Opinião

Delírio bolsonarista e tática eleitoral: o vexame com os embaixadores

Autor

  • Roberto Beijato Junior

    é advogado doutor e mestre em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo professor do curso de Direito do Ibmec-SP e autor de diversos artigos e obras nos campos da Filosofia e do Direito.

27 de julho de 2022, 21h29

No último dia 5 de janeiro do presente ano, publicamos aqui na ConJur o texto intitulado "Combate à desinformação é o grande desafio de 2022" [1], em que alertamos para o vindouro cenário eleitoral e o desafio a ser enfrentado pela Justiça Eleitoral e demais instituições do país no enfrentamento às fake news e demais formas de abuso travestidas de "liberdade de expressão" e outros direitos fundamentais no curso do processo eleitoral deste ano. Naquela oportunidade, afirmamos que: "o desafio neste ano de 2022 será o de visualizar como as instituições democráticas lidarão com a vindoura avalanche de fake news que tudo indica que virá no cenário eleitoral que se aproxima. Um cenário extremamente polarizado, belicoso e agravado pelo recrudescimento da miséria e das mais diversas mazelas sociais no Brasil nos últimos dois anos".

Presidência da República
Presidência da República

Pois bem. O "show" dado pelo presidente da República na data de 19 de julho de 2022 em reunião para a qual convocou dezenas de embaixadores estrangeiros ao Palácio do Planalto bem revela que nossa previsão vem, infelizmente, se concretizando. Analisemos brevemente a situação, tanto sob o enfoque das intenções políticas do mandatário, como das repercussões jurídicas sobre referido ato.

Do ponto de vista político as intenções são claras. Bolsonaro convocou embaixadores de dezenas de países não para falar a eles ou para tratar de assuntos de interesse do país. Ao contrário. Os embaixadores eram apenas o adorno utilizado pelo presidente e sua grei para dar ares de pomposidade e oficialidade ao ato. O que era o ato, em síntese? Nada mais do que um delírio, como daqueles que seus apoiadores assistem todas as semanas em suas lives de quinta feira. É dizer, o presidente não falava aos embaixadores, falava à sua bolha — cada vez menor — de apoiadores.

Suas falas, à guisa de constrangerem o país, serviram apenas para reiterar teses já desmentidas por inúmeras vezes acerca de supostas fraudes no sistema eleitoral brasileiro, para atacar as instituições e seus membros, em especial os ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Alexandre de Moraes. Enfim, seu encontro com embaixadores serviu como uma "live de quinta-feira" de luxo, na qual sob a aparência de um ato oficial, Bolsonaro fazia um comício esquizofrênico à sua bolha de seguidores.

A intenção política do mandatário é clara. A ele é evidente que está fazendo uso deliberado de técnicas de desinformação em massa. De igual modo, tinha plena ciência que embaixador algum daria atenção a seus brados — como de fato não deram, não tendo sido Bolsonaro sequer aplaudido por quaisquer deles ou mesmo cumprimentado ao término de sua fala, em cena que causa ainda mais constrangimento — assim como qualquer pessoa que não esteja absolutamente enviesada pela paixão cega. No entanto, sabe de igual modo o mandatário que a verdade pouco importa aos fanáticos. Deliberadamente o presidente mentiu, propagou desinformação, atacou as instituições e seus integrantes, assim como colocou em xeque todo o sistema eleitoral e democrático brasileiro. Tudo isso enquanto fazia uso de suas funções como chefe de Estado, perante autoridades estrangeiras, sob a estrutura que lhe garante a Presidência da República.

Para a sua bolha, as falas do presidente serão material farto para produção de "memes", de vídeos curtos por meio dos quais inflamarão ainda mais sua — repita-se, cada vez menor — base, levando o país ao recrudescimento do clima belicoso instalado e que vem se tornando cada vez mais tenso com a proximidade das eleições.

Não podemos ignorar que, infelizmente, vivemos na era da "pós-verdade", que consiste, primordialmente, na formulação de verdades à luz de aspectos emocionais, ignorando-se os elementos racionais envolvidos na consecução de uma conclusão. Na ideia de pós-verdade o destinatário de uma mensagem tende a formar sua convicção mais a partir de um juízo de adequação da mensagem aos seus desejos e intentos emocionais em detrimento dos aspectos racionais que estariam envolvidos na decisão. As redes sociais e sua lógica comunicacional imediatista, abastecida em bolhas, favorecem esse fenômeno que, agora, produz nefastos efeitos na política, gerando, ainda, o seguinte paradoxo: como combater a disseminação de notícias falsas quando boa parte do próprio público destinatário anseia pela falsidade e não pela verdade? Como combater o fenômeno das fake news se os próprios propagadores e os receptores anseiam apenas por adequar o conteúdo informacional aos seus desejos emocionais, ainda que esses se verifiquem absolutamente irracionais?

É precisamente a lógica da pós-verdade que assegura que atos como o trágico encontro de Bolsonaro com os embaixadores lhe renda dividendos políticos, ao menos com sua base fanática. Isto porque esta não está, de qualquer modo, preocupada com a verdade ou o que quer que o seja. Ao contrário, anseiam por fanatismos, teorias da conspiração e terraplanismos, com o fito de alimentar suas crenças enviesadas. Esta é, em nosso modo de ver, a principal razão pela qual as técnicas de desinformação são empregadas de modo tão recalcitrante em nossos tempos e, sobretudo, por inúmeros agentes políticos que fazem delas uma autêntica tática eleitoral.

No dia seguinte às declarações absurdas do presidente, o Tribunal Superior Eleitoral esclareceu, uma a uma, as mentiras veiculadas por Bolsonaro, em esforço incansável — e repetitivo, diga-se — de repelir, racionalmente, as malícias apaixonadas e emotivas com que trabalham os veiculadores de fake news [2].

A problemática, contudo, é que mesmo com os esclarecimentos das instituições, relembremos: estamos na era da pós-verdade. Os esclarecimentos não se prestam à bolha alucinada. Esta já se mostra satisfeita com a adequação emocional do discurso aos seus desejos. Qualquer explicação racional — como a muito bem desenvolvida pelo TSE — não lhes afetará. É precisamente este cenário que faz com que a disseminação de desinformação seja uma tática poderosa para políticos populistas, na medida em que, mesmo que em menor escala, conseguem mobilizar pequenas multidões por meio do fanatismo. O resultado disso, por exemplo, pode ser visualizado no incidente do Capitólio, nos Estados Unidos.

Por outro lado, é admissível juridicamente o uso de tais táticas e, pior, das atribuições do cargo de presidente da República e da estrutura proporcionada por referido cargo para tão lastimável exercício? A resposta só pode ser negativa.

A nosso ver, estamos diante, somente do ponto de vista eleitoral, de evidente, evidentíssima, aliás, hipótese de abuso de poder político. Trata-se de categoria ínsita ao direito eleitoral e que capta aqueles fenômenos e atos que geram desequilíbrio ilícito sobre o processo eleitoral, influenciando indevidamente o pleito. Vejamos:

"No Direito Eleitoral, por abuso de poder compreende-se o mau uso de direito, situação ou posição jurídicas com vistas a se exercer indevida e ilegítima influência em dada eleição. Para caracterizá-lo, fundamental é a presença de uma conduta em desconformidade com o Direito (que não se limita à lei), podendo ou não haver desnaturamento dos institutos jurídicos envolvidos. No mais das vezes, há a realização de ações ilícitas ou anormais, denotando mau uso de uma situação ou posição jurídicas ou mau uso de bens e recursos detidos pelo agente ou beneficiário ou a eles disponibilizados, isso sempre com o objetivo de se influir indevidamente em determinado pleito eleitoral.

Note-se que o conceito jurídico de abuso de poder é indeterminado, fluido e aberto; sua delimitação semântica só pode ser feita na prática, diante das circunstâncias que o evento apresentar. Portanto, em geral, somente as peculiaridades do caso concreto é que permitirão ao intérprete afirmar se esta ou aquela situação real configura ou não abuso de poder.

O conceito, em si, é uno e indivisível. As variações que possa assumir decorrem de sua indeterminação a priori. Sua concretização tanto pode se dar por ofensa ao processo eleitoral, resultando o comprometimento da normalidade ou legitimidade das eleições, quanto pela subversão da vontade do eleitor, em sua indevassável esfera de liberdade, ou pelo comprometimento da igualdade da disputa.

No plano dos efeitos, a natureza, a forma, a finalidade e a extensão do 'abuso' praticado podem induzir diferentes respostas sancionatórias do sistema judiciário.

Para que ocorra abuso de poder, é necessário que se tenha em mira processo eleitoral futuro ou que ele já se encontre em marcha. Ausente qualquer matiz eleitoral no evento considerado, não há como caracterizá-lo" [3].

O abuso de poder é, de fato, concepção bastante ampla e que pode se revelar de inúmeras formas, tais como o abuso de poder econômico, comunicacional, político, entre outros. A proteção do processo eleitoral contra toda espécie de abuso de poder que desequilibre o pleito ou afete sua normalidade é decorrência de norma constitucional, constante do parágrafo 9º, de seu art. 14, o qual remete à lei complementar a definição de outras hipóteses de inelegibilidade, assim como contra a influência das mais diversas espécies de abuso de poder.

A lei complementar que cumpre esta função, por sua vez, é a LC nº 64/90, com suas subsequentes alterações. Em seu artigo 22 referida lei disciplina o rito das ações de investigação judicial eleitoral (AIJE) cuja finalidade é, precipuamente, a aferição do ato abusivo e imposição de suas consequências que são, nos termos do inciso XIV de referido dispositivo:  "julgada procedente a representação, ainda que após a proclamação dos eleitos, o Tribunal declarará a inelegibilidade do representado e de quantos hajam contribuído para a prática do ato, cominando-lhes sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se verificou, além da cassação do registro ou diploma do candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder de autoridade ou dos meios de comunicação, determinando a remessa dos autos ao Ministério Público Eleitoral, para instauração de processo disciplinar, se for o caso, e de ação penal, ordenando quaisquer outras providências que a espécie comportar".

No caso da "reunião" com os embaixadores é óbvio que Bolsonaro se enquadra como "agente público" para os fins do artigo 73, §1º da Lei 9.504/97 (Lei Geral das Eleições) e que naquela ocasião atuava como chefe de Estado, valendo-se da estrutura proporcionada pelo cargo, de emissora de televisão oficial, que transmitiu o ato, enfim, de todas as condições inerentes ao cargo, que usou para ato de exclusivo interesse à sua campanha presidencial, buscando influenciá-la sob falsas e, por reiteradas vezes desmentidas, alegações de fraudes nas urnas eletrônicas, etc.

O abuso de poder político é claríssimo, na medida em que se verifica que, teleologicamente, a única finalidade do ato público praticado foi a de desequilibrar o pleito, de influenciá-lo por meio do próprio cargo. Neste sentido de longa data já se manifestou o Tribunal Superior Eleitoral, no sentido de que "caracteriza-se o abuso de poder quando demonstrado que o ato da Administração, aparentemente regular e benéfico à população, teve como objetivo imediato o favorecimento de algum candidato" (REspe nº 25.074/RS, j. em 28/10/2005).

O TSE, de fato, deu um poderoso recado por ocasião do recente julgamento do Recurso Ordinário nº 0603975-98, sob o robusto voto condutor do ministro Luís Felipe Salomão, por meio do qual cassou o mandato do deputado estadual Fernando Francischini, em virtude da prática de abuso de poder por ocasião das eleições de 2018, quando, de igual modo, divulgou, no dia das eleições, informações falsas acerca de supostas fraudes em urnas eletrônicas.

Parece, contudo, que diante do desespero pela iminente derrota no pleito que se aproxima, alguns políticos, entre eles o atual mandatário máximo da nação, farão uso de quaisquer técnicas para tentarem se manter no poder. A resposta institucional deve vir com brevidade, sob pena de o cenário belicoso se aprofundar ainda mais. Veremos.

Contudo, não pode deixar de ser mencionado o ensurdecedor e constrangedor silêncio — até aqui pelo menos — do procurador geral da República (Augusto Aras) acerca de fatos dotados de tamanha gravidade. O mesmo se diga da Presidência da Câmara dos Deputados, abastecida por bilhões e bilhões de reais sob o famigerado e inconstitucional "orçamento secreto", que até aqui garantiu a não apreciação dos mais de 100 pedidos de impeachment que permanecem engavetados.

Enquanto o povo brasileiro amarga um retrocesso de décadas em termos de miséria, de recrudescimento da pobreza, da fome, da elevadíssima inflação que destrói o poder de compra da população, é surreal que um chefe de Estado convoque autoridades estrangeiras, não para tratar, em termos de cooperação internacional, de um dos tantos problemas que afligem diariamente o sofrido povo brasileiro, mas o faça para usá-los de "enfeite" para um ato manifestamente abusivo em detrimento do processo eleitoral vindouro e o qual se dirige à sua gama mais fanática de apoiadores.

Esperemos alguma reação institucional clara e rápida, que vá além das meras notas de repúdio e esclarecimento.

Autores

  • é advogado, doutor e mestre em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor do curso de Direito do Ibmec-SP e autor de diversos artigos e obras nos campos da Filosofia e do Direito.

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