Opinião

Combate à desinformação é o grande desafio de 2022

Autor

  • Roberto Beijato Junior

    é advogado doutor e mestre em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo professor do curso de Direito do Ibmec-SP e autor de diversos artigos e obras nos campos da Filosofia e do Direito.

5 de janeiro de 2022, 16h07

O ano de 2022 se inicia e com ele muitos desafios. Entre eles, não podemos olvidar estarmos diante de ano eleitoral e de eleições que prometem, infelizmente, serem polarizadas, belicosas e abastecidas por grande monta de fake news e técnicas espúrias de desinformação massificada.

O fenômeno das fake news constitui marca indelével de nossos tempos, para o qual o sistema de direito precisa evoluir, a fim de regular-lhe. Seus reflexos sobre eleições ao redor do globo são visíveis e se tornaram mais marcantes a partir das eleições norte-americanas de 2016. Documentários como "O Dilema das Redes" [1] e, mais recentemente, o filme "Não Olhe para Cima" revelam o papel desempenhado pelas mídias sociais na difusão de informações e na influência destas sobre os comportamentos, desejos e preferências de cada pessoa, não apenas limitando-se a diagnosticar as predileções de cada indivíduo, mas também instigando e fabricando tendências das mais diversas.

Tal cenário revela um ambiente fértil para a pulverização de notícias sabidamente falsas, que distorcem a realidade com o nítido intuito de manipular o debate público sobre os mais diversos temas.

Em nossa realidade, a técnica de disseminação de notícias falsas tem se tornado uma arma utilizada pelos mais diversos grupos, não apenas em período de campanha eleitoral, em que se utilizam dessa ferramenta, seja para angariar dividendos eleitorais para um candidato ou agremiação específica, seja para manchar a imagem de outro candidato ou partido perante o eleitorado, mas também para influenciar o debate público em temas de extrema relevância. Exemplos disso não faltam e basta rememorarmos inúmeras cenas que foram trazidas à tona pela CPI da Covid-19 no Senado Federal, o maciço uso de disseminação de notícias falsas sobre o uso de vacina, o estímulo a "tratamentos precoces", a negação de questões científicas básicas — em nível de mediocridade comparável somente à ficção no já mencionado filme "Não Olhe para Cima" e os adeptos do don’t look up, que, em que pese a existência de dados óbvios acerca da iminência de a Terra ser atingida por um cometa de proporções apocalípticas, cederam à polarização política de tema que, em si, nada teria de político e ao oportunismo daqueles que se valiam da polarização para angariar ainda mais poder e lucros — e tantos outros "terraplanismos", infelizmente, cada vez mais comuns.

O cerne do Direito Eleitoral se situa na lisura e normalidade do processo eleitoral. É dizer: o principal foco de todo o regramento que compõe o direito eleitoral e dos atores institucionais que o efetivam é o de assegurar a normalidade do pleito e das influências sobre este. Daí porque o Direito Eleitoral discipline minuciosamente os fatores de poder que produzirão ingerência sobre o pleito, outorgando-lhes transparência, em especial no que tange ao financiamento de campanhas, propaganda eleitoral, entre outros.

O processo eleitoral constitui meio essencial e indiscernível do modelo político adotado pelo Estado brasileiro. A democracia, por sua vez, pressupõe transparência. Pressupõe que todos os atores de poder envolvidos no jogo do poder político estejam claramente identificados ao público e ao próprio Estado, enquanto garante dessa normalidade institucional da qual a lisura do pleito depende. O poder político, em um regime democrático, em suas mais diversas reverberações, se exerce com transparência. A ocultação dos participantes favorece as práticas espúrias, tal como Giges, que, ao se perceber invisível às leis, praticou as mais diversas iniquidades [2]. Temos, nesse cenário, um paradoxo que precisa ser conciliado. Vejamos.

De um lado, é indiscutível a importância e a relevância das liberdades relativas à manifestação do pensamento, de expressão etc., as quais são fulcrais para o aprimoramento do debate público e para a formação da vontade eleitoral de uma dada coletividade. Trata-se de um direito fundamental de relevantíssima função, inclusive para o bom funcionamento democrático, sem o qual esse regime seria impensável.

Todo direito fundamental, contudo, possui limites, inexistindo direitos absolutos. A jurisprudência por inúmeras vezes já se deparou com casos complexos em que o conflito entre liberdade de expressão e manifestação do pensamento e outros valores colidentes se apresenta, devendo decidir os limites de cada direito à luz das circunstâncias concretas. Famoso nesse sentido é o "caso Ellwanger", já tão sedimentado na cultura jurídica pátria. As situações presentes são, no entanto, mais controversas.

Como deve o poder político proceder quando as garantias jurídicas que o fundamentam e que deve assegurar são utilizadas justamente para destruir este próprio sistema — ou ao menos para colocá-lo em um estado de incessante perturbação, ao ponto de não lograr normal funcionamento? Defender um "terraplanismo" eleitoral é admissível face à cláusula da liberdade de expressão? Quais são os seus limites? Até que ponto o sistema eleitoral deve admitir a sua própria deterioração causada pelos seus próprios instrumentos? Até que ponto a liberdade de expressão se encontra comprometida com a verdade? São questões que merecem constante debate, visto se tratar ainda de fenômeno novo, para o qual as regras de direito existentes não se encontram totalmente preparadas [3].

Bem deve ser lembrado que "a fundamentação do Direito e do Estado integra um programa de racionalização que engloba todas as esferas da sociedade ocidental, suscitando a exigência de que o direito positivo não busque mais seu fundamento em qualquer esfera de legitimação superior a ele — seja ela ética, cosmológica ou teológica" [4]. É precisamente essa racionalização que a era da pós-verdade em que vivemos revela que vem se perdendo. Decerto, o poder legitima-se e extrai-se a partir do dogma da vontade popular. O processo de formação dessa vontade, portanto, deve receber profunda atenção e destaque, pois é a partir dele que os programas estatais de poder se fincarão. Como lidar, desse modo, com a formação emocional dessa vontade, realizada à guisa da razão e, por meio de discursos que, fundados na liberdade de expressão, desacreditam a própria razão? O problema é complexo e sua resposta deve trespassar vários eixos. Entre eles: a educação do eleitorado, ou seja, daqueles cuja vontade será aferida no processo e a qual legitima o próprio processo e a ética dos discursos públicos, que demanda urgente desenvolvimento.

A chamada "pós-verdade" consiste, primordialmente, na formulação de verdades à luz de aspectos emocionais, ignorando-se os elementos racionais envolvidos na consecução de uma conclusão. Na ideia de pós-verdade o destinatário de uma mensagem tende a formar sua convicção mais a partir de um juízo de adequação da mensagem aos seus desejos e intentos emocionais em detrimento dos aspectos racionais que estariam envolvidos na decisão. As redes sociais e sua lógica comunicacional imediatista, abastecida em bolhas, favorecem esse fenômeno que, agora, produz nefastos efeitos na política, gerando, ainda, o seguinte paradoxo: como combater a disseminação de notícias falsas quando boa parte do próprio público destinatário anseia pela falsidade e não pela verdade? Como combater o fenômeno das fake news se os próprios propagadores e os receptores anseiam apenas por adequar o conteúdo informacional aos seus desejos emocionais, ainda que esses se verifiquem absolutamente irracionais? São alguns dos desafios que se apresentam.

Ao mesmo tempo em que temos um fluxo informacional incessante sobre tudo, cada vez menos temos o aparato humano, ou seja, o sujeito, apto e propício ao pensamento e às reflexões de que tanto dependem, entre tantas outras coisas, o bom desenvolvimento da própria política. A mediocrização invade o debate público e todas as instâncias humanas, inclusive as faculdades de Direito que, só no Brasil, já são em quantidade maior que no resto do mundo inteiro, isso antes mesmo dos cursos de Direito 100% EAD, com aulas gravadas, em que a instituição finge que ensina algo e o aluno finge que aprende… Enfim. Temos, a bem da verdade, um rebaixamento constante dos atributos propriamente humanos, ou seja, a capacidade crítico reflexiva, cada vez mais relegada ao passado, enquanto o presente se afunda nos imediatismos banais que, inevitavelmente repercutem sobre todas as instâncias da vida, entre elas, a política.

Como já dizia Nietzsche, os ouvidos que só conseguem assimilar notas advindas de duas cordas não conseguem compreender aqueles que tocam em mais cordas [5]. Em resumo: um público bestializado e anestesiado pelas redes não estará interessado em longas discussões e reflexões sobre o destino político do país. Não alcançarão e não querem alcançar esse tipo de pensamento. Dá muito trabalho. Conseguem alcançar, contudo, um "meme" com alguma palavra chavão ou uma montagem qualquer. Formarão, ao final, sua vontade política, a partir de tais parâmetros. O voto, enquanto produto angariável no "mercado" político precisa ser obtido quantitativamente. Se o público assimila no máximo duas notas, é preciso se falar em duas notas. O feed das redes sociais não encontrará espaço para grandes discussões. Ler um trabalho filosófico de fôlego "dá muito trabalho". Assimilar um sujeito como Olavo de Carvalho dizendo "ora, porra!" ou qualquer outro impropério é facilmente assimilável e cabe no feed de notícias. Daí porque numa era de mediocrização do homem haja, por conseguinte, uma mediocrização de todas as instâncias do mundo da cultura, entre elas a política. É lastimável e desanimador, para ser dizer o mínimo, quando paramos para pensar que as escolhas essenciais para o país são tomadas, precisamente, à luz de pressupostos absolutamente irracionais.

O ambiente vivenciado nos tempos atuais favorece, portanto, o rebaixamento do debate público e a disseminação voluntária e acrítica de notícias falsas que degradam a formação da vontade política, sobre a qual se assenta a própria fundamentação do poder estatal, levando a crise a âmbitos bastante profundos.

O desafio neste ano de 2022 será o de visualizar como as instituições democráticas brasileiras lidarão com a vindoura avalanche de fake news que tudo indica que virá no cenário eleitoral que se aproxima. Um cenário extremamente polarizado, belicoso e agravado pelo recrudescimento da miséria e das mais diversas mazelas sociais no Brasil nos últimos dois anos.

Um bom indicativo disto se deu por parte do Tribunal Superior Eleitoral, que nos autos do Recurso Ordinário nº 0603975-98, sob o robusto voto condutor do ministro Luís Felipe Salomão, cassou o diploma do deputado estadual Fernando Francischini em virtude da prática de abuso de poder político e de autoridade, além de uso indevido dos meios de comunicação social. Em tal julgado a corte se mostrou atenta à ameaça das fake news e aos inevitáveis limites que todo e qualquer direito fundamental encontra. Mais: encerrou a discussão concluindo que a internet também é considerada meio de comunicação social, para os fins do artigo 22 da Lei Complementar 64/90.

Em curto prazo, certo é que a solução terá de se dar pela via sancionatória, de modo que os financiadores e propagadores das notícias falsas sejam punidos. A longo prazo, contudo, não vemos outra solução que não o aperfeiçoamento educacional do eleitorado.

O natural e esperado seria que, diante de notícias como "terraplanismo" e sujeitos despreparados que nada fazem além de "memetizar" a política, o próprio eleitorado os rechaçasse e não lhes desse maior repercussão. A "viralização" de banalidades revela, de igual modo, um público banal. Esta só se cura por meio da educação, a qual, infelizmente, permanece somente em um horizonte distante em nosso país.


[1] Sobre este documentário publicamos breve texto que pode ser acessado no seguinte link: http://genjuridico.com.br/2021/01/22/o-dilema-das-redes/

[2] Referência à alegoria platônica do anel de Giges. Conferir: PLATÃO. A República, 359c — 360b.

[3] Sobre esta constatação sugiro a leitura da seguinte obra que bem aborda o tema: CRUZ, Francisco Brito. Novo jogo, velhas regras: democracia e direito na era da nova propaganda política e das fake news. São Paulo: Letramento, 2020.

[4] GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Prefácio à ROIZ, Diogo da Silva; GOMES, Geovane Ferreira; SANTANA, Isael José (Org.). A pós-verdade em uma época de mutações civilizacionais. Serra: Editora Milfontes, 2018, p. 7.

[5] Conferir o aforisma nº 281 em: NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. Trad. Heloisa da Graça Burati. São Paulo: Rideel, 2005.

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    é advogado, doutor e mestre em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor do curso de Direito do Ibmec-SP e da Escola Paulista de Direito (EPD) e autor de diversos artigos e obras nos campos da Filosofia e do Direito.

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