Anton Tchekhov e a Colônia Penal de Sacalina
4 de maio de 2025, 8h00
“A Ilha de Sacalina”, de Anton Tchekhov (1860-1904), pode atualmente ser lido como um estudo de criminologia aplicada em forma de notas de viagem que o escritor russo realizou em 1890. Durante alguns meses estudou pacientemente uma colônia penal, localizada numa das partes mais orientais da Rússia, a ilha de Sacalina, que é muito próxima do Japão.

O livro foi escrito entre 1891 e 1894, quando o escritor já havia retornado para Moscou. Trata-se de descrição precisa de uma prisão. Há no livro elementos de ciência política, de economia, de criminologia, de sociologia, de história, de geografia. Tchekhov era médico. Em uma carta para seu editor, Aleksei Suvórin, Tchekhov afirmou que a medicina era sua esposa e que a literatura era sua amante…
Para deslocar-se de Moscou para a ilha de Sacalina Tchekhov atravessou toda a Sibéria. Uma epopeia. A jornada empreendida por Tchekhov foi uma travessia geográfica de proporções épicas. Sem dispor da infraestrutura moderna, Tchekhov percorreu, ao longo de aproximadamente dois meses e meio, vastas regiões da Rússia czarista, utilizando trens, barcos, carruagens, trenós e cavalos. Durante a viagem conviveu com soldados e presos, enfrentando estradas lamacentas, doenças e longas esperas. Seu destino era o extremo oriente russo, ao norte da Ilha de Sacalina, onde iniciaria seu trabalho de campo.
Hoje a mesma viagem pode ser feita em cerca de 8 a 12 dias, por meio da ferrovia Transiberiana, complementada por ônibus até o porto de Vanino e, de lá, por balsa até a ilha. São aproximadamente 9.300 quilômetros, cruzando quase toda a extensão do território russo. A modernização das vias e a integração logística contrastam com o heroísmo de Tchekhov, que percorreu esse trajeto movido por um desafio existencial. Queria ajudar. Queria compreender. Não foi uma viagem oficial ou institucional. Enfrentou uma inquietação moral. Sua motivação era compreender, documentar e denunciar as condições da colônia penal de Sacalina. E o fez, com profundidade e empatia.
Na parte final do roteiro viajou com centenas de soldados, comandados por um oficial. Havia também vários prisioneiros no comboio. Segundo Tchekhov “um dos presos era acompanhado por uma menina de cinco anos, sua filha, que quando o pai subiu pelo portaló, se agarrou às correntes que prendiam”. Uma prisioneira era acompanhada pelo marido. Familiares dos presos e deportados podiam viver na colônia penal que Tchekhov descreveu.
O autor não perdia o humor, mesmo no meio de tanta dificuldade. Registrou que quando chegou na colônia penal os presos tiraram os gorros em sinal de respeito, “honraria que, provavelmente, nenhum literato jamais recebera, até então”. Riu do fato de que as ruas eram batizadas com nomes de funcionários ainda vivos. Menciona uma “literatura de muro”, como denominou palavrões escritos nos muros da colônia.
Tchekhov nos dá uma descrição precisa da prisão. Elaborou um recenseamento que conduziu sozinho identificando presos, acompanhantes, carcereiros, população local. Descreveu militares, moscas, pequenos funcionários, deportados, presos, camponeses pobres. Fala com empatia dos “mujiques”, descendentes dos antigos servos (i.e., escravos, libertados na Rússia em 1861). Lamentava a notável ignorância daquela gente, que nada compreendia.
O método que usou para o recenseamento é descrito no livro. Usou folhas impressas na tipografia da delegacia de polícia local. Registrava o nome dos povoados. As pessoas viviam esparsamente pela ilha. Identificava o número da casa, valendo-se de um cadastro geral que já havia. Identificava a categoria do recenseado: trabalhador forçado, colono, deportado, pessoa livre.
Os livres compartilhavam a vida doméstica dos presos ou deportados. Concluída a pena (geralmente fixada em trabalho forçado) os egressos tornavam-se colonos. Quando perguntados pela idade ou nome muitos respondiam que não se lembravam. O tempo de sobrevivência, uma vez chegando-se na ilha, raramente passava os vinte e cinco anos.
Tchekhov constatou que havia muitos presos que recebiam subvenções governamentais que vinham em forma de ajuda alimentícia, vestuário ou mesmo dinheiro. Havia subvenções para pessoas que se casavam. Galos, porcos e cachorros ficavam presos o tempo todo. Um preso respondeu ao questionário registrando que todos os seres da ilha viviam acorrentados, inclusive os animais.
Detentos usavam botas feitas de couro de cachorro. Imperava um mal cheiro que tentava se disfarçar com poções de alcatrão e de ácido fênico. Os presos eram levados para fora do estabelecimento prisional principal para alívio de necessidades fisiológicas, ao ar livre. Segundo Tchekhov “isso não era cumprido segundo a vontade deles, mas apenas quando estavam reunidas algumas pessoas com essa mesma vontade”. Era absoluto o desprezo pelas instalações sanitárias. O que se comentava (em forma de jornal local oral) era sobre quem fugiu, ou quem tentou fugir, ou quem levou tiros.
De acordo com uma carta que escreveu para seu editor, quando voltou para Moscou, Tchekhov comemorava o retorno. Dizia estar vivendo uma sensação muito boa, como se nunca tivesse saído de casa. Relatou que trabalhou intensamente na ilha. Contou que viu tudo, menos a pena capital. Viu muito sofrimento e trabalho forçado. Para o autor, Sacalina surgia na memória como um verdadeiro inferno.
Tchekhov não foi apenas um literato de sensibilidade rara. Revelou-se também um cientista rigoroso, dotado de olhar clínico e espírito investigativo. Sua formação médica orientou seu método de observação e de registro. “A Ilha de Sacalina” é uma obra ímpar, profundamente humana e meticulosamente documentada.
Combinando o talento narrativo com a precisão estatística, Tchekhov deu voz a uma população esquecida, revelando, com honestidade desconcertante, as condições desumanas de uma colônia penal. Há uma mistura de empatia e método, que expressam a consciência de um intelectual que não se limitava à contemplação estética. Era também comprometido com uma necessária denúncia moral.
Ao expor com detalhes rotinas degradantes, insalubridade, ignorância e falta de esperança, Tchekhov engatou um movimento de crítica e repúdio àquele modelo punitivo. Seu testemunho contribuiu para despertar a sociedade russa sobre os horrores do sistema penal czarista. “A Ilha de Sacalina” é também um registro, uma denúncia e uma peça de resistência.
Décadas mais tarde, já sob o regime soviético, a Rússia veria a multiplicação sistemática de colônias penais em moldes ainda mais brutais, os tristemente célebres “gulags” da era stalinista. A descrição minuciosa e inquietante feita por Tchekhov em Sacalina antecipa, com impressionante precisão, as engrenagens de sofrimento, controle e desumanização que viriam a se institucionalizar em larga escala no século 20.
“A Ilha de Sacalina” não é apenas uma denúncia localizada no tempo. É também alerta recorrente sobre os perigos da naturalização da barbárie travestida de ordem. Esse impressionante livro inscreve-se, assim, na tradição das grandes obras de testemunho sobre a condição humana sob o peso da repressão, ao lado de “Recordação da Casa dos Mortos”, de Dostoiévski, de “O Arquipélago Gulag”, de Alexander Soljenitsyn, e “É isto um homem?”, de Primo Levi. O horror, quando repetido, corre o risco de parecer normal.
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