é o primeiro livro no Brasil a tratar do tema da convencionalidade eleitoral: FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino. O Controle de Convencionalidade da Lei da Ficha Limpa: Direitos políticos e inelegibilidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

[4] FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino; MEZZAROBA, Orides. O direito eleitoral frente aos tratados internacionais: o solipsismo da jurisprudência nacional e o ativismo pro persona no caso mexicano. Revista Opinião Jurídica (Fortaleza), Fortaleza, v. 16, n. 22, p. 156-182, mar. 2018. Disponível em: <https://periodicos.unichristus.edu.br/opiniaojuridica/article/view/1616>. Acesso em: 10 maio. 2022.

[5] Disponível em: < original1519352022011161dda007f35ef.pdf (cnj.jus.br)> Acesso em 21 de maio de 2022.

[6] A propósito da história das eleições, urna eletrônica e o voto impresso um panorama muito contemporâneo pode ser visto em: ALVIM, Frederico Franco; NETO, Jaime Barreiros SANTIAGO, Maria Cristina Jesus. 25 anos da Urna Eletrônica- tecnologia e integridade nas eleições brasileiras. Salvador :Tribunal Regional Eleitoral da Bahia, 2021.

[7] Dados do Relatório da Missão de Observação Eleitoral – MOE, 2018. Disponível em: <Microsoft Word – Informe Preliminar MOE Brasil 2018 FINAL POR.docx (oas.org)>; <CP40397PRELATORIOFINALMOEBRASIL2018.pdf (oas.org)> Acesso em 21 out. 2021.

[8] Disponível em: <CP40397PRELATORIOFINALMOEBRASIL2018.pdf (oas.org)> Acesso em: 21 de out. de 2021.

[9] Esclareça-se que Transparência Eleitoral Brasil, entidade criada em 2018, não tem relação com a Transparencia Electoral America Latina, coordenada por Leandro Querido: Disponível em: <Relatório-final-Missão-de-Observação-Eleitoral-Nacional-2020.pdf (transparenciaeleitoral.com.br)> Acesso em 22 de maio de 2022

[11] Embora seja crítica a expansão judicial sobre o Direito Eleitoral no Brasil, eventuais excessos do TSE como a censura prévia de documentário e a desmonetização de sites, não tiveram o condão de conspurcar o pleito. A crítica da expansão da Justiça Eleitoral pode ser examinada na obra: FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino. Da Democracia de Partidos à Autocracia Judicial: o caso brasileiro no divã. Florianópolis : Habitus. 2020.

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