Tribunal do Júri

Legítima defesa da honra de quem?

Autores

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Patrícia Vanzolini

    é advogada criminalista mestre e doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie e do Complexo Educacional Damásio de Jesus e presidente da OAB-SP (triênio 2022-2024).

18 de novembro de 2023, 8h00

O Supremo Tribunal Federal definiu, no julgamento da ADPF 779, que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, vez que se mostra dissonante da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero [1].

Conforme consta na ementa do julgamento, item 6, decidiu-se por julgar parcialmente procedente a arguição de descumprimento de preceito fundamental para “(i) firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, da CF), da proteção da vida e da igualdade de gênero (artigo 5º, caput, da CF); (ii) conferir interpretação conforme à Constituição ao artigo 23, inciso II, ao art. 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao artigo 65 do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa; (iii) obstar à defesa, à acusação, à autoridade policial e ao juízo que utilizem, direta ou indiretamente, a tese de legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como durante o julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento; e (iv) diante da impossibilidade de o acusado beneficiar-se da própria torpeza, fica vedado o reconhecimento da nulidade referida no item anterior na hipótese de a defesa ter-se utilizado da tese da legítima defesa da honra com essa finalidade”.

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Entretanto, dois pontos merecem especial destaque. Em primeiro lugar, quando do julgamento do referendo na medida cautelar, em seu voto vogal, o ministro Gilmar Mendes salientou “que a limitação argumentativa ali proposta deve ser aplicável a todas as partes processuais e, inclusive, à juíza ou ao juiz do caso, visto que a tese também pode ser por eles veiculada em alegações ou petições, na formação de quesitos aos jurados ou em eventual fundamentação de absolvição sumária ao fim da primeira fase do procedimento do Júri, por exemplo. Portanto, por questão de isonomia e paridade entre as partes, a limitação argumentativa assentada nessa ADPF deve ser aplicável a todos os envolvidos na persecução penal, e não somente à defesa. Nesse sentido, cita-se o já mencionado Art. 478 do CPP, o qual estabelece ser vedado às partes fazer referências à pronúncia, sua confirmação ou ao silêncio do réu”.

Desta forma, o que o ministro Gilmar Mendes apontou em seu voto — e que depois foi acatado pelos demais ministros — é que a limitação da tese e a necessidade imperiosa de respeito a dignidade humana, não alcança apenas a defesa, mas sim todas as partes. Ao decidir pela possibilidade de restrição argumentativa, o ministro citou o artigo 478 do CPP (que falaremos logo mais) e utilizou o exemplo das Federal Rules of Evidence dos Estados Unidos.

O artigo 412 das Federal Rules of Evidence impede que sejam utilizados como argumentos o histórico e comportamento sexual da vítima (por mais que a regra também preveja exceções, dentre as quais se houver provas de que a exclusão destes argumentos possa ofender os direitos constitucionais do acusado). Corroborando com o entendimento destacamos que o artigo 404 das Federal Rules inviabiliza a utilização de argumentos sobre o caráter ou características pessoais do acusado ou mesmo de situação criminosas pretéritas, bem como o artigo 801 impede o uso de boatos e informações não comprováveis (em gênero, o hearsay).

Já o artigo 478 do CPP, prevê algumas limitações argumentativas (como o uso da decisão de pronúncia, o discurso sobre as algemas e ao silêncio do acusado). Outra limitação mais recente [2] adveio com a Lei n° 14.245/ 2021, a qual, determinou no artigo 474-A que “Durante a instrução em plenário, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão respeitar a dignidade da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal, e administrativa, cabendo ao juiz presidente garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas: I – a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos; II- a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade a vitima ou de testemunhas”.

Com estas considerações, a conclusão que tanto acusação quanto defesa deve cumprir com o seu papel respectivo, sem a utilização de argumentos que não tenham relação com o fato que está sendo julgado.

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O segundo ponto que exige reflexão é que a ADPF assentou a impossibilidade de que um discurso de ódio seja utilizado no júri. O discurso de ódio, cuja conceituação não é homogênea na doutrina, tem como compreensão geral uma manifestação que contenha elementos de intolerância, discriminação, instigação de violência, preconceito, desprezo por outro ser humano. O óbvio sendo dito: trata-se de argumentação absolutamente inadmissível no processo penal.

E mais, o discurso de ódio não pode ser utilizado por nenhuma das partes, ou melhor, contra qualquer dos envolvidos. E aqui está um ponto relevante. Quando a Constituição Federal assevera no artigo 5º que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” não menciona qualquer exceção aos condenados, tampouco aos acusados. Não é por conta de alguma acusação ou mesmo condenação que se deixa de ser um sujeito de direitos, que a pessoa deixa de ser humano [3].

Em suma, o discurso de ódio, a manifestação preconceituosa, discriminatória, ofensiva, certamente deve ser reprimida em uma sociedade democrática. Entretanto, esta repressão deve atingir a todos. Dentro do processo penal se a defesa não pode se valer de tais discursos, mesmo quando aparada pela plenitude de defesa, menos ainda pode a acusação! Quando mais considerando que a acusação é conduzida por um agente público que deve ser pautar pela estrita legalidade [4].

Assim, jamais se pode admitir qualquer discurso odioso, preconceituoso, discriminatório ou ofensivo por parte da acusação. Argumentos relacionados ao direito penal do autor, sobre os antecedentes criminais, sobre ser envolvido com tráfico de drogas, com organizações criminosas, certamente estão abarcadas nestas categorias.

Infelizmente em 2023 ainda precisamos lembrar que o Processo Penal jamais pode ser utilizado como instrumento de políticas públicas de segurança. Seu uso indevido desvirtua a sua real função de legitimação da eventual responsabilização criminal. Independentemente do crime ou da pessoa, se ficar comprovado, após um devido processo legal, que o acusado deve ser condenado, que seja. Se não ficar comprovado, ele deve ser absolvido. Simples assim. O processo penal sempre deve ser justo e imparcial como pressuposto do próprio Estado democrático.

Enfim, como decidido e discutido pelo viés da defesa na ADPF 779, a única possível interpretação democrática perpassa por proibir qualquer fala, questionamento ou discurso de natureza preconceituosa, discriminatória, excludente ou gratuitamente ofensivo, também pela acusação. O Ministério Público como agente público está restrito na comprovação da hipótese acusatória admitida na pronúncia aos elementos probatórios legítimos. Discursos sobre o caráter, histórico, comportamento, participação em supostos grupos criminosos, também precisam passar pelo filtro constitucional e convencional. A honra da vítima deve ser preservada, assim como a do acusado.


[1] Por mais que não seja o foco do presente artigo, há uma grande controvérsia sobre a possibilidade de limitação argumentativa no júri. Sobre o tema já nos manifestamos anteriormente, inclusive aqui no Conjur: “Tribunal do Júri: a legítima defesa da honra e a decisão do ministro Dias Toffoli” e “Limitação argumentativa que obsta a tese da legítima defesa da honra”.

[2] Entretanto, mesmo antes da alteração legislativa já havia necessidade de respeitar todos os envolvidos do processo. Sugerimos a leitura do artigo “Outra abordagem sobre a Lei Mariana Ferrer: aspectos práticos no júri”.

[3] Claro que atualmente há um movimento que busca um Estado de hipercriminalização, isto é, a horda não se contenta mais em apenas punir, mas também se quer neutralizar a moral e o espírito do sujeito. Aliás, até a família dos apenados ou acusados são submetidos a situações vexatórias e humilhados quando tentam manter suas próprias dignidades. A tentativa de invisibilizar também as reinvindicações são os mais novos exemplos: “Pauta legítima: direito do familiar do preso pleitear melhores condições carcerárias”.

[4] Neste sentido não apenas a Lei Orgânica do Ministério Público, como o recém aprovado Código de Ética do Ministério Público (Enunciado 21 de 11/04/2023). Deste último, veja-se, por exemplo: “Art. 4o O membro do Ministério Público primará pelo respeito à Constituição Federal, aos tratados e convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, às leis do País (…), para o fortalecimento das instituições e a plena realização dos valores democráticos e republicanos. Parágrafo único. A atividade ministerial desenvolver-se-á de modo a garantir e promover a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”; “Art. 9o O membro do Ministério Público, no exercício de suas atribuições, assegurará igualdade de tratamento aos sujeitos do sistema de Justiça e a todos os cidadãos, e evitará qualquer espécie de tratamento discriminatório, injusto ou arbitrário.”

Autores

  • é advogado criminalista, habilitado para atuar no Tribunal Penal Internacional em Haia, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da Pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • é sócia do escritório Brito, Vanzolini e Porcer Advogados e professora de Direito Penal no Mackenzie.

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