Opinião

Procedência da ADI 5.595 é fundamental para o custeio adequado do SUS

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13 de abril de 2020, 11h39

Spacca
Até amanhã (14/4) segue em julgamento a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5595 no plenário virtual do Supremo Tribunal Federal. Seu objeto é o exame da constitucionalidade dos arts. 2º e 3º da Emenda Constitucional nº 86/2015, onde houve imposição de restrição orçamentário-financeira à fruição do direito fundamental à saúde, decorrente de alteração regressiva do piso federal em ações e serviços públicos de saúde.

Na prática, trata-se do principal debate constitucional sobre o arranjo federativamente equilibrado (ou não) de financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS). Ao nosso sentir, diante da pandemia do novo coronavírus (Covid-19) e do estado de emergência de saúde pública de importância internacional, reconhecido na Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, a procedência da ADI 5595 se torna absolutamente premente tamanha a sua repercussão paradigmática para o custeio constitucionalmente adequado do SUS.

O que está essencialmente em debate é o alcance do princípio da vedação de retrocesso e também do princípio da vedação de proteção insuficiente diante de alterações constitucionais que afetam, por via oblíqua, direitos e garantias fundamentais, mediante imposição de restrição orçamentária para sua fruição.

Cabe à Suprema Corte brasileira avaliar se o núcleo pétreo da Constituição de 1988 (art. 60, §4º, IV) pode conviver com emenda constitucional que afete a garantia fundamental de financiamento suficiente e progressivo, sobretudo, impondo restrições fiscais que constranjam os pisos de custeio em saúde e educação a que se referem os arts. 198 e 212 da CF.

Desde a propositura da ADI 5595, há quatro anos, passamos do risco potencial de colapso do SUS pelo agravamento do estrutural subfinanciamento, para o quadro atual de iminência de uma catástrofe humanitária sem precedentes em relação à Covid-19.

A bem da verdade, o severo risco de insuficiência de atendimento à população brasileira no âmbito do SUS de gigantescas proporções não decorre apenas na pandemia do coronavírus. A fragilização da capacidade operacional do nosso sistema público de saúde tem ocorrido paulatinamente, como comprova notícia1 de que, entre 2009 a 2020, foram extintos cerca de 34,5 mil leitos de internação no Brasil.

Nesse contexto de demanda urgente de atendimento à pandemia da Covid-19, a crise do SUS emerge como realidade ainda mais dramática, que colocará em risco de morte centenas de milhares de brasileiros. A conhecida judicialização da saúde é apenas uma limitada e parcial resposta ao fato de que sucessivas restrições interpretativas, emendas constitucionais e operações contábeis, historicamente, causaram – direta ou indiretamente – retrocesso ao direito à saúde e mitigado suas garantias de financiamento e de arranjo federativo-orgânico no âmbito do SUS (como debatemos aqui).

Estudo recente2 aponta uma estimativa de mortes no Brasil por conta da Covid-19 que pode variar de 240.281, com taxa de infecção total de 10%, e, aplicando as taxas de letalidade de casos chineses, a 2.010.405, com base em taxa geral de infecção de 50%, e com a aplicação de taxas de letalidade italianas.

É nesse sentido que o Secretário Geral da ONU, o Sr. António Guterrres, indicou em pronunciamento3 logo após a declaração da pandemia global que a superação da crise causada pelo coronavírus passa, necessariamente, pela ampliação dos gastos com saúde, de modo a "atender às necessidades urgentes e ao aumento da demanda – expandindo testes, reforçando instalações, apoiando os profissionais de saúde e garantindo suprimentos adequados – com total respeito aos direitos humanos e sem estigma".

O que se almeja, com a declaração de inconstitucionalidade do art. 3º da Emenda 86/2015 pela ADI 5595, é garantir a alocação do maior volume possível de recursos para o SUS, sobretudo, buscando os que se encontrem, porventura, disponíveis no Fundo Social do Pré-Sal para as ações e serviços públicos de saúde.

Vale notar, por sinal, que a arrecadação das receitas patrimoniais oriundas da exploração de recursos naturais (notadamente os royalties de petróleo) já realizada no primeiro bimestre de 2020 ultrapassa a casa dos R$ 14,6 bilhões, como se pode ler na tabela a seguir extraída do Relatório Resumido de Execução Orçamentária da União4:

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Por outro lado, em relação ao art. 2º da EC 86/2015, são inegáveis os efeitos prospectivos da ADI 5595, especialmente diante da promulgação da EC 95/2016. Não se trata de debater o art. 2º da Emenda 86/2015 de forma estática, mas é preciso reconhecer os efeitos dinâmicos trazidos pela série de atos e omissões do Executivo Federal, desde a revogação daquele dispositivo pelo art. 3º da Emenda 95/2016, enquanto já estava em debate no STF a ADI 5595.

Hoje o Supremo Tribunal Federal é chamado a debater não só a fotografia dos arts. 2º e 3º da Emenda 86/2015, mas primordialmente precisa refletir sobre o filme das suas implicações trazidas intertemporalmente ao piso federal em saúde pela Emenda 86/2015 em face da Emenda 95/2016.

Dito de outra forma: o filme que o STF precisa julgar diz respeito ao déficit de aplicação no piso federal em saúde de 2016 (dada a suspensão cautelar dos arts. 2º e 3º da EC 86/2015), que obrigaria a União ao dever de compensação em 2017 (ainda não cumprido plenamente) e que, por sua vez, ampliaria necessariamente a base de cálculo de 2018 a 2036, para o piso federal em saúde, o qual passou a ser meramente corrigido pela inflação, segundo a previsão do art. 110 do ADCT.

Tecnicamente, se o mérito da ADI 5.595 for julgado procedente, haverá alteração do valor nominal do piso federal em saúde de 2016 até 2036, sobretudo para fins de fixação da base de cálculo de 2017 (se inclui, ou não, a necessária compensação do déficit de aplicação verificado em 2016) para fins de aplicação, a partir de 2018, da correspondente correção monetária até 2036, na forma do art. 110, II, do ADCT.

Importante apontar que, em 2016, a União aplicou na política pública de saúde menos de 15% da sua receita corrente líquida, invocando e fiando-se na “validade” prospectiva (?) do subpiso de 13,2% dado pelo art. 2º da EC 86/2015, mesmo após a sua revogação expressa e imediata operada pelo art. 3º da Emenda 95/2016.

É o que se verifica a partir da publicação do seu Relatório Resumido de Execução Orçamentária relativo ao 6º bimestre de 2016, de onde se extraiu o seguinte excerto da sua tabela 12 (publicada em atendimento ao art. 35 da LC 141/2012):

Reprodução

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Fonte: Excerto do “Anexo 12 – Demonstrativo das Despesas com Ações e Serviços Públicos de Saúde” do Relatório Resumido de Execução Orçamentária do Governo Federal do 6º bimestre de 2016, cujo inteiro teor se encontra disponível em http://www.tesouro.fazenda.gov.br/documents/10180/352657/RROdez2016.pdf/19a25934-21d9-4e40-9304-a488555c8dbf

Como se extrai dos dados acima, para cumprir o piso federal em saúde de 15% da receita corrente líquida no exercício financeiro de 2016, a União deveria ter aplicado, no mínimo, R$108,371 bilhões, ao invés de R$ 106,236 bilhões, de modo que seu patamar de aplicação em ASPS ficou aquém do exigido constitucionalmente. Isso sem falar aqui do dever de compensação dos restos a pagar que tenham sido computados em anos anteriores no piso federal em saúde e que, em 2016, foram cancelados.

Esse dado concreto já demonstra a necessidade da declaração de inconstitucionalidade dos arts. 2º e 3º da EC 86/2015, mesmo após a revogação do art. 2º trazida no bojo da EC 95/2016, sobretudo diante do dever imediato de compensação a que se refere o art. 25 da LC 141/2012 no exercício financeiro imediatamente posterior.

Não há perda de objeto diante dos efeitos prospectivos até 2036 para o piso federal em saúde, porque, na prática, a decisão cautelar do Ministro Ricardo Lewandowski na ADI 5595 impôs o dever de a União aumentar seu piso em saúde de 2017, a pretexto de medida compensatória do déficit declarado inconstitucional de 2016 (piso de 13,2% em face do dever de aplicação de 15% da RCL federal). Com o acréscimo da medida compensatória e por consequência da base de cálculo do art. 110, II do ADCT, haveria efeito de majoração acumulativa do patamar federal de gasto mínimo em saúde (a ser corrigido pela inflação de 2018 a 2036), a partir do que efetivamente deveria ter sido aplicado em 2017.

Ora, o exame de mérito da ADI 5.595 incide não só sobre o piso federal em saúde de 2016, como também repercute para a medida compensatória que deveria ter ocorrido em 2017 e para a correspondente ampliação da base de cálculo do gasto federal em saúde dado pelo art. 110 do ADCT, a ser corrigido pela inflação de 2018 até 2036.

Como já dito, a decisão do STF na ADI 5595 pode determinar à União que seja considerado como piso federal em saúde o patamar de 15% da RCL no exercício de 2016, ao invés dos 13,2%. Tal interpretação necessariamente implicará efeitos prospectivos, do ponto de vista de medida compensatória e base de cálculo do custeio federal para o SUS, relativamente aos exercícios de 2017 e seguintes (até 2036). Trata-se do dever de compensação do déficit no piso em saúde, na forma do art. 25 da LC 141/2012, o que, por óbvio, seria incorporado adicionalmente à base de cálculo de 2017, para a incidência do piso congelado em saúde a partir de 2018 e até 2036, que a Emenda 95/2016 inseriu no ADCT, na forma do seu art. 110, inciso II.

Em meio à pandemia da Covid-19, cabe hoje ao Supremo Tribunal Federal enfrentar estruturalmente o subfinanciamento federal do Sistema Único de Saúde, julgando procedente a ADI 5595. A bem da verdade, os arts. 2º e 3º da Emenda 86/2015 revelam uma faceta perversa e relativamente recente do “estado de coisas inconstitucional na política pública de saúde brasileira”5, que preexistia à pandemia da Covid-19 e que será por ela agravado.

Reconhecer o problema e corrigi-lo em sua integralidade é a única solução capaz de situá-lo em seu devido patamar sistêmico, porque hábil a reconhecer que as medidas necessárias à sua resolução devem levar em conta, na forma da ADPF 347, “uma multiplicidade de atos comissivos e omissivos dos Poderes Públicos da União, dos Estados e do Distrito Federal, incluídos os de natureza normativa, administrativa e judicial.”

Diante da forma limitada como tem sido interpretado o dever de gasto mínimo federal em ações e serviços públicos de saúde (ASPS) previsto no art. 198 da Constituição, faz-se necessária a afirmação de precedente pela Suprema Corte brasileira que reafirme a vedação de manipulação financeira que frustre a efetividade dos direitos fundamentais, tal como feito pela ADPF 45, desde 2004.

A ADI 5595, neste momento, é uma oportunidade ímpar de o STF resguardar garantia de proteção financeira suficiente para o SUS e, por conseguinte, para o direito fundamental à saúde, em rota de coerência interpretativa com sua longa jurisprudência em prol do mínimo existencial e da máxima eficácia dos direitos sociais.

Em pleno abril de 2020, vedar retrocesso no piso federal em ações e serviços públicos de saúde (ASPS) é defender a higidez constitucional do próprio direito à saúde. Afinal, vivemos o momento em que a sociedade mais precisa da garantia de que haverá financiamento juridicamente estável e fiscalmente progressivo para o SUS fazer face não só à pandemia da Covid-19 no curto prazo, mas a todas as suas atribuições constitucionais no médio e longo prazos.


1 Como se pode ler em https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-perdeu-34-5-mil-leitos-de-internacao-entre-2009-e-2020,70003243158

2 R.Martinez (Pan American Health Organization), P.Lloyd-Sherlock (University of East Anglia) and the PICHM expert consortium (https://www.corona-older.com/).

3 Como se pode ler em https://nacoesunidas.org/chefe-da-onu-pede-solidariedade-esperanca-e-resposta-global-coordenada-para-combater-pandemia/

4 Disponível em https://sisweb.tesouro.gov.br/apex/f?p=2501:9::::9:P9_ID_PUBLICACAO:32058

5 Como debatido em PINTO, EG. Guerra fiscal de despesas na pactuação federativa do SUS: um ensaio sobre a instabilidade de regime jurídico do piso federal em saúde. SANTOS, A; LOPES, LT. Coletânea Direito à Saúde: dilemas do fenômeno da judicialização da saúde. Brasília: CONASS, 2018, pp. 92-107. Disponível em http://www.conass.org.br/biblioteca/download/6880/

Autores

  • é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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