Limite Penal

De novo, matamos: considerações sobre as operações policiais no Rio de Janeiro

Autor

  • Janaina Matida

    é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile) doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e consultora jurídica em temática da prova penal.

29 de julho de 2022, 8h03

A quinta-feira (21/7) da semana passada amanheceu vermelha no Complexo do Alemão, situado na zona norte, região metropolitana do Rio de Janeiro. Uma ação policial que mobilizou cerca de 400 policiais do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) e da Core (Coordenadoria de Recursos Especiais) surpreendeu os moradores já nas primeiras horas do dia. Segundo as informações cedidas pela Polícia Militar-RJ, às 7h30 a munição já havia sido consumida dada a intensidade do confronto. A chegada de reforços garantiu mais 10 horas de operação.

Spacca
O saldo total foi de 18 mortes, incluindo a de um policial, Bruno de Paula Costa, de 38 anos, e a de uma mulher, Letícia Marinho, de 50 anos. Bruno trabalhava na operação quando foi baleado. Deixou esposa e dois filhos com diagnóstico de transtorno do espectro autista. Letícia estava de carro com o namorado e, de acordo com ele, o veículo recebeu disparos da polícia ao pararem num sinal de trânsito ao lado da viatura. Letícia era filha de militar, deixou três filhos e duas netas. Dentre os outros óbitos, 15 são indicados pela polícia como sendo de "suspeitos" de envolvimento com o tráfico e crime organizado, circunstância esta que é afirmada em clara tentativa de justificar a legalidade de sua atuação.

A narrativa apresentada pelas instituições policiais emprega adjetivos fortes como "necessária" e "fundamental", ao fazer referência àquela violenta incursão. Nas palavras do comandante do Bope, o tenente-coronel Uirá Nascimento, a operação foi necessária porque dados de inteligência indicaram que uma quadrilha poderia se movimentar e cometer ações criminosas na cidade, como invasão de outras favelas e roubo a bancos. Num tom mais coloquial, o porta-voz da Polícia Militar, o tenente-coronel Ivan Blaz, por sua vez, afirmou em entrevista que as operações em favelas são necessárias, pois "é fundamental que tenha alguém pra enxugar o gelo", caso contrário, "a sociedade vai morrer afogada".

Na Limite Penal de hoje, vou tecer algumas considerações sobre fatos que parecem ser relevantes para o desenho de políticas públicas. Vou oferecer argumentos contra a realização de numerosas operações policiais como resposta adequada ao crescimento do crime organizado e assim construir bases para a segurança das pessoas no Rio de Janeiro.

De acordo com a pesquisa desenvolvida pelo Geni (Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense) sobre as chacinas policiais do estado do Rio de Janeiro, durante o período 2007-2021 foram realizadas 17.929 operações na região metropolitana do Rio de Janeiro. Delas, 593 converteram-se em chacinas, com o total de 2.374 vítimas fatais. Vale esclarecer que o termo chacina policial é tecnicamente utilizado para designar "mortes múltiplas com três ou mais óbitos decorrentes de ações policiais" (p.6).

"Na capital, a zona norte concentra 58% das chacinas policiais (222 ocorrências, com 959 mortos), seguida pela zona oeste com 26, 4% (101 ocorrências, com 392 mortos). O centro, com 10,2% (39 ocorrências, com 167 mortos) e a zona sul, com apenas 5,5% (21 ocorrências, com 81 mortos) apresentam uma participação muito menor no conjunto das chacinas."

Em complemento, o Relatório Semestral 2022.1 do Fogo Cruzado (premiadíssimo projeto [1] fundado por Cecília Olliveira que mapeia os tiroteios no Rio de Janeiro e também em outros estados) informa que a região metropolitana do Rio enfrentou, apenas entre janeiro e junho de 2022, 18 chacinas em operações policiais, com 89 mortos (p.21). É como se a ADPF 635 não existisse.

Então, ao encararmos esses números com atenção, somos obrigados a reconhecer que uma parte seletiva da sociedade já morre afogada. E no próprio sangue. A sociedade composta pelas populações que habitam as favelas cariocas é alvo de uma violência estatal sistemática, dirigida contra ela por dividirem o mesmo território em que a criminalidade organizada se encontra. São tidas pelas forças de segurança pública como o "dano colateral" de um objetivo supostamente mais importante do que a preservação de suas vidas. E não é só a população que sangra com o enrijecimento da lógica de guerrilha. Os policiais também. De janeiro a junho de 2022, ainda segundo o Relatório Semestral do Fogo Cruzado, 26 agentes foram mortos fora de serviço e quatro durante as operações (p. 23).

Na contramão dessa realidade que também a coloca de frente com a morte, a Polícia Civil informou que a operação no Alemão apreendeu um fuzil metralhador .50, quatro fuzis 7.62, duas pistolas, nove carregadores de fuzil, 56 artefatos e 43 motocicletas. Do ponto de vista da articulação do crime organizado, a ação não tem qualquer efeito. Jacqueline Muniz, cientista política e professora da UFF (Universidade Federal Fluminense) justamente no campo da segurança pública, afirmou em entrevista à Folha sobre a incursão policial no Alemão:

"Essas operações não subiram o preço da droga [provocado por grandes apreensões], o armamento não ficou escasso, e a economia criminosa segue de vento em popa."

A opinião da especialista se fortalece ao nos debruçarmos sobre os efeitos das alterações legislativas que, no decorrer do atual governo, facilitaram o acesso às armas. De acordo com o noticiado pela Folha na mesma manhã do fatídico 21/7, uma investigação policial verificou que um membro do PCC (Primeiro Comando da Capital), de forma absolutamente desembaraçada, conseguiu registro de CAC (caçador, atirador e colecionador) e, na sequência, efetuou a compra de nada menos que duas carabinas, um fuzil, duas pistolas, uma espingarda e um revólver.

Os 16 processos em primeira instância de sua ficha criminal não foram empecilho para que levasse pra casa cerca de R$ 60 mil em armas. O fato de que um integrante do PCC tenha conseguido tão fácil acesso àquelas armas nos ajuda a ter dimensão da abundância armamentística que hoje legalmente nutre o crime organizado.

Além disso, em fevereiro deste ano, o Globo já havia noticiado um levantamento que fez em Tribunais de Justiça de todo o país a partir do qual identificou "CAC’s que integravam milícias e grupos de extermínio, armeiros de facções do tráfico", isto é, CACs atuam como fornecedores de armas ao crime organizado. Em março, foi a vez da Folha publicar sobre a escalada da venda de munições para CACs em 2021: "colecionadores, atiradores desportivos e caçadores adquiriram mais de 61 milhões de unidades".

Fatos semelhantes foram novamente tema de reportagem de Rafael Soares para o Globo, em março de 2022, a partir de investigação policial de 2020 que descobriu relação entre o miliciano Thiago Gutemberg Gomes (Curisco) e um tal de "Alex Armeiro", o sargento da PM Alex Bonfim de Lima Silva, lotado no 39o BPM de Belford Roxo. Como CAC, Alex tinha acesso a armamento expandido, de forma inteiramente legal, desde as modificações legislativas. O caso mais recente de prisão de um CAC foi no início do ano:

"O colecionador Vitor Furtado Rebollal Lopez, o Bala 40, foi preso em Goiânia transportando 11 mil balas de fuzil, Em sua casa, na Zona Norte do Rio, policiais apreenderam 54 armas, sendo 26 fuzis. Ligações interceptadas pela polícia revelaram que Furtado usava seu certificado para comprar material bélico de forma lícita, em lojas legalizadas, e depois revender para a maior facção do tráfico do Rio."

Diante disso tudo, no início deste mês, o próprio Exército reconheceu que "erros no preenchimento do Sigma levaram à inclusão nas planilhas de armas que não são permitidas para CACs, como morteiros e canhões". Para piorar, através da Lei de Acesso à Informação, o Exército também informou que das 1,5 milhão de armas registradas no sistema do Exército, 884 mil (mais da metade) foram vendidas aos CACs.

Juntando os pontos, sim, chegamos à mesma conclusão do porta-voz da PM: estamos de acordo que as operações equivalem a "enxugar gelo". De fato, elas não fazem cócegas na criminalidade ostensiva que procederá, sem dificuldades, às reposições necessárias — a menos que, de forma eficiente, isto é, por meio de inteligência investigativa, impeça-se o reabastecimento como quem vai à padaria comprar pão (também seriam oportunas mudanças legislativas que dificultassem o acesso às armas que cobrassem mais rigor ao registro de CAC).

É inaceitável que no cômputo das razões que respaldem as decisões sobre segurança pública do Rio de Janeiro, o direito à vida — e à vida digna — da população negra e pobre seja sistematicamente desconsiderado. Ela morre afogada no próprio sangue, nas próprias lágrimas enquanto as autoridades vendem à parcela privilegiada da sociedade a ideia de que "algo está sendo feito", de que a "segurança do asfalto estaria sendo garantida". Não está e sabemos disso. Só na região metropolitana do Rio de Janeiro, o Instituto de Segurança Pública informa que, de janeiro a junho de 2022 foram registrados 18.749 roubos a transeuntes, 1.010 homicídios dolosos, 2.166 pessoas desapareceram e mais 2.003 foram estupradas.

Essas são reflexões sobre fatos relevantes para o desenho das políticas públicas, o que também se constitui em um dos objetivos da epistemologia jurídica. Neste sentido, os fatos que funcionam de premissa para a tomada da decisão sobre como frear o crescimento do crime organizado e com isso promover maior segurança à sociedade também precisam estar ancorados na realidade. Para isso, será necessário desviar do sedutor caminho do senso comum que, sobretudo em épocas de eleição, insiste em querer vincular uma falsa sensação de segurança a saldos elevados de mortes negras e periféricas. Uma política de segurança pública que aumenta o abismo social, tradicionalmente forjado no racismo estrutural e institucional, não serve à democracia.

*Marielle Franco completaria 43 anos no dia 27 de julho, anteontem. Esta coluna é dedicada a ela, que lutou por um mundo livre de violência até seu último dia. Marielle, presente!


[1] Sobre a metodologia, há explicação no Relatório Semestral "2022.1": "A rotina do serviço prestado é baseada no tripé: coleta de dados sobre tiroteios, sistematização das informações em base de dados própria e disseminação do conhecimento produzido. Para tanto, a organização disponibiliza um aplicativo gratuito, possui forte presença nas redes sociais e site multifuncional. Cada região metropolitana onde o Fogo Cruzado atua conta com uma equipe responsável por monitorar, diariamente, casos de tiroteios através das nossas fontes. As informações são coletadas: 1) via usuários – através do aplicativo e redes sociais; 2) via imprensa e 3) via informações públicas dos órgãos de segurança. Uma vez notificado sobre um tiroteio, o analista do Fogo Cruzado checa a veracidade da informação de acordo com os critérios pré-estabelecidos pela organização, antes de cadastrá-la no bando de dados. Nesta etapa, os analistas buscam analisar uma série de características dos episódios de violência armada, bem como avaliam marcadores geográficos em temporais para evitar duplicações". Foi essa metodologia cuidadosa, aplicada a assunto tão relevante para a consolidação da democracia brasileira, que rendeu à mencionada iniciativa tantos prêmios, como Premio Innovare de 2021, o Prêmio da República de Valorização do Ministério Público Federal de 2020, O Sigma Data Journalism Awards de 2020, o Prêmio Amaerj Patrícia Acioli de Direitos Humanos de 2018.

Autores

  • é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile), doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e presta consultoria jurídica na temática da prova penal.

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