Opinião

Fake news, liberdade de expressão e o julgamento do 'Núcleo 4' pelo STF

Autores

15 de maio de 2025, 7h01

No último dia 6 de maio, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, recebeu a denúncia do procurador-geral da República contra sete acusados de integrarem o denominado “Núcleo 4” da trama golpista cujo desfecho foram os atos inconstitucionais de 8 de janeiro de 2023. Os acusados — dentre eles constam seis integrantes das Forças Armadas, um integrante da Polícia Federal e o presidente do Instituto Voto Legal — estariam inseridos no núcleo responsável pela operacionalização da divulgação de notícias falsas sobre o processo eleitoral e os Poderes da República, fomentando ataques às instituições constitucionalmente estabelecidas.

Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Nesse sentido, observa-se que, de maneira inédita, a contrainteligência golpista não é (e não pode ser) desprezada institucionalmente por meio de anistias e demais mecanismos de indulgência. O STF, mais uma vez, se posiciona no sentido de compreender os atos golpistas do 8 de Janeiro em meio a uma cadeia articulada de eventos, considerando, inclusive, o disparo de fake news relativas às instituições e, fundamentalmente, ao processo eleitoral elemento importante para a mobilização política e para as condutas criminosas cometidas na Praça dos Três Poderes.

Mas, afinal, por que se fala em contrainteligência golpista?

Ocorre que este núcleo, conforme apontam os indícios presentes na denúncia, utilizou-se da estrutura da  Abin (Agência Brasileira de Inteligência) para viabilizar o disparo de notícias falsas. Assim, fala-se em Abin Paralela. Contrainteligência. Nos termos do voto do relator, ministro Alexandre de Moraes, a denúncia colaciona fortes indícios da instrumentalização (evidentemente ilegal) da agência, o que se deu, sobretudo, a partir da utilização do sistema FirstMile [1] — um software de espionagem que foi utilizado em dispositivos móveis para a captura de dados de opositores políticos.

Conforme argumenta o ministro relator, os dados coletados eram analisados e subsidiavam a criação de notícias falsas, que eram propagadas por perfis (também falsos) que reproduziam o conteúdo, criando-se, assim, uma espécie de “lavagem de notícias fraudulentas” [2].

Além disso, o ministro relator aponta que a chamada “Abin Paralela”, ao multiplicar notícias falsas, estabeleceu o mesmo modus operandi das milícias digitais constantes no Inquérito das Fake News (4.781), já que a denúncia da PGR (Petição 12.100) aponta para uma ação coordenada em que as figuras atacadas publicamente pelo então presidente Jair Bolsonaro eram simultaneamente alvejadas através da divulgação de dados inverídicos.

Tal instrumentalização política da agência de inteligência teria se iniciado no ano de 2018 sob o comando de seu então diretor-geral Alexandre Ramagem, que é denunciado no Núcleo 1, e contava com a colaboração de policiais federais e outros servidores. Esses fatos foram considerados indícios de materialidade e fizeram parte de uma grande trama delituosa que configuraria tentativa de golpe de Estado e de abolição violenta do Estado Democrático de Direito tipificados, respectivamente, nos artigos 359-M e 359-L do Código Penal [3].

O recebimento da denúncia em relação ao chamado “Núcleo 4” da trama golpista levantou a discussão do papel das fake news no Estado Democrático de Direito. As defesas dos acusados, em geral, advogavam que a criação, a produção, o compartilhamento e a circulação de desinformação no âmbito das redes sociais e dos serviços de mensageria pretensamente deveriam estar sob o abrigo da liberdade de expressão e, como exercício de direito fundamental importante para a construção da democracia, não poderiam constituir fato típico.

Instrumentalização das redes

Tanto o voto do relator ministro Alexandre de Moraes, quanto do ministro Flávio Dino destacaram uma premissa fundamental para o juízo positivo de admissibilidade: o fato de que as redes sociais são neutras, isto é, elas em si mesmas são veículos ou instrumentos que podem tanto veicular o exercício do direito fundamental à liberdade de expressão, mas também podem ser instrumentos de práticas delituosas. É preciso acentuar esse papel das redes sociais e dos serviços de mensageria privada no Estado Democrático de Direito. As redes sociais e os serviços de mensageria privada tiveram o condão de transformar profundamente a esfera pública e a própria comunicação pública [4]. Como tecnologia que são, as redes sociais e os serviços de mensageria privada podem constituir tanto veículos de dominação, quanto de emancipação [5].

Spacca

Elas, como instrumentos, modificam a forma da comunicação pública, seja amplificando a voz do comunicante, quanto da capacidade de atingir múltiplos e indeterminados receptadores da comunicação. Essa forma de comunicação que poderia ser democrática e igualitária, em princípio, por possibilitar que qualquer um seja autor sem qualquer controle prévio [6], acabou se transformando em um desafio à democracia pela atuação das big techs e pela transubstanciação do capitalismo. Como bem destaca Shoshana Zuboff, os capitalistas e o detentores dos meios de produção — leia-se as big techs situadas, em sua maioria, no Vale do Silício — agora disputam um mercado de predição comportamental pela qual acumulam riquezas a partir de operações que utilizam meios de produção que são meios de modificação comportamental exercidos por um poder que visa conhecer e moldar o comportamento humano em prol dos interesses de terceiros [7].

É nesse contexto que as fake news e os conteúdos de desinformação devem ser analisados. As big techs operam a partir de algoritmos próprios, cuja programação é feita para atingir os objetivos dos próprios programadores, seja para alcançar lucros próprios ou para objetivos políticos. Desse modo, interesses econômicos e políticos — normalmente ligados à extrema-direita — instrumentalizam as plataformas e as redes sociais para difundir em massa mentiras e desinformações com notícias falsas, vídeos falsos e narrativas fantasiosas, a fim de confundir e fraudar a opinião pública. Esses conteúdos servem para fortalecer discursos de ódio contra minorias, visando propiciar poder político e econômico para as big techs e para pequenos grupos políticos. Nessa toada, as redes sociais são instrumentalizadas para veicular em massa mentira, desinformação e causar um dano à liberdade e à democracia [8].

As fake news, portanto, não estão ao abrigo de um direito fundamental à liberdade de expressão. Embora não podemos definir e delimitar todo o conteúdo do direito à liberdade de expressão, podemos revelar o que não é liberdade de expressão. Não se constitui liberdade de expressão conteúdos mentirosos e desinformações gerados com objetivos antidemocráticos. Não se caracterizam liberdade de expressão os conteúdos e desinformações usados como forma de fraudar a própria liberdade de expressão e, no limite, o próprio Estado democrático de Direito.

Vale dizer, o exercício do direito à liberdade de expressão encontra seus limites no próprio Estado democrático de Direito. Não é liberdade de expressão conteúdos e desinformações que visem suprimir direitos da cidadania e de terceiros. Em outras palavras, não há direito fundamental quando seu pretenso exercício se investir contra o exercício de outros direitos fundamentais [9].

Não se constitui liberdade de expressão especialmente quando as fake news são usadas para atentar contra outros direitos fundamentais e contra a própria a democracia.  Como bem diz Lenio Streck, defender a concepção de que fake news estaria dentro do âmbito da liberdade de expressão é uma contradição performativo-jurídico-política [10].

Embora as fake news, por si própria, não estejam tipificadas como delito autônomo em nosso ordenamento jurídico, elas podem ser utilizadas como instrumentos para o cometimento de diversos tipos de delito. Por exemplo, pense-se em conteúdo desinformativo criado, programado e compartilhado pelas redes sociais para que atribua falsamente a alguém fato definido como crime.

No caso, as fake news constituem o meio para atingir a honra objetiva, isto é, são elas meios para o crime de calúnia. Pense-se, também, em fake news que tentem incutir no eleitorado fato falso em relação a determinado candidato ou partido, a fim de obter vantagens eleitorais. Elas são instrumentos para a consumação do delito do artigo 323 do Código Eleitoral. Assim, como bem disse a ministra Cármen Lúcia, as fake news, as mentiras e a desinformação tornaram-se uma “commodity para comprar a antidemocracia”.

Portanto, no contexto do recebimento da denúncia do chamado “Núcleo 4” da articulação golpista, o STF entendeu que as fake news e os conteúdos de desinformação foram utilizados como instrumento para criar um ambiente social de descrédito do próprio processo eleitoral e, assim, possibilitar as condições para eventual caos social que os atores políticos e militares da trama golpista tentassem reverter o resultado do processo eleitoral para se manterem no poder.

É aí que se inserem as fake news como instrumento de graves crimes contra o Estado Democrático de Direito: elas jamais podem se constituir como exercício de direito fundamental na exata medida em que buscavam retirar ou suprimir direitos fundamentais de toda a cidadania, atacando as instituições democráticas.

 


[1] https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3g32mz1dzdo

[2] https://www.migalhas.com.br/quentes/429718/stf-torna-reus-integrantes-do-nucleo-4-da-trama-golpista

[3] Encontra-se em análise no Supremo Tribunal Federal a suspensão da ação penal contra o deputado federal Alexandre Ramagem, aprovada pela Câmara dos Deputados no último dia 7 de maio. Até a data da redação deste artigo, apenas o Ministro Alexandre de Moraes havia proferido voto, manifestando-se pela continuidade da ação penal em relação aos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa – bem como pela suspensão em relação aos crimes de dano qualificado e deterioração contra patrimônio da União. Vale mencionar que a suspensão se deu em relação aos crimes cometidos após a diplomação, não atingindo as condutas anteriores. Além disso, o Ministro frisou o caráter personalíssimo da imunidade parlamentar, não estendendo a suspensão, portanto, aos demais acusados. Decisão disponível em: https://digital.stf.jus.br/decisoes-monocraticas/api/public/votos/322055/conteudo.pdf.

[4] HABERMAS, Jürgen. Reflections and Hypotheses on a Further Structural Transformation of the Political Public Sphere. Theory, Culture & Society, Volume 39, Issue 4, July 2022, p. 145-171.

[5] Fugindo de uma posição substancialista da tecnologia como veículo de dominação propagada, por exemplo, por Horkheimer e Adorno, quanto a noção de dominação como tecnologia de Marcuse, tem-se a posição de um autor como Andrew Feenberg que revisita as reflexões acerca a tecnologia para apresentá-la como um fenômeno tanto técnico, como político, social e histórico: FEENBERG, Andrew. Transforming technology: a critical theory revisited. Oxford, Oxford University, 2022.

[6] Nesse sentido: HABERMAS, Jürgen. Reflections and Hypotheses on a Further Structural Transformation of the Political Public Sphere. Theory, Culture & Society, Volume 39, Issue 4, July 2022, p. 145-171. p. 160.

[7] ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Trad. George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020. p. 19.

[8] Inclusive o próprio Ministro Alexandre de Moraes enfrentou o tema em obra acadêmica, fruto de sua Tese de Titularidade: MORAES, Alexandre de. Democracia e redes sociais: o desafio de combater o populismo digital extremista. Barueri: Atlas, 2025. p. 100 e ss.

[9] CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade, PRATES, Francisco Castilho, REPOLÊS, Maria Fernanda Salcedo. Liberdades comunicativas. Belo Horizonte: Conhecimento editora, 2020.

[10] STRECK, Lenio. Projeto fake news: há como conter o gozo das redes sem ser tirânico? Conjur, 20 de julho de 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jul-20/lenio-streck-conter-gozo-redes-tiranico/.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!