Limite Penal

Descaminhos da "lava jato", caminhos da Limite Penal para 2021

Autores

  • Janaina Matida

    é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile) doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e consultora jurídica em temática da prova penal.

  • Marcella Mascarenhas Nardelli

    é doutora em Direito Processual pela Uerj professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora do livro "A Prova no Tribunal do Júri" da Editora Lumen Juris.

  • Rachel Herdy

    é professora da Universidad Adolfo Ibáñez (UAI) no Chile e co-líder do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

  • Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

    é professor titular aposentado de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná professor do programa de pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) professor do programa de pós-graduação em Direito da Univel (Cascavel) especialista em Filosofia do Direito (PUC-PR) mestre (UFPR) doutor (Università degli Studi di Roma "La Sapienza") presidente de honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória advogado membro da Comissão de Juristas do Senado que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP (hoje Projeto 156/2009-PLS) advogado nos processos da "lava jato" em um pool de escritórios que em conjunto definiam teses e estratégias defensivas.

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

12 de fevereiro de 2021, 8h33

"Naturalmente, la publicidad del proceso no tiene nada que ver con la resonancia o espetacularidad, que muy bien pueden conciliarse con el secreto en la obtención y formación de las pruebas" (Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 618).

ConJur

Durante as últimas semanas, acompanhamos o vazamento das comunicações travadas por agentes públicos em aplicativos de mensagens. As trocas desnudam fisiologismo entre acusação e juiz, que atuaram na melhor lógica de “trabalho em equipe”. Nas mensagens, quem tinha a obrigação processual de imparcialidade facilitava explicações de como a acusação deveria agir para que a sua hipótese explicativa “se revelasse” finalmente como a verdadeira; como se a forma de se investigar, que escolhe o que busca e exibe e o que despreza e oculta de olho na confirmação da hipótese acusatória, não fizesse diferença no resultado final. Todos nos recordamos da apresentação do powerpoint usado na explicação da hipótese acusatória (e que inclusive virou meme na internet), mas é sintomática a falta de transparência quanto às estratégias probatórias esgrimidas pela acusação. Essa “astúcia estatal”1 impede o que para Perfecto Andrés Ibáñez consiste na “máxima garantia do processo acusatório”: a aberta exposição da acusação à discussão e eventual refutação pela defesa; o uso das mesmas possibilidades argumentativas e probatórias2. Em síntese, pode-se afirmar que um jogo de luz e sombra foi constitutivo dos desdobramentos processuais da República de Curitiba: a complementariedade entre o que se espetaculariza e o que se esconde sem dúvidas coloca em risco o nosso inacabado e instável projeto de reforma processual, rumo a um sistema acusatório.

Pois bem, no trecho que escolhemos de epígrafe, Ferrajoli se dedica justamente a desfazer qualquer confusão entre publicidade processual e espetacularização processual. A publicidade implica que “os procedimentos de formulação de hipóteses e de determinação das responsabilidades penais devem se produzir à luz do sol”3, sob a vista de todos e, sobretudo, do acusado e da defesa. Muito distante disso, a espetacularização do processo convive com o segredo na obtenção e produção probatórias. Para Ferrajoli, a espetacularização é compatível com processos inquisitórios e propósitos autoritários, enquanto a publicidade é, nas palavras do autor, “seguramente o requisito mais elementar e chamativo do processo acusatório”4. Tratar com seriedade das garantias que asseguram contornos democráticos bem como epistemicamente confiáveis ao processo penal brasileiro requer que se denuncie e que paulatinamente se elimine das práticas processuais brasileiras o mal-entendido acertadamente denunciado por Ferrajoli, mas não só. No decorrer deste ano, os autores da Limite Penal pretendem tratar de outras temáticas que igualmente desafiam a construção do processo penal a nós prometido pela Constituição de 1988.

Janaina Matida dará continuidade às suas pesquisas sobre as provas dependentes da memória. A despeito da sinalizada mudança de entendimento do STJ no fim do ano de 2020, o cotidiano da justiça criminal ainda é marcado por reconhecimentos irregulares que funcionam como motor da seletividade penal contra negros e pobres. No que refere especificamente à prova de reconhecimento, a formulação de protocolos à sua produção precisa tanto considerar as falhas próprias ao regular funcionamento da memória humana quanto um maior controle sobre o fluxo de fotografias que chegam a integrar arquivos policiais. “De onde veio?”,como será utilizada?” e “a partir de que momento deverá ser excluída determinada fotografia?” não são questões a serem respondidas ad hoc delegacias Brasil afora5. Portanto, a necessária proteção dos dados pessoais no âmbito da persecução penal também será um de seus temas. Finalmente, e sem a intenção de esgotar todos os desafios probatórios que lhe inspiram interesse, Janaina faz questão de nomear seu desejo de contribuir para o fortalecimento de um processo penal mais igualitário desde a perspectiva de gênero6. Pontes de diálogo com as experiências de outros sistemas de justiça, como o do Chile, têm-se mostrado imprescindíveis para tanto.

Marcella Mascarenhas Nardelli prosseguirá dedicando-se ao Tribunal do Júri em 2021. Questões como a possibilidade ou não de absolvição por clemência pelos jurados, cumprimento imediato da pena após decisão em plenário e in dubio pro societate, de certo serão revisitadas ao longo do ano. As possíveis e necessárias reformas no procedimento, com vistas a proporcionar aos jurados melhores condições para conhecer e decidir os fatos, continuarão sendo tema prioritário para Marcella. Por outro lado, novos tópicos também ganharão destaque nos futuros textos. A partir de uma perspectiva psicológica sobre a influência de heurísticas e vieses na tomada de decisões, pretende a autora discutir esses reflexos na investigação e decisão sobre os fatos e a medida em que a dinâmica da persecução penal tem sua estrutura voltada para acentuar esses desvios. Para tanto, aspectos essenciais do raciocínio probatório, especialmente no que concerne aos esquemas atomístico e holístico de valoração da prova, serão utilizados como parâmetros para se pensar em propostas de atenuação dos riscos para uma adequada determinação dos fatos.

Rachel Herdy pretende trabalhar a discussão sobre o controle da confiabilidade epistêmica da prova pericial. Este é um tema difícil, pois a decisão por admitir ou não uma prova é sempre categórica, não existe meio termo; mas, por outro lado, a confiabilidade é uma questão de grau, pois algumas provas são mais confiáveis que outras – e nenhuma delas é absolutamente confiável, nem mesmo a análise de DNA. Isso significa que será preciso estipular um limiar ou uma espécie de “sarrafo”, para usarmos a expressão de Janaina Matida e Alexandre Morais da Rosa7. E não podemos nos iludir: a escolha da altura do sarrafo é sempre política. O direito tolera mais a ideia de que inocentes possam ser condenados ou a ideia de que culpados possam sair impunes? A sugestão de que o juiz possa ter o poder de decidir quais provas são epistemicamente boas e quais são ruins e, a partir daí, determinar a sua inadmissibilidade não é muito bem-vinda em um sistema processual que busca se distanciar de um passado inquisitorial. Talvez a saída esteja na previsão de uma regulação mais precisa e seletiva. Uma regulação mais precisa poderia ser alcançada com critérios bem definidos e adequados para se determinar a confiabilidade, capazes de restringir a discricionariedade judicial. Já uma regulação seletiva poderia significar uma distribuição assimétrica de tais critérios. A assimetria deve existir entre os tipos de processo — civil e penal — e entre a acusação e a defesa. Mas, para além desta discussão sobre admissibilidade, outros temas periciais devem ser explorados: condenações errôneas baseadas em provas periciais falsas e enganosas; problemas na comunicação dos peritos e na capacidade de compreensão de juízes e jurados; a existência de erros honestos, como vieses que afetam o próprio perito e as formas de se controlar.

Alexandre Morais da Rosa trará as discussões relativas ao impacto da tecnologia no processo penal, especialmente da Inteligência Artificial. Alexandre entende promissor o uso de máquinas no campo do controle dos limites epistemológicos (como a cadeia de custódia, os requisitos para a produção das provas etc.) e, neste sentido, merecem reflexão para seu adequado aproveitamento. Além da utilidade quanto aos limites epistemológicos das provas, a inteligência artificial pode auxiliar nos argumentos e como apoio das decisões judiciais. Finalmente, no que tange especificamente ao reconhecimento de pessoas, Alexandre trará reflexões a respeito de critérios para a padronização das imagens a partir do uso de tecnologias; vale dizer, sempre com observância à minimização de erros judiciários a partir das arbitrariedades que o sistema de justiça é capaz de cometer.

Aury Lopes Jr. pretende avançar sobre o tema da imparcialidade como “princípio supremo do processo” (Goldschmidt), especialmente no contexto do fim do que entende como “lavajatolatria”. A conjuntura que se vivencia a partir da divulgação dos diálogos entre juiz e promotores na operação Lava Jato, como aos que aqui fizemos referência no início do texto, conduz ao complexo questionamento acerca do papel do juiz no processo penal em um Estado democrático de Direito e, por consequência, o que se pode compreender acerca de sua estrutura acusatória. Por óbvio, sem prejuízo quanto ao interesse que guarda por diversas outras temáticas, o juiz de garantias e a necessidade de se assegurar uma originalidade cognitiva serão, sem sombra de dúvidas, objetos de sua revisão em textos futuros.

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho entende que, em 2021, há que se continuar a discutir o Pacote “Anticrime”. Chama-lhe atenção o uso indevido de institutos do common law sem que, para tanto, proceda-se à adequada adaptação. Tomando como exemplo a discussão sobre standards probatórios e a metáfora do salto com vara trazida pelos outros colunistas Janaina Matida e Alexandre Morais da Rosa, conforme já pontuou por aqui, “lá o ‘saltador’ deve passar o ‘sarrafo’ na altura em que ele está, sendo que o juiz espera, quiçá para confirmar um ‘not guilty’ se ele não conseguir. Por outro lado, aqui, o ‘saltador’ é o próprio juiz, que maneja o discurso como quiser e faz tudo estar ou não ‘além de toda dúvida razoável’” .Os problemas da americanização à brasileira é tema a ser revisitado em futuros textos. “O produto importado vem com os ônus, mas não com os bônus”, segundo Jacinto. “É com essas incoerências que o sistema processual penal brasileiro desmoronou; e vive de fragmentos de democracia processual; além de grandes homens que, como juízes, conduziriam bem os processos até no inferno”8. Como bem colocado por Fauzi Hassan Choukr, é preciso refundar o processo penal adotando um CPP fundado no sistema acusatório; e rezar para que as mentalidades sejam democráticas. Os esforços desta refundação e o compromisso com o sistema acusatório permanecerão presentes aqui na Limite Penal.

Como se pode notar, desde a perspectiva dos colunistas da Limite Penal, tirar lições dos descaminhos processuais evidenciados pela "lava jato" é apenas um dos passos que devemos dar rumo à construção do processo penal que uma democracia debilitada como a brasileira requer. Prometemos fôlego.


1. Tal como trazido por Pierpaolo Cruz Bottini, em artigo desta semana para o ConJur: “A sonegação de provas pelo Estado”. Acesso por https://www.conjur.com.br/2021-fev-08/direito-defesa-sonegacao-provas-estado

2. Ibãñez, Perfecto Andrés. La función de las garantías en la actividad probatoria. In La restricción de los derechos fundamentales de la persona en el proceso penal. Madrid: Consejo del Poder Judicial, 1993. p. 222.

3. Ferrajoli, L. Derecho y Razon, Madrid: Editorial Trotta, 1a Reimpressão, 2014, p. 616.

4. Ibidem.

5. Esse tema foi tratado por Janaina Matida em sua participação no evento de 28/01/2021, que celebrou o “Dia Internacional da Proteção de Dados Pessoais e Privacidade”, organizado pela Comissão de Proteção de Dados e Privacidade da OAB-RJ. Acesso por: https://www.youtube.com/watch?v=XyRaqwUMqYI

6. Em 2020, a discussão sobre a perspectiva de gênero foi trazida por Janaina Matida no que refere à argumentação em matéria de fatos. O debate requer aprofundamento. Matida, J. “Para entender a perspectiva de gênero na argumentação sobre fatos”. Conjur, 2020. Acesso por: https://www.conjur.com.br/2020-out-23/limite-penal-entender-perspectiva-genero-argumentacao-fatos

7. Matida, J.; Morais da Rosa, A. “Para entender standards probatórios a partir do salto com vara”. Conjur, 2020. Acesso por: https://www.conjur.com.br/2020-mar-20/limite-penal-entender-standards-probatorios-partir-salto-vara

8. Miranda Coutinho, Jacinto Nelson de. “Para entender standards probatórios a partir do salto com vara: um complemento”, Conjur, 2020. Acesso por: https://www.conjur.com.br/2020-mar-27/limite-penal-standards-probatorios-partir-salto-vara-complemento

Autores

  • é professora de direito probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile), doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e presta consultoria jurídica na temática da prova penal.

  • é doutora em Direito Processual pela Uerj e professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

  • é professora de teoria do Direito na UFRJ; doutora em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e co-líder do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

  • é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor de Processo Penal na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e na Universidade do Vale do Itajaí (Univali).

  • é advogado e professor titular de Processual Penal na Universidade Federal do Paraná (UFPR), da pós-graduação em Ciências Criminais da PUCRS e do mestrado em Direito da Faculdade Damas. Doutor em Direito Penal e Criminologia pela Università degli Studi di Roma, mestre em Direito pela UFPR e especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR. Membro da Rede de Direito Público Brasil-Itália-Espanha (REDBRITES) e pesquisador e presidente de honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória.

  • é advogado, doutor em Direito Processual Penal e professor titular da PUCRS.

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