Direito em pós-graduação

A responsabilidade penal da pessoa jurídica e o compliance diante de pandemia

Autor

  • Marcio Fernandes Fioravante da Silva

    é mestrando em Direito Penal na USP; bacharel em Direito também pela USP; tem especialização Lato Sensu em Direito Ambiental pela UFPR; e especialização Lato Sensu em Direito Processual Penal pela Faculdade Damásio de Jesus. É advogado e consultor da Caixa Econômica Federal.

2 de maio de 2020, 8h00

ConJur
A Organização Mundial da Saúde (OMS) sustenta que uma evolução epidemiológica dispõe de seis fases. Na fase seis, tem-se a epidemia em evolução, situação em que há a transmissão inter-humana sustentada e atingindo mais de duas regiões planetária. Nessa situação, a OMS propõe como resposta que cada país implemente ações como previsto em seus planos nacionais de abordagem em casos de epidemias.1

O Direito Penal Brasileiro, por sua vez, prevê diferentes abordagens sobre os delitos que envolvem a disseminação de agentes patológicos contaminantes. O artigo 267 do Código Penal traz o tipo penal de “Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos”, que abarca tanto a modalidade dolosa, quanto culposa. É um delito que prevê penas altas, de dez a quinze anos, estando incluso no rol de crimes hediondos.

Já o artigo 268 traz como previsão típica a conduta de “Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”. É uma norma penal em branco que demanda ato administrativo ou norma complementar. Exemplo de normas complementares nesses casos é a recente lei ordinária federal nº 13.979/2020, que trata da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, e a sua regulação, a Portaria n. 356/2020 do Ministério da Saúde.

Tanto o previsto no artigo 267 do Código Penal, quanto no artigo 268, admitem como seus sujeitos ativos somente as pessoas naturais. O direito penal brasileiro não prevê a responsabilização penal da pessoa jurídica, nesses casos. Pelo ordenamento jurídico brasileiro atual, as pessoas jurídicas são responsabilizadas penalmente apenas pelos crimes ambientais. Não há qualquer possibilidade de uma pessoa jurídica responder penalmente por crimes cujo objeto jurídico do crime seja a saúde pública.

Vejamos que não é situação improvável o caso de uma empresa que propague uma doença, através de uma ação carente de cautela, ou mesmo descumprindo determinações do Poder Público destinadas a impedir a propagação de doenças. Corrobora tal entendimento o fato de que a Lei 9.605/98 instituiu o tipo penal ambiental, no artigo 61, que prevê a responsabilização do agente que Disseminar doença ou praga ou espécies que possam causar dano à agricultura, à pecuária, à fauna, à flora ou aos ecossistemas.

Estando previsto na lei de crimes ambientais, é cabível a incidência desse tipo penal sobre a conduta de uma pessoa jurídica. Todavia, na hipótese em que pessoa jurídica infrinja uma determinação do Poder Público destinada a impedir a disseminação de agentes patogênicos que afetem a saúde pública, não haveria a sua responsabilização penal. Diante de pandemias que podem colocar em risco a vida de milhões de pessoas, a colaboração de diversos tipos de pessoas jurídica é essencial a mitigar os riscos de propagação, a exemplo de empresas multinacionais, clubes e concessionárias de serviços públicos.

Na realidade jurídica brasileira, ao instituir a responsabilidade penal da pessoa jurídica com base no previsto no § 3ª, do artigo 225 da Constituição Federal, a Lei 9.605 de 12 de fevereiro de 1998 trouxe a única exceção no ordenamento pátrio à regra societas delinquere non potest.2 De fato, é a única exceção à regra, tendo em vista que ainda resta controversa e não regulamentada previsão de responsabilização da pessoa jurídica com base no §5º do artigo 173 da Constituição Federal. Ainda que fosse possível a possibilidade de responsabilizar penalmente as empresas por delitos econômicos, a legislação infraconstitucional ainda não o fez.3

A ampliação da responsabilidade penal das pessoas jurídicas para inserção dos crimes relacionados à saúde pública demandaria a emenda do texto constitucional, inserindo essa possibilidade. Ao que tudo indica, não se trata de cláusula pétrea, sendo juridicamente possível tal alteração. Sob esse cenário, surgem as perguntas inevitáveis: “Seria conveniente para a nossa sociedade a responsabilização penal de uma empresa que praticasse condutas semelhantes às previstas nos artigos 267 e 268?”; “As próprias empresas, através dos programas de compliance, adotariam voluntariamente as medidas preventivas, sem necessidade de aplicação da legislação penal?”

Quanto ao primeiro questionamento, temos que a situação de calamidade pública gerada pela pandemia da Covid-19, bem como por outras que a precederam e que poderão a suceder, demandaria a revisão de diversos institutos que compõem o direito penal brasileiro. A revisão do rol de delitos pelo qual as pessoas jurídicas podem responder perante nosso ordenamento parece conveniente. Por óbvio, tal revisão não se refere a um direito penal que atenda, por princípio, ao clamor público, mas sim que se adeque à realidade que o demanda.

A responsabilidade penal das pessoas jurídicas é um instituto que, a despeito de todas as controvérsias que suscita, está em franca ascensão. Tem sido adotada pelos mais diversos ordenamentos, algumas vezes sob uma certa pressão de organismos internacionais, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE. Há um interesse na internacionalização desse instituto, tendo em vista a ampliação da economia globalizada e os abusos cometidos por empresas, que passam a ser sujeitos ativos de delitos com impactos imensos sobre a economia mundial.

Os programas de compliance, por sua vez, constituem uma curiosa hibridização entre o público e o privado, entre Estado e mundo corporativo, pois as normas que moldam as políticas empresariais são duplamente mistas em seu conteúdo, público-privado. Isso pode ser percebido ao analisar o conteúdo, por exemplo, das orientações anticorrupção emanadas por organizações públicas como a OCDE, Banco Mundial, incluindo as normas dos Códigos Penais, que são espelhadas pelas políticas anticorrupção das grandes empresas.4

Na prática, o compliance estabelece um dever de vigilância e, em um sistema que admite a responsabilização penal da pessoa jurídica, acaba por assumir um papel de responsabilidade penal individual para obrigar a prevenção à responsabilidade penal da pessoa jurídica.5 Sob esse mesmo aspecto, a responsabilização penal da pessoa jurídica pode ser encarada ainda como uma estratégia para motivar os gestores a adotarem medidas de organização interna que garantam respeito à legalidade.6 Assim, temos que as pessoas jurídicas são relevantes ao direito penal na medida em que proporcionem um contexto favorecedor de delitos.7

Objetivamente, podemos supor que os programas de compliance que incluam medidas destinadas a impedir a criminalidade, por razões fáticas e jurídicas, atenuariam o risco de desrespeito as medidas de contenção da pandemia, por conta da magnitude da sanção da responsabilidade empresarial, no sistema penal. Logo, assim como no sistema da responsabilidade individual, quanto no da responsabilidade da pessoa jurídica, há o estabelecimento de recompensas, com estímulos positivos (prevenção geral da pena), para o desenvolvimento de programas de compliance.8

Uma investigação da Price water house Coopers aferiu que, em nível mundial, 38% das empresas com regras éticas e programas de compliance foram vítimas de delitos econômicos, frente a 54% de empresas similares sem esses programas. Posições mais otimistas chegam a destacar que, em empresas de nível global, a autorregulação através de programas de compliance proporcionaria vantagens pragmáticas quanto a prevenção de delitos em comparação com a regulação estatal, como a realizada através do Direito penal, tendo em vista o maior poder de moldagem desse modelo à realidade de cada empresa.9

No que tange a situações de pandemia, a aplicação do compliance demanda o monitoramento dos regulamentos que afetam o cotidiano da empresa sobre o tema, principalmente no que corresponde a sua administração, finanças, saúde e trabalho. Em se tratando de um risco a saúde pública, a segurança do trabalhador e do seu entorno deverá ser pautado pelo cumprimento a risca das instruções recebidas por associações empresarias e, principalmente, pelas autoridade públicas, como Ministérios da Saúde e do Trabalho.10

De fato, ações advindas de pessoas jurídicas, como as corporações empresariais, por exemplo, podem ser fatores de incremento ou mitigação do risco de aumento da gravidade da pandemia. A adoção de metodologias de gestão de riscos e controles internos com foco em processos, permite que os administradores implantem medidas de combate a doença, bem como propicie a conscientização de toda a população do seu papel individual na contenção dos possíveis efeitos epidêmicos.11

Todavia, há um certo ceticismo de parte da doutrina que paira sobre a eficácia dos programas de compliance. O Prof. William Laufer, ao avaliar a realidade americana, questiona se os programas de compliance realmente afetam positivamente o comportamento dos funcionários, as tomadas de decisão ou a cultura empresarial. Aparentemente, na maior parte dos casos, os “atores corporativos” não se preocupam se seus esforços afetam as taxas de comportamentos irregulares e não há evidencias de mudanças de comportamentos. Há no compliance basicamente uma fachada atraente para empresas que busca convencer a sociedade de que há um compromisso genuíno de integridade corporativa.12

A adoção de programas de compliance e a consequente cooperação das empresas com a administração pública e judiciário também são vistas, por vezes, como uma saída vantajosa às pessoas jurídicas passíveis dos mecanismos de controle judicial formal. Isto é, uma acusação penal formal e o conseqüente processo teriam maior eficácia na prevenção de outros delitos. Sob esse aspecto, Ana Maria Neira Pena entende que na Espanha, por exemplo, a responsabilização penal da pessoa jurídica é uma resposta às falhas que a autorregulação, o compliance, possui.13

A experiência espanhola faz cair por terra a esperança de que os programas de compliance tenham efetividade, quando não previstos juntamente com a responsabilização penal. Todavia, o compliance e a responsabilização penal da pessoa jurídica vão muito além de mera autorregulação e uma resposta à sua falha. Ao cogitarmos a instituição da responsabilização penal das corporações por crimes envolvendo a situação de pandemia, a adoção e o cumprimento dos programas de compliance podem constituir na forma de se aferir a culpabilidade penal corporativa.

Nesse cenário, a multiplicação dos programas de compliance é fruto dessa pressão que recai sobre empresas. A autorregulação e a responsabilização penal da pessoa jurídica se desenvolvem de maneira peculiar, criando uma dinâmica propícia a se retroalimentarem. Percebemos que a insuficiência da autorregulação fomenta a implementação da responsabilidade penal da pessoa jurídica pelos Estados; essa responsabilização penal, por sua vez, fomenta o desenvolvimento de programas de compliance que buscam diminuir os impactos da responsabilidade penal.

Dessa forma, os programas de compliance têm uma dupla função: atuam como fator preventivo de delitos cometidos pelas empresas, e mesmo contra essas, pois quando bem implementados e funcionais, podem servir a esse propósito; sua outra função é a de ser considerada como fator de mensuração da culpabilidade da pessoa jurídica, podendo influir no quantum da pena ou mesmo promover uma absolvição em âmbito penal, caso seja constatada que foram tomadas todas as medidas possíveis para manter a sanidade da organização.

Desenvolvido por parte da doutrina, o dito “defeito de organização” seria o equivalente funcional da culpabilidade. O papel da implementação de um programa de compliance na empresa seria evitar esse defeito de organização, tornando a empresa menos suscetível à responsabilização na esfera penal. Logo, temos que a adoção voluntária aos programas de compliance não são suficientes à máxima prevenção de delitos, pois somente sua adoção conjunta à responsabilidade penal da pessoa jurídica alcança a melhor efetividade do instituto.

Diante do exposto, temos um cenário que é favorável à inclusão dos crimes contra a saúde pública no rol de delitos pelos quais as pessoas jurídicas podem responder (demandando emenda ao texto constitucional), assim como a ampliação do papel que a autorregulação pode ter no âmbito penal. Para que a sociedade tenha a participação mais efetiva de todos seus componentes nas situações de pandemia, é necessário contar com os esforços das empresas, através de um sistema que as puna em âmbito penal, assim como faz com as pessoas físicas, mas também incentive a efetividade dos programas de compliance.

Seria um atropelo considerar que o papel da pessoa jurídica no direito penal está plenamente desenvolvido, pois constatamos ainda um mundo jurídico penal majoritariamente elaborado em torno do sujeito ativo consubstanciado por uma pessoa física. Logo, diante das situações das pandemias recorrentes em escala global, que demandam a colaboração de toda a sociedade, é necessário rever os mecanismos jurídicos que possam inibir as ações deletérias das pessoas jurídicas.

Esta coluna é produzida com a colaboração dos programas de pós-graduação em Direito do Brasil e destina-se a publicar materiais de divulgação de pesquisas ou estudos relacionados à pandemia do Coronavírus (Covid-19).


1 BRASIL. Ministério da Saúde. Plano Brasileiro de Preparação para Enfrentamento de uma Pandemia de Infuenza. Disponível em: < http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/plano_brasileiro_pandemia_influenza_IV.pdf> Acesso em: 29 mar. 2020.

2 ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Legislação penal especial. 9ª ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 658.

3 LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Especial Comentada. 2ª ed. Salvador: Juspodium, 2014, p. 295.

4 NÍETO MARTÍN, Adán. El Derecho Penal Económico En La Era Compliance. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013, p. 13-14.

5 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; SAAD-DINIZ, Eduardo. Compliance, direito penal e Lei anticorrupção. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 132.

6 NÍETO MARTÍN, Adán. El Derecho Penal Económico En La Era Compliance. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013, p. 10.

7 CIGÛELA SOLA, Javier. El injusto estructural de la organización. Revista para el Análisis del Derecho – InDret, Barcelona, v. 1/2016, n. 340, ene. 2016. p. 11 Disponível em: https://www.raco.cat/index.php/InDret/article/viewFile/305704/395582. Acesso em: 15 out. 2018.

8 SIEBER, Ulrich. Programas de compliance en el derecho penal de la empresa. Una nueva concepción para controlar la criminalidad econômica. In NÍETO MARTÍN, Adán. El Derecho Penal Económico En La Era Compliance. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013, p. 95.

9 Ibidem, p. 96-98.

10 BOSCO GIMENO, Juan. Abordar la pandemia desde el compliance. World Compliance Association, 2020. Disponível em:  http://www.worldcomplianceassociation.com/2664/articulo-abordar-la-pandemia-desde-el-compliance.html#googtrans(es|pt). Acesso em: 04 abr. 2020.

11 BRITES, Elise. Compliance como ferramenta para enfrentamento da pandemia (COVID-19). Be Compliance, 2020. Disponível em: https://www.becompliance.net.br/compliance-como-ferramenta-para-enfrentamento-da-pandemia-covid-19. Acesso em: 04 abr. 2020.

12 LAUFER, William. O compliance game. In SAAD-DINIZ, Eduardo; BRODOWSLI, Dominik; SÁ, Ana Luiza de. (Org.). Regulação do abuso no âmbito corporativo: o papel do direito penal na crise financeira.
São Paulo: LiberArs, 2015, p. 60-61.

13 NEIRA PENA, Ana Maria. La autorregulacion y lãs investigaciones internas corporativas como forma de privatización Del proceso penal. El peligro para los derechos de los trabajadores. In SAAD-DINIZ, Eduardo; BRODOWSLI, Dominik; SÁ, Ana Luiza de. (Org.). Regulação do abuso no âmbito corporativo: o papel do direito penal na crise financeira. São Paulo: LiberArs, 2015, p. 150-151.

Autores

  • é mestrando em Direito Penal na USP; bacharel em Direito também pela USP; tem especialização Lato Sensu em Direito Ambiental pela UFPR; e especialização Lato Sensu em Direito Processual Penal pela Faculdade Damásio de Jesus. É advogado e consultor da Caixa Econômica Federal.

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