Opinião

Um guia de leitura da minuta do discurso do golpe tentado em 2022

Autor

  • André Jorgetto

    é advogado graduado em Direito pelo Largo São Francisco da Universidade de São Paulo (FD/USP) graduando em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia e Letras e Ciências Humanas da mesma instituição (FFLCH/USP).

22 de março de 2024, 6h33

O jornalista Jamil Chade, no UOL, publicou a minuta do discurso que decretaria o golpe e impedindo a posse do presidente eleito, cuja leitura é, no mínimo, nauseante.

À parte a intenção e finalidade espúrias, a minuta do discurso traz algumas idiossincrasias sobre as quais vale a pena deter-se brevemente.

Isso porque as representações articuladas também interessam e constituem instigantes “evidências simbólicas” (Cardoso de Oliveira 2008), ao passo que aprimoram nossa percepção e alargam significativamente nossa compreensão sobre o fenômeno, não sendo, portanto, um empreendimento nada desprezível ou exercício meramente cosmético — apesar de, cá entre nós, divertido.

Passemos, então, às considerações sobre o texto insalubre —, ficando anotado desde logo que este autor as elaborou por conta e risco, sem fazer jus ao adicional previsto na CLT, artigo 189.

De partida, é importante figurarmos duas vozes para o mesmo discurso: a primeira, a voz mental de dentro das nossas cabeças que nos acompanha na leitura que induz um sujeito abstrato; e a segunda, a voz do leitor imaginado para enunciação: o então presidente Jair Bolsonaro, ou seja, um sujeito muito concreto como seu vocalizador.

Em relação a esse aspecto do indivíduo enunciante, algumas passagens soam completamente artificiais, porque incompatíveis com o universo cultural e simbólico da persona que as performaria, como a menção ao Conselho de Estado Francês, a Aristóteles, a Tomás de Aquino e ao jurista alemão Otto Bachof (por sinal, como será que Bolsonaro pronunciaria este nome?).

Portanto, aqui fica uma primeira sugestão lúdica: colocar trechos da minuta do discurso em um gerador online que emule a voz do ex-presidente. Uma experiência interessante, porque traz um componente perturbador: ao ouvir a voz do ex-presidente pronunciando trechos desse discurso nos suscita a questão: e se tivesse de fato ocorrido, e essa voz não viesse de um aplicativo de inteligência artificial?

Após concluir a brincadeira sensorial e ser devolvido à realidade, olho ao meu redor e agradeço aos deuses e orixás pela normalidade constitucional alcançada.

Poder Judiciário é o tema

Além dos elementos simbólicos conflitantes com a pessoa do ex-presidente, há outras passagens absolutamente compatíveis com ele, como a expressão já levada à (nossa) exaustão das “quatro linhas” da Constituição, bem ao final do texto.

Ler a minuta discurso procurando identificar o que seria compatível e o incompatível com o universo cultural e simbólico do ex-presidente é uma chave que traz alguns elementos inusitados e pode, inclusive, fazer nos aperceber da falta de outros — curioso notar que não há menção à “ameaça comunista” ou a Deus, duas constantes no discurso bolsonarista. O assunto é o Poder Judiciário.

Spacca

Situados a pessoa enunciante e o assunto, agora cabe refletir acerca do destinatário, que também é uma ausência perceptível.

A falta de um vocativo como “nação brasileira” ou “povo brasileiro” nos obriga a conjecturar o interlocutor e tentar inferir isso de outros elementos no texto.

Considerando ser o objeto do discurso o estado de sítio, é muito provável que seja o Congresso, ante à sua competência exclusiva para aprovação (Constituição, artigo 49, inc. IV).

Isso também encontra respaldo na articulação interna do argumento: no seu todo, ele é um ataque ao Poder Judiciário no exercício regular de sua função judicante. A minuta do discurso tenta convencer o Legislativo que o Poder Judiciário (notadamente o TSE e o STF) carece de moralidade e de legitimidade, porque atuaria além dos limites de sua função e em favor de interesse próprio e de terceiros.

Esta seria a “comoção nacional” para fins da CF, artigo 137, inciso I,[1] apta a autorizar a declaração presidencial de estado de sítio, suscitando a intervenção militar no STF na forma da garantia da lei e da ordem (CF, artigo 142 [2]).

Os argumentos seriam a suspeição do ministro Alexandre de Moraes porque seu padrinho político Geraldo Alckmin é vice na chapa em oposição à do Bolsonaro; o fato de o TSE não ter levado adiante as questões (absurdas) suscitadas sobre a lisura do processo eleitoral; a multa aplicada ao Partido Liberal cujo montante em milhões de reais só se explicaria pelo número do partido (o partido concorre sob o número 22 e a multa por litigância de má-fé foi aplicada na casa dos R$ 22 milhões); seletividade na atuação do TSE (que não teria analisado a falta de inserções de propagandas eleitorais no Nordeste; onde o candidato Lula era o favorito); imposição de censura (o que seria o combate às “fake news”); e afronta à coisa julgada com o intuito de prejudicar determinadas pessoas e/ou favorecer outras, mediante flexibilização de entendimentos consolidados. Isso seria um conjunto de ações que afrontariam a moralidade — o que foi intitulado de “princípio da moralidade institucional” — e ensejariam um ataque militar a outro poder da República.

Relação com golpe de 1964

E aqui é possível entrever a diferença com relação ao golpe de 1964: ambos têm como objetivo último a tomada da Presidência da República, mas o golpe tentado de 2022 necessariamente precisava atacar o Poder Judiciário para consecução de tal fim. Isso porque na conjuntura atual, o Poder Judiciário, materializado nos órgãos do TSE e do STF, atuou como guardião da Constituição e resistência às tentativas de fraudar o processo eleitoral e interferir na manifestação da soberania popular.

Se eficaz o movimento, os resultados eleitorais estariam em suspenso, assim como a posse do candidato vencedor e consequentemente a permanência de Jair Bolsonaro no cargo seria prolongada indefinidamente.

Contudo, seria necessária uma justificativa retórica para isso, pois, com a saída do Poder Judiciário de cena, viria a tarefa de sustentar esse estado de coisas. E justamente para isso se prestam os elementos da política, como o Hino Nacional, a bandeira, as narrativas heroicas, motes, bordões etc.

A escolha da bandeira e do dístico “ordem e progresso” enquanto elemento no discurso não foi fortuita. E a meu ver, há razões para a eleição da bandeira nacional em detrimento dos outros elementos. Primeiro, porque a bandeira tem um componente mítico de remissão às origens da república e ao passado glorioso, emprestando o nacionalismo necessário para a ação. Segundo — e creio ser o mais importante — porque traz embutido o protagonismo dos militares da vida pública e condução na nação.

Nesse sentido, não é nada aleatória a invocação à teoria de controle de constitucionalidade de autoria de Otto Bachof. Primeiro, porque o próprio STF afastou de plano sua aplicabilidade no julgamento da ADI 815/DF, de modo que insistir nela é uma modalidade de enfrentamento direto à Corte.[3]

Segundo, porque a teoria de Bachof abre margem para um controle de constitucionalidade sem ter como referência a própria Constituição, mas um direito pré-estatal (Bachof 2010: 60 e ss.) — onde entra justamente a figura da bandeira nacional e seu dístico positivista “ordem e progresso” invocados no início do discurso como a bússola para a ação golpista.

Levados ao limite esses elementos retóricos e ideológicos, imagino que a utopia golpista delira com a noção de uma constituição inconstitucional e seria justamente essa teoria de Otto Bachof a semente para o extermínio da Constituição de 1988 na tentativa de reorientá-la com base em outras premissas, ressuscitando o autoritarismo de outrora, jamais enterrado e que insiste em nos assombrar até hoje.

Como visto, os elementos num discurso político pouco têm de aleatório, embora pareçam escolhidos arbitrariamente à primeira vista. Em verdade, esses símbolos guardam relações de sentido que pautam a forma como eles se articulam discursivamente, cuja análise permite uma compreensão num nível mais profundo, sem implicar abandono do ferramental jurídico, mas com este mantendo um diálogo próximo. São bons para pensar.

 

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Referências
BACHOF, Otto. ¿Normas constitucionales inconstitucionales? Trad. Leonardo Álvarez Álvares. Lima: Palestra Editores.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. “O ofício do antropólogo, ou como desvendar evidências simbólicas” In Anuário Antropológico, v. 2006, p. 9-30.


[1] Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de:

I – comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa;

[2] Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

[3] O STF definiu não haver limitação poder constituinte originário, não cabendo uma averiguação da constitucionalidade de normas insertas no texto constitucional originalmente promulgado; não se prestando cláusulas pétreas para estabelecer critérios de hierarquia entre normas constitucionais. As limitações existem tão somente em relação ao poder constituinte derivado.

Autores

  • advogado graduado em Direito pelo Largo São Francisco da Universidade de São Paulo (FD/USP), graduando em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da mesma instituição (FFLCH/USP).

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