Carlos Frederico Santos e o genocídio indígena no Brasil
23 de fevereiro de 2025, 8h00
A história da América Latina é também uma sucessão de massacres, injustiças e apagamentos. Pablo Neruda, o poeta chileno, ao refletir sobre a empreitada europeia no continente americano, sintetizou esse processo de violência em uma imagem potente: “a fome, a cruz e a espada iam dizimando a família selvagem“.
Essa trindade de opressão – a necessidade, a fé e a força – foi o alicerce de uma campanha de extermínio, travestida de missão civilizatória e justificada pelos interesses econômicos de banqueiros e monarcas. Há hoje leituras um pouco diferentes, porém, ao que consta, esse seria o enredo mais verossímil.
O genocídio indígena, muitas vezes negado ou relativizado, no entanto, não se encaixa no modelo paradigmático do Holocausto europeu. A tendência a reduzir a concepção de genocídio aos moldes dos campos de concentração nazistas acaba por excluir outras formas de extermínio, como aquele praticado contra os povos originários das Américas. O genocídio não é um fato exclusivo dos “Konzentrationslager“.
Essa é uma das questões teóricas centrais enfrentadas por Carlos Frederico Santos em livro publicado pela Del Rey (Genocídio Indígena no Brasil, uma Mudança de Paradigma). O autor enfrenta problemas jurídicos que marcam a discussão. Entende-se da leitura desse belíssimo livro que o genocídio indígena não é apenas uma questão de competência jurisdicional entre as Justiças Federal e estadual; trata-se de reflexo profundo de intolerâncias e preconceitos que moldam a nossa sociedade.
Duplo apagamento
A fixação da imagem do Holocausto como modelo exclusivo de genocídio deriva da experiência europeia e de sua reação ao trauma da barbárie nazista. Essa reação, por sua vez, resultou em importantes marcos civilizatórios, como a Constituição Alemã de 1949 e a consolidação da dignidade da pessoa humana como princípio jurídico inviolável.
No entanto, esse processo não teve um equivalente na América Latina. Aqui, não houve julgamentos como os de Nuremberg ou Frankfurt para escrutinar responsáveis pelos massacres indígenas, que até hoje ocorrem. Bandeirantes, navegadores e escravistas não foram tratados como criminosos. Foram glorificados como heróis nacionais. Colombo batiza um país, os bandeirantes nomeiam avenidas e os antigos traficantes de indígenas são vistos como agentes do desenvolvimento econômico. Essa inversão da lógica histórica nos deixou sem um referencial crítico sobre o nosso próprio passado. Por outro lado, não há como se reescrever o que já aconteceu, fora de seus contextos.

A ausência do referencial cria um duplo apagamento: a negação da existência de um genocídio indígena e a impossibilidade de reconhecê-lo dentro de uma moldura jurídica que prioriza padrões externos. O caso do massacre da etnia Tikuna, em 1988, ilustra esse dilema. A chacina ocorrida na região da Boca do Capacete, distante cerca de 1.000 km de Manaus, com mortos, feridos e desaparecidos, não se ajustava ao modelo europeu de genocídio. Como consequência, a responsabilização dos culpados foi dificultada, e a resposta estatal revelou-se insuficiente. O livro de Carlos Frederico se debruça sobre esse descompasso e expõe, com precisão, as lacunas de um sistema jurídico que ignora a realidade brasileira.
Ação e resistência
A experiência da violência colonial e do extermínio dos povos originários já foi abordada por autores como Bartolomeu de Las Casas e Padre Antônio Vieira. No entanto, diferentemente da Europa, onde a memória do Holocausto gerou uma intensa produção memorialística e cinematográfica, a América Latina carece de um equivalente à obra de Primo Levi ou aos processos judiciais que julgaram os crimes do nazismo. Essa ausência pode nos condenar ao esquecimento e perpetua a impunidade dos responsáveis pelos massacres históricos e também contemporâneos.
O livro de Carlos Frederico não se limita a um diagnóstico teórico; o livro é um chamado à ação. Como membro do Ministério Público Federal, Carlos Frederico é um respeitadíssimo procurador da República que atuou diretamente em muitos desses casos, demonstrando que a luta contra a violência sistemática exige não apenas reflexão. Exige também engajamento e enfrentamento judicial.
A abordagem do livro demonstra que o reconhecimento do genocídio indígena não é mera questão meramente conceitual. É passo necessário para a construção de uma sociedade que se responsabiliza por seu passado e luta para evitar que esses crimes continuem a ocorrer. O problema posto está na reincidência.
A obra de Carlos Frederico expõe as contradições do direito positivo brasileiro e como ele ainda se submete a uma visão eurocêntrica do genocídio. Se o Holocausto foi o estopim para a construção de um modelo jurídico que defende a dignidade humana, por que o massacre dos povos indígenas não provoca a mesma reação? A resposta está na estrutura de poder que persiste desde a colonização, uma estrutura que silencia, nega e relativiza a destruição dos povos originários.
“Genocídio Indígena no Brasil, uma Mudança de Paradigma” é um ato de resistência. Em um cenário em que a violência contra indígenas continua sendo naturalizada, a obra de Carlos Frederico rompe com o silêncio e exige um olhar crítico sobre a nossa própria história. Mais do que um estudo acadêmico, trata-se de um manifesto contra a impunidade e a favor do reconhecimento da dignidade de todos aqueles que, ao longo dos séculos, foram sistematicamente exterminados e marginalizados.
Se há uma mensagem essencial neste livro, é a de que resistir é um ato de humanidade. Nomear os crimes, reconhecer as vítimas e exigir justiça não é apenas uma questão jurídica; é um compromisso moral inescapável. O livro de Carlos Frederico é um marco para garantir que a história do genocídio indígena não continue a se repetir, sob novas formas e novas justificativas.
O autor é um jurista que compreende a intersecção entre teoria e prática de maneira ímpar. É um profissional preparadíssimo para enfrentar os desafios contemporâneos. Sua análise rigorosa e sua atuação prática demonstram que o direito exige reflexão e ação. Carlos Frederico apresenta um diagnóstico e um caminho, um inventário de problemas e uma carta de navegação.
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