Limite penal

Para entender a perspectiva de gênero na argumentação sobre fatos

Autor

  • Janaina Matida

    é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile) doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e consultora jurídica em temática da prova penal.

23 de outubro de 2020, 8h34

Spacca
“Feminismo… Eu penso que a explicação mais simples, e que captura a ideia, é uma canção que Marlo Thomas canta, ‘Free to be you and me’. É ser livre para ser — se você for uma garota — médica, advogada, chefe indígena. Se você for um garoto e você gosta de dar aulas, gosta de cuidar das pessoas, se você quiser ter uma boneca, tudo ok também. É essa noção de que cada um de nós deve ser livre para desenvolver nossos próprios talentos, quaisquer que sejam eles, e não ser impedido por barreiras artificiais — barreiras criadas pelo homem, certamente não criadas por Deus”. (Ruth Bader Ginsburg)

Em 18 de setembro deste ano, faleceu Ruth Bader Ginsburg, que desde 1993 era magistrada da Suprema Corte dos Estados Unidos. Naquele ambiente predominantemente masculino, Ginsburg ficou conhecida por uma atuação comprometida com o tratamento igualitário de mulheres e homens. Aliás, foi exatamente o seu atuar destemido como advogada que lhe rendeu notoriedade. Pra lembrar de alguns de seus casos, nos anos setenta, Ginsburg defendeu o direito de dedução de imposto de renda de um homem em razão de ser o único cuidador de sua mãe. Até então, reconhecia-se esse direito a mulheres (viúvas ou divorciadas), ou a homens cujas esposas estivessem incapacitadas; nunca a um homem solteiro para que cuidasse de sua mãe. O desempenho de Ginsburg rendeu bons resultados a seu cliente, Moritz1 e à coletividade em geral. É que a partir de então, preenchidas as condições de aplicação, a norma relativa às causas de dedução de imposto de renda passou a ser aplicada com independência do gênero. A generalização de acordo com a qual “A mulher é quem cuida (nunca o homem)” deixou de operar como fundamento subjacente à norma em questão.

Já como integrante da Suprema Corte, em 1996, Ginsburg proferiu o voto a partir do qual se pôs fim à tradição de 157 anos de admissão exclusiva de alunos homens pelo Instituto Militar da Virginia2. Ginsburg explicitou a necessidade de um standard para se tratar diferente pessoas em razão de gênero. Sob a ideia de um “escrutínio cético”, Ginsburg defendeu que tratar homens e mulheres de modo diverso requer a superação de um escrutínio rigoroso, pois “não se pode confiar em generalizações excessivas sobre diferentes talentos, capacidades, ou preferências de homens e mulheres”. Logo, sempre que se queira estabelecer tratamento diferenciado, há que se estar disposto ao oferecimento de uma “justificativa extremamente persuasiva”3. Por meio desse voto, a Suprema Corte rechaçou a generalização de que “mulheres são fisicamente delicadas e psicologicamente incapazes de suportar ambientes disciplinares”. Em ambos casos foram descartadas generalizações relativas aos papéis específicos a serem desempenhados em razão do gênero, porque longe de viabilizarem respeito à diversidade, prestavam-se à manutenção de injustiças.

Faz sentido: ora, se as normas jurídicas são tradicionalmente formuladas e aplicadas por homens (e brancos, frise-se), é ilusão esperar que sirvam aos interesses de homens e mulheres de forma simétrica. Como acertadamente sinaliza Suzanna Pozzolo:

“Até hoje, alguns ainda afirmam que a mulher é naturalmente feita para a atividade de cuidar dos outros. É difícil de acreditar, então, que o direito é neutro quando, sob uma observação mais detida, vê-se que ele (o direito) expressa valores particulares e contribui à manutenção de uma ideologia específica”4. (T.L.)

Neste passo, esforços como os de Ginsburg podem ser compreendidos a partir do entendimento de que a construção de um horizonte mais igualitário reivindica medidas capazes de revelar e remediar os injustificados estereótipos que se escondem por debaixo da carcaça da neutralidade jurídica. Nos mais diversos contextos, tomar o direito a partir de um enfoque de gênero é, portanto, imprescindível para se garantir justiça e não discriminação.

Até aqui, destaquei a importância de uma perspectiva de gênero na construção da premissa maior do raciocínio decisório: como é possível extrair pluralidade de normas a partir de um mesmo material jurídico, argumentos interpretativos devem ser oferecidos no sentido de justificar os contornos normativos que se quer atribuir. Foi o legado de Ginsburg, quem ampliando contornos normativos fez caber mulheres e homens onde antes, por força de preconceitos invisibilizados, só eram admitidos ou elas ou eles.

No entanto, esse cuidado conferido à premissa normativa deve ser acompanhado da equivalente atenção com a premissa fática. Justificar uma decisão requer correção na determinação normativa e também de fatos. No contexto probatório, o ingresso d estereótipos injustificados pode comprometer a qualidade do raciocínio que vai das provas aos fatos, cuja ocorrência precisa ser verificada. Adentrando o processo penal, a presença de estereótipos e preconceitos nas mais diversas etapas processuais é sensível obstáculo à determinação da verdade dos fatos5.

Ainda na fase de investigação, o caso do Campo de Algodão, ocorrido na Ciudad de Juárez (México), é emblemático. Em um contexto sociocultural de notória e sistemática violência contra as mulheres6, as jovens Cláudia Ivette González (20), Esmeralda Herrera (15) e Laura Berenice Ramos (17) desapareceram durante os meses de setembro e outubro de 2001. Seus corpos foram encontrados apenas em novembro, com sinais de tortura, mutilação e, em razão do estado de semi-nudez, estima-se que as vítimas também sofreram algum tipo de violência sexual (a decomposição não permitiu perícia). Segundo trechos da sentença por meio da qual a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o estado mexicano:

“Distintas provas trazidas ao Tribunal sinalizaram, inter alia, que funcionários do estado de Chihuahua e do Município de Juárez minimizaram o problema e chegaram a culpar as próprias vítimas de sua sorte, seja por sua forma de vestir, pelo lugar em que trabalhavam, pela sua conduta, por andar sozinhas ou pela falta de cuidado dos pais.

(…) Conforme as provas produzidas, as irregularidades das investigações e nos processos incluem a demora em dar início às investigações, a lentidão das mesmas ou inatividade dos expedientes, negligência e irregularidades na coleta e realização das provas, na identificação das vítimas, perda de informação, extravio de partes dos corpos sob custódia do Ministério Público, e a falta de compreensão das agressões das mulheres como parte de um fenômeno global de violência de gênero”. (T.L. meus grifos)7.

Depreende-se, pois, que a interpretação das informações trazidas pelos familiares das vítimas a partir de estereótipos da “mulher jovem desgarrada e namoradeira” impediu que se constatasse a seriedade da situação. A menor importância em razão de preconceitos de gênero repercutiu na conformação de um conjunto probatório pobre e carente de fiabilidade.

Também é possível apontar nefastos efeitos do emprego de estereótipos uma vez oficialmente instaurada a etapa processual. Sob o manto das máximas de experiência, nos crimes de violência sexual, por exemplo, infelizmente não faltam exemplos de raciocínios probatórios realizados a partir do estereótipo de que “quem é vítima de uma violência sempre resiste, luta, foge, pede ajuda”. Nos termos da decisão absolutória de M.F. (acusado de estuprar uma jovem funcionária de seu estabelecimento), prolatada pelo Tribunal del Juicio oral en lo penal de Punta Arenas (Chile):

“Não disse nada neste momento, quando M.F. tentava penetrar-lhe carnalmente, nem pediu socorro algum, porque estava tentando afastá-lo. No entanto, ambas ações não são incompatíveis entre si, e, em realidade, a partir de máximas de experiência, são complementares; aquele que repele uma agressão sexual empregando resistência física, simultâneamente, procede a pedir socorro”.

(…) Em um momento dado, M.F. tira a sua calcinha muito rápido, e, dado que ela não tinha as pernas cruzadas, tomou uma delas, colocou-lhe na altura da cadeia e ‘então, tiveram sexo sem querer’. Aqui também, desde a perspectiva das máximas de experiência, fez falta uma atitude física de resistência da denunciante, já que nesta posição, o manejo das pernas como mecanismo de defesa resulta muito mais fácil para quem deseja fazê-lo. No entanto, seu depoimento revela ausência desta atividade”8. (T.L.)

Embora representem o senso comum, a resistência ativa não deve ser tomada como a única reação possível. Muito pelo contrário, pesquisas indicam o fenômeno da imobilidade tônica como reação frequente durante o estupro. Em entrevista a 298 mulheres internadas na Clínica de Emergência para Vítimas de Estupro de Estocolmo, pelo menos 70% relataram paralisia involuntária durante o estupro. A falta de reação mais enérgica, no dizer de Ana Möller, responsável pela pesquisa, deve-se ao fato de que entre em cena a imobilidade tônica, uma defesa adaptativa evolutiva, comum em animais de um modo geral. Entre outras coisas, significa dizer que é apressada a conclusão de que a relação sexual é consentida porque a mulher não apresentou resistência ativa durante à prática do estupro9. Com isso, é importante que eu esclareça, não estou a defender a condenação de M.F. O que estou, sim, afirmando, é que a hipótese defensiva foi favorecida por uma generalização que não se sustenta ao exame de como os fatos efetivamente se correlacionam no mundo (estupro e resistência não se seguem um do outro necessariamente). É dizer que, por outros motivos, ainda seria possível entender que a absolvição se impunha (afinal, não é fácil superar o standard de prova penal).

Como se pode intuir, são muitos os estereótipos que podem se fazer presentes no contexto de uma valoração livre das provas. Recentemente, em sentença de outubro de 2019, a Corte de Cassazione Penale da Italia descartou a argumentação de que teria havido consentimento porque a mulher permitiu que o acusado lhe deixasse de carro em casa. Afortunadamente, neste caso os magistrados foram capazes de enxergar o passo inferencial injustificado, que apresentava o consentimento como necessária conclusão lógica da carona à casa10.

Considerando exatamente os efeitos perversos conectados ao mau uso dos estereótipos no direito, Federico Arena recomenda alguns passos para o seu emprego11. Para compreender a sua proposta, é importante que eu diga que Arena emprega o termo “estereótipo” de forma diferente. Ele entende que há usos inadequados dos estereótipos, mas explica que faz parte de nossa vivência em sociedade a categorização, havendo também efeitos benéficos: categorizar economiza tempo e pode até salvar vidas. Pense-se, por exemplo, na propensão de pessoas acima de 60 anos a quadros mais graves de Covid-19. Isso nos leva a colocar estas pessoas sob a categoria “grupo de risco” e, com isso, reservamo-lhes mais precaução do que aplicaríamos a nós mesmos. O estereótipo de que “idosos adoecem mais facilmente”, portanto, pode servir a mais justiça material.

Nem sempre, contudo, a aplicação do estereótipo trará resultados socialmente desejáveis. Tanto é assim que, nos parágrafos anteriores, não faltam exemplos dos efeitos negativos que podem advir de estereótipos construídos e manejados sem qualquer suporte empírico.

“(…) Parte do problema dos estereótipos é que, mesmo quando se comportam como generalizações, não costumam se originarem em investigações sérias acerca das características de um grupo, senão em virtude de processos inferenciais infundados, ou por imitação, ou a consequência de preconceitos, emoções ou outros processos psicológicos mais complexos. A partir desta perspectiva, o problema com os estereótipos é que seus portadores (i.e. quem estereotipa) não se toma qualquer trabalho de lhes corroborar, tampouco estão interessados em fazê-lo porque isso implicaria entrar em contato com o grupo estereotipado e tentar conhecê-lo”12. (T.L.)

A estratégia para remediar este cenário é visibilizar estereótipos. São três etapas: primeiro nomeá-los (naming), destacá-los, trazê-los à luz; segundo, oferecer base empírica e, finalmente examinar como essa generalização funcionará para grupos vulneráveis. Se o resultado da aplicação do estereótipo puder ser mais opressão e desigualdade, não há razão para a sua operacionalização no direito (seja na determinação da norma, seja na determinação dos fatos). O estereótipo deve auxiliar na otimização resultados desejáveis socialmente, nunca a facilitar injustiças (tal como no caso do idoso e o “grupo de risco” para covid-19).

Voltando ao ambiente dos crimes sexuais, neles há que se ter muito cuidado no emprego de estereótipos. Neste sentido, afirmar que houve “consentimento” porque houve “dança sensual” é chancelar, de modo não declarado, um estereótipo que não ultrapassa as fronteiras do senso comum e que, além do mais, serve a retirar mais esta esfera de autonomia das mulheres. Em resumidas linhas, se se passa a processualmente concluir relação sexual consentida de dança sensual, a longo prazo, a mensagem que se está a transmitir é que as mulheres não têm a sua dignidade sexual protegida nestes ambientes; que nestes ambientes, o status ocupado é de coisa, e não pessoa. In the long run, o efeito opressor das generalizações não pode ser perdido de vista.

Finalmente, que não se possa recorrer a estereótipos é estímulo para mais precisa determinação dos fatos. Se tomamos um caso que recentemente retornou às paginas de jornal, por mais tentador que possa parecer interpretar os fatos a partir do reiterado estereótipo da “mulher desgarrada e namoradeira”, não há como se ignorar a inteligência estratégica da investigação que se fez. Com interceptações e escutas ambientais previamente autorizadas, pôde-se verificar, por um lado, a congruência entre o afirmado pela vítima em juízo e em conversas privadas, por outro, o descompasso entre o afirmado em audiência pelos imputados e em conversas privadas. Quando a investigação é levada a sério, a mensagem é apenas uma: nem é necessário recorrer a estereótipos infundados, nem é necessário reivindicar o rebaixamento do standard ao afirmado pela vítima. Por esta mesma razão, o que estou a sublinhar é o deficit argumentativo; não ignoro que, enquanto não houver trânsito em julgado, permanece a possibilidade de que a absolvição seja lograda por caminhos mais justificados. Impossível, neste passo, deixar de recordar os ensinamentos de Perfecto Andrés Ibáñez, quando referiu-se à presunção de inocência inclusive nos crimes sexuais:

“O direito que se examina (à presunção de inocência) é um direito absoluto de seu titular, que deverá reger para ele sem restrições nem atenuantes possíveis, pois tem todo o direito a toda presunção de inocência, em todos os casos”13. (T.L.)

Por tudo isso, devemos nos manter firmes com a presunção de inocência e, ao mesmo tempo, persistir na construção de um mundo em que, tal como desejado por Ginsburg, todos sejam livres para ser o que quiserem.

Agradeço a Perfecto Andrés Ibáñez, Francesco Ferraro, Marcela Araya, Daniela Accatino, Livia Moscatelli e Rachel Herdy, por lerem, enviarem sentenças, bibliografia e revisarem o texto. 


1. https://en.wikipedia.org/wiki/Moritz_v._Commissioner

2. Biskupic, Joan. “Supreme Court Invalidates Exclusion of Women by VMI”. The Washington Post. Acesso por: https://www.washingtonpost.com/wp-srv/local/longterm/library/vmi/court.htm

3. Ibidem.

4. Pozzolo, Susanna. “Introduction: Gender and the Law”. In VV.AA. Investigating Gender-Based Violence (Susanna Pozzolo and Giacomo Viggiani eds.). London: Wildy, Simmonds & Hill Publishing, 2016. p. 1.

5. Dividi minha aula no curso Prueba y Género que coordeno na Universidad Alberto Hurtado a partir das injustiças epistêmicas que acometem os distintas etapas probatórias. Algo semelhante, a partir de estereótipos nos distintos momentos probatórios, foi realizado por Marcela Araya em Araya, Marcela. “Género y Verdad: valoración racional de la prueba en los delitos de violencia partriarcal”, Revista de Estudios de la Justicia, 2020.

6. Mais detalhes, ver: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_205_esp.pdf, p. 32.

7. Ibidem, p. 36.

8. TOP Punta Arenas, RUC 1400368818-7, 15 de outubro de 2014.

9. “Muitas vítimas de estupro sofrem paralisia involuntária durante o ataque.” O Globo. Acesso por: https://oglobo.globo.com/sociedade/saude/muitas-vitimas-de-estupro-sofrem-paralisia-involuntaria-durante-ataque-21447930

10. SET. 5512, Corte de Cassazione Penale, Acesso por: https://www.sistemapenale.it/pdf_contenuti/1588023649_cassazione-5512-2020-attendibilita-vittima-consenso-violenza-sessuale.pdf

11. Arena, Federico. Algunos criterios metodológicos para evaluar la relevancia jurídica de los estereotipos. In Derecho y Control (2), (Valentina Risso y Sofía Pezzado eds.; Hernán G. Bouvier y Federico j. Arena, dir.). Córdoba: Ferreyra Editor, 2019.

12. Ibidem, p. 24.

13. Andrés Ibáñez, Perfecto. Principio de presunción de inocencia y principio de victimización: una convivencia imposible. Revista do Ministério Público, 160, 2019. pp. 62-63.

Autores

  • é professora de direito probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile), doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e presta consultoria jurídica na temática da prova penal.

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