Opinião

Liberdade de expressão: entre Skokie e Higienópolis

Autor

  • Vladimir Aras

    é professor da UFBA e do IDP integrante do MPF mestre em Direito Público (UFPE) doutor em Direito (UniCeub) especialista MBA em Gestão Pública (FGV) e membro-fundador do Instituto de Direito e Inovação (ID-i).

16 de abril de 2024, 7h08

O jornalista Michael Shellenberger tornou-se conhecido no Brasil ao divulgar os tais Twitter Files, os arquivos que deflagaram a guerra eletrônica entre Elon Musk e o ministro Alexandre de Moraes, do STF.

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Como dizem respeito à rede social “X” (antigo Twitter) esses arquivos deveriam se chamar “X-Files”. Os cérebros de marketing digital por trás da investida de Musk devem ter rejeitado esse nome por não quererem ser confundidos com o Arquivo X, dos agentes Mulder e Scully, da ficção científica.

Convidado pelo senador Magno Malta, Shellenberg compareceu ao Senado para falar à Comissão de Comunicação e Direito Digital. Na ocasião, usando de sua liberdade de expressão, defendeu o free speech na sua configuração máxima, como se as leis norte-americanas pudessem alcançar todo o planeta, anulando a soberania de outras nações para definirem os seus destinos civilizatórios.

Suposta (e falsa) superioridade da liberdade de expressão nos EUA

Ao exemplificar a suposta (e falsa) superioridade da noção norte-americana de liberdade de expressão sobre as demais, Shellenberger elogiou duas decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos a respeito do tema.

Mencionou o famoso acórdão de 1989, no caso Texas vs. Johnson, no qual a Corte Constitucional em Washington considerou que a queima da bandeira do país se inseria no âmbito do free speech, tal como definido na 1ª Emenda. João Carlos Souto faz uma análise minuciosa deste precedente no seu Suprema Corte dos Estados Unidos: principais decisões, publicado pela Atlas, cuja leitura recomendo.

Já vivemos uma polêmica similar por aqui. Em 2022, Bebel Gilberto sambou sobre a bandeira do Brasil num show nos EUA. Tal como Gregory Lee Johnson fizera ao queimar a Star-Spangled Banner, ao pisar na Verde e Amarela, a cantora brasileira estava no exercício de sua liberdade de expressão.

No entanto, o jurista Ives Gandra se apressou em classificar a conduta como uma contravenção penal, com base, vejam só, na Lei 5.900/1971, aprovada durante o regime militar.

Qualquer constitucionalista deveria saber que tal lei não foi recepcionada pela Constituição de 1988, na parte em que limita a liberdade expressiva. Gostemos ou não, para comportamentos desta espécie, o Brasil e os Estados Unidos oferecem a mesma proteção aos seus cidadãos, inserindo-os no âmbito do free speech. Não há infração penal. E quem quiser protestar contra o vilipêndio ao pendão nacional também estará no exercício de sua própria liberdade de expressão.

Spacca

 Voltemos a 2024. Em sua exposição ao Senado brasileiro, Shellenberger também mencionou outro caso julgado pela Suprema Corte dos EUA nos anos 1970. O jornalista não ocultou sua admiração por essa decisão. Segundo ele, o Tribunal teria permitido ao Partido Nazista Norte-Americano realizar um protesto num bairro judeu em Chicago. Valendo-se da 1ª Emenda, os neonazistas norte-americanos marchariam diante do City Hall de um distrito de Chicago, com suas suásticas e bandeiras.

O caso ao qual o jornalista dos Arquivos X se referiu ganhou o nome de National Socialist Party of America v. Village of Skokie 432 U.S. 43 (1977). A questão ali posta foi decidida em junho de 1977 por 5 votos a 4.

Diferentemente do que sugere Shellenberger, a Suprema Corte dos Estados Unidos limitou-se a examinar questões procedimentais de cunho cautelar, que derivavam de decisões anteriores dos tribunais do Estado de Illinois, onde está o distrito de Skokie, um vilarejo que era então habitado por muitos judeus.

Um caso posterior, Smith vs. Collin, 439 U.S. 916 (1978), que poderia ter permitido o exame do mérito da questão de Skokie, à luz da 1ª Emenda à Constituição norte-americana, não foi admitido pela Suprema Corte. O writ of certiorari necessário à subida do recurso foi negado pela maioria do Tribunal.

Naquela ocasião, o justice Harry Blackmun (1908-1999) lamentou o indeferimento da tramitação da causa e argumentou, em voto em separado, ao qual aderiu o ministro Byron White (1917-2002), que os fatos e sua cronologia demonstravam “a sensibilidade da lide”.

De um lado, diziam eles, estava em jogo o precioso conteúdo da 1ª Emenda; do outro, a Corte era convidada a examinar uma “situação potencialmente explosiva e perigosa, inflamada por lembranças inesquecíveis de experiências traumáticas do segundo conflito mundial”.

Os dois ministros entenderam que o caso Smith vs. Collin oferecia ao Tribunal Supremo a oportunidade para considerar se haveria algum limite à liberdade de expressão. Admitiam que “poderia não haver limite algum, mas quando cidadãos afirmam (…), com profunda convicção, que a manifestação proposta está agendada para um local e de uma forma que é provocadora e duramente ofensiva para os moradores desse local, essa afirmação, embora possa ser desconfortável para juízes”, merecia ser examinada pela Suprema Corte.

Os juízes que divergiram entenderam que um protesto neonazista naquela localidade, nas circunstâncias propostas, poderia encaixar-se na mesma categoria de limitação que alcança o suposto “direito de gritar fogo num teatro lotado”, expressão consagrada pelo justice Oliver Wendell Holmes Jr. logo após a 1ª Guerra Mundial.

Aproveitando o evento de Illinois, Blackmun e White procuravam reexaminar a questão, conforme o precedente de 1919 da Suprema Corte em Schenck vs. Estados Unidos, considerando que “o caráter de cada ato depende das circunstâncias nas quais é praticado”.

Ninguém tem o direito de gritar falsamente a palavra “fogo” para causar pânico em um ambiente público. Esta simples palavra pode representar o sacrifício de bens jurídicos superiores, como a vida de terceiros.

No Brasil, como seria?

A Constituição permitiria uma manifestação de filiados do partido nazista num bairro habitado por judeus, como, por exemplo, Higienópolis em São Paulo? A resposta é inequivocamente não.

Nossa legislação nem sequer admitiria a existência de um partido nazista, uma vez que sua finalidade seria frontalmente contrária ao valor fundamental da dignidade da pessoa humana, ao nosso compromisso com os direitos humanos e ao repúdio da nação brasileira a todas as formas de racismo.

Felizmente, estamos sob a proteção da Constituição de 1988, e não da 1ª Emenda de 1791 à Constituição norte-americana de 1789. E disso devemos nos orgulhar, dada a compatibilidade de nossas normas com os tratados de direitos humanos vigentes e com a legislação de vários Estados democráticos de Direito, como procurei mostrar neste texto sobre a visão europeia do tema.

Tem mais. A simples exibição pública de suásticas poderia, inclusive, configurar o crime do §1º do artigo 20 da Lei 7.716/1989, na modalidade “veicular símbolos, ornamentos, distintivos ou propaganda” para divulgação do nazismo.

E esse crime, na jurisdição brasileira, é imprescritível, dada a sua gravidade intrínseca, que nos remete a um tempo de violência e de aniquilação que não deve ser esquecido.

Diga-se, aliás, que o precedente firmado pelo STF em matéria de antissemitismo, no chamado caso Ellwanger, poderia influenciar julgamentos de outros tribunais constitucionais sobre os limites morais da liberdade de expressão.

Nos tempos que correm, o diálogo entre cortes apicais é uma via de mão dupla, também do Sul para o Norte, como mostram decisões das Supremas Cortes da África do Sul, da Argentina, da Colômbia sobre questões cruciais para a humanidade.

A liberdade de expressão é um direito essencial nos Estados de Direito, mas não pode servir de camuflagem para aríetes que pretendem dizimar direitos ou desestabilizar a ordem democrática. Ninguém pode marchar sobre Berlim, Paris, Tóquio ou Jerusalém para defender as doutrinas odiosas de um partido nazista ou as suas bandeiras negacionistas.

Que saiba, portanto, o Sr. Shellenberger, que, neste quesito, o que é bom para os Estados Unidos não é bom para o mundo. Uma passeata de neonazistas não interessa a nenhuma democracia. Aqui tampouco se pode falsamente gritar fogo num teatro lotado.

Autores

  • é doutor em Direito (UniCeub), mestre em Direito Público (UFPE), especialista MBA em Gestão Pública (FGV), membro do MP desde 1993, atualmente no cargo de Procurador Regional da República em Brasília (MPF), professor assistente de Processo Penal da UFBA, secretário de Cooperação Internacional da PGR (2013-2017), fundador do Instituto de Direito e Inovação (ID-i) e editor do site www.vladimiraras.blog (Blog do Vlad).

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