Opinião

Ativismo judicial: como o STF salvou a democracia em 2022

Autor

  • Eduardo Appio

    é juiz federal na 2ª Turma Recursal dos JEFs do Paraná em Curitiba e pós-doutor em Direito Constitucional pela UFPR (2007).

10 de janeiro de 2024, 6h07

A principal atribuição de uma Corte Constitucional é a delimitação clara do seu próprio campo de competências jurisdicionais. Neste sentido, é o próprio Supremo Tribunal do Brasil que define a latitude e a longitude de sua própria competência, ao contrário dos demais Poderes (Executivo e Legislativo), os quais têm seus limites definidos pela mais alta corte do país.

Esse delicado mecanismo constitucional – fruto de uma longa tradição republicana que remete à ideia de “freios e contrapesos” – se encontra sob permanente tensão, na medida em que a corte tem sido acusada de praticar um público e notório ativismo judicial.

Eduardo Appio, juiz federal

Surgem as seguintes questões: (1) como reforçar o princípio democrático através do Poder Judiciário? (2) a democracia corre risco por culpa do Supremo Tribunal e do Tribunal Superior Eleitoral?

1. O TSE pode legislar?
As eleições regulares e livres se constituem no principal componente da democracia brasileira, amparando-se na ideia de que todos os cidadãos serão tratados de forma indiscriminada na hora de votar e ser votado.

Com esse mesmo sentido, o Tribunal Superior Eleitoral tem se encarregado de estabelecer normas jurídicas que irão regular as eleições gerais, sendo que essas normas culminam por legitimar o seu resultado [1].

A regulação das eleições pelos próprios parlamentares, a cada eleição, esbarraria em dois problemas de ordem prática, quais sejam, o fato de que os atuais membros do Congresso Nacional poderiam, em tese, legislar em causa própria (visando se perpetuar no poder) e o fato de que o Congresso Nacional não teria a velocidade adequada para fazer frente aos novos problemas que surgem à cada eleição (regulação das mídias sociais, por exemplo).

Trata-se, pois, de uma atividade claramente de natureza legislativa por parte do Poder Judiciário eleitoral, algo que conflita com o pensamento original de autores como Hans Kelsen, os quais sempre defenderam que o Poder Judiciário somente poderia exercer uma “atividade negativa” (geralmente através do controle de constitucionalidade das leis).

O Supremo Tribunal Federal tem suas competências definidas pelo artigo 102 da Constituição Federal de 1988 e a atividade normativa do Tribunal Superior Eleitoral está regulada pelo próprio Código Eleitoral [2].

A atividade normativa do TSE já foi referendada pelo STF em mais de uma ocasião [3]. O Supremo se amparou na força normativa da Constituição para fins de autorizar o TSE a normatizar alguns de seus julgamentos mais polêmicos, dentre os quais cumpre recordar a cláusula de fidelidade partidária.

Nessa mesma ocasião, durante o julgamento da Adin 4.086-DF, o então exmo sr. advogado da União (hoje ministro do Supremo Tribunal Dias Toffoli) relembrou os importantes ensinamentos de Konrad Hesse acerca da Constituição e do dever dos juízes de conferir concretude aos seus mandamentos (ainda que parte deles sejam de cunho genérico).

Com este mesmo sentido, mestre Lenio Streck nos ensina que a Constituição é o topos hermenêutico, de maneira que a atividade interpretativa dos juízes deve estar sempre voltada à defesa da Constituição, ou seja, não se interpreta a Constituição de acordo com as leis, mas exatamente o contrário [4].

Durante as últimas eleições gerais no país, em 2022, o TSE se encarregou de regular o uso das redes sociais, tudo com a nobre finalidade de assegurar a paridade de armas entre os candidatos, bem como evitar um cenário de desinformação generalizada por contas das chamadas fake news. O então ministro do Supremo Tribunal Ricardo Lewandowski, já falava da chamada “desordem informacional”, sendo que o STF emprestou total validade à resolução 23.714/22 do TSE (a qual ampliou os poderes da Corte Eleitoral para determinar a retirada imediata de fake news das redes sociais).

O exercício prudente, mas corajoso, dessas atribuições constitucionais, por parte do ministro presidente do TSE (sua excelência ministro Alexandre de Moraes) se revelou como indispensável não somente para garantir igualdade de armas entre os candidatos à Presidência da República, mas também para rechaçar os argumentos golpistas do 8 de janeiro de 2023.

A reflexão conjunta da sociedade brasileira – passado um ano da tentativa mal sucedida de golpe de Estado pelos perdedores das eleições gerais no Brasil – é a de que o Supremo Tribunal e o Tribunal Superior Eleitoral não se omitiram em seu dever constitucional de defesa da Constituição.

A ADPF (ação de descumprimento de preceito fundamental) 1.045 , a qual pretende que o Supremo Tribunal Federal dê  interpretação final acerca da aplicação do artigo 142 da Constituição Federal – que dispõe sobre os limites da atuação das Forças Armadas no país – está sob relatoria do ministro Luiz Fux e certamente será debatida pela sociedade democrática.

A judicialização desse tema demonstra que o Congresso Nacional não tem toda a força política necessária para tratar de questões sensíveis à nação. Nesses casos, surge, com redobrada importância, a vontade judicial de Constituição, criticada pelo Parlamento como ativismo judicial. O ativismo judicial se justifica para essas hipóteses em que o Parlamento delega (de forma implícita, por conta de sua inação) poderes normativos aos órgãos de cúpula do Judiciário.

2. Existe ativismo judicial nas normativas do TSE?
O fato de que diversas leis brasileiras atribuem competência normativa ao TSE, bem como a consolidação desse fenômeno por força de algumas decisões do Supremo Tribunal, confere legitimidade a essa atuação.

As normativas do Judiciário eleitoral – as quais concedem legitimidade positiva às decisões dos juízes eleitorais – em sede de regulação das redes sociais durante o período eleitoral, não conflitam com a liberdade de expressão prevista na Carta de 1988.

Uma das condições de possibilidade da democracia é a legitimidade dos fatos que embasam os argumentos entre os candidatos.

Na medida em que a atuação de um candidato à Presidência da República passa a ser marcada por uma gama generalizada de notícias falsas durante as eleições de 2022 (algo que já havia ocorrido quatro anos antes), o Supremo Tribunal e o TSE são chamados a salvar a democracia.

O que circula nas redes sociais durante as eleições não é fruto de um amplo e saudável debate de ideias (marketplace of ideas [5]), mas sim uma combinação venenosa entre poder econômico, ganância dos donos das redes sociais e oportunismo de parte da imprensa que passa a divulgar esses fatos como uma verdade absoluta (sem nem mesmo consultar suas fontes).

O acesso generalizado à rede mundial de dados e a hegemonia das redes sociais culminaram por criar as condições ideais para o abuso do poder econômico e social no país. Ao contrário do que se poderia imaginar, o exercício de um direito fundamental de acesso à internet somente pode ser viabilizado a partir de uma regulação (mesmo que provisória) por parte do Poder Judiciário durante as eleições.

O ativismo judicial (o qual se manifesta como uma verdadeira afronta aos demais Poderes eleitos pela população) apresenta-se como um mal necessário em situações excepcionais, como a que ocorreu durante a pandemia do Covid no Brasil, bem como durante a produção (em escala industrial) de fake news que visavam comprometer a lisura das últimas eleições. Em ambos os casos, como bem lembrou o ministro Gilmar Mendes em recente palestra na Universidade de Coimbra, o STF salvou a democracia e serviu de sólida ponte na alternância do poder [6].

 


[1] Sempre importante frisar que a Constituição Federal de 1988 considera o direito de voto como uma verdadeira cláusula pétrea. As cláusulas pétreas inseridas na Constituição do Brasil de 1988 estão dispostas em seu artigo 60, § 4º. São elas: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico (grifo do articulista);  a separação dos Poderes; e os direitos e garantias individuais.

[2]  inciso IX do artigo 23 do Código Eleitoral e no artigo 105 da Lei 9.504/1997 (a Lei das Eleições), por exemplo.

[3] Ações diretas de inconstitucionalidade 3.999/DF e 4.086/DF

[4] STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica em Crise. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 225

[5] Termo celebrizado pelo Justice Oliver Holmes da Suprema Corte dos Estados Unidos na histórica decisão Abrams v. United States – 1919, depois ratificada pelo ministro Willian Douglas em United States v. Rumely (1953)

[6] Palestra proferida no dia 5 de julho de 2023 durante o  XXVIII Seminário de Verão de Coimbra, Portugal

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