Pornografia infantil e literatura: o que queremos proteger?
23 de abril de 2025, 6h03
Caso Tori Woods

A autora australiana Lauren Tesolin-Mastrosa, que escreve sob o pseudônimo de Tori Woods, foi presa em Sydney, na Austrália, acusada de produzir material de abuso sexual infantil. Tal fato ocorreu após a repercussão negativa nas redes sociais de um romance escrito por ela.
O livro de ficção erótica chamado Daddy’s Little Toy foi publicado de forma independente e retrata o romance entre uma mulher de 18 anos e um homem alguns anos mais velho. Segundo os leitores, em determinado momento o homem da relação confessa que deseja sexualmente a jovem desde quando ela era menor de idade.
Foi realizada uma busca e apreensão na casa da autora. A polícia apreendeu diversas cópias do livro, que passarão por análise forense. Ela foi acusada de posse de material de abuso infantil, disseminação de material de abuso infantil e produção de material de abuso infantil. A escritora está em liberdade condicional [1].
Orientações internacionais sobre pornografia infantil
Existem algumas diretrizes internacionais no tocante à criminalização de conteúdo de pornografia infantil. A Unesco, em 1999, emitiu o “Relatório final, declaração e plano de ação sobre o abuso sexual infantil, pornografia infantil e pedofilia na internet”. O documento recomenda que os Estados tenham um alinhamento sobre o que pode ser reconhecido como pornografia infantil, pois assim se torna mais eficaz o combate a esse crime [2].
Em 2000 a ONU definiu como pornografia infantil qualquer representação, por qualquer meio, de uma criança envolvida em atividades sexuais explícitas reais ou simuladas ou qualquer representação das partes sexuais de uma criança para fins sexuais [3].
Em 2004 o Jornal Oficial da União Europeia publicou um documento que buscava unificar o entendimento dos países do bloco europeu sobre pornografia infantil. Ele definia como pornografia infantil o conteúdo em que: 1. uma criança real estivesse envolvida em uma conduta sexualmente explícita; 2. uma pessoa real aparentando ser uma criança estivesse envolvida em uma conduta sexualmente explícita; 3. imagens realistas em que uma criança inexistente estivesse envolvida em uma conduta sexualmente explícita [4]. Em 2011 os países europeus lançaram um novo documento que mencionava apenas a proibição de imagens realistas retratando crianças e adolescentes em cenas de sexo explícito ou imagens realistas dos órgãos sexuais de um menor para fins sexuais [5].
Leis australianas sobre pornografia infantil
A lei australiana é muito rígida e considera como material de pornografia infantil (ou material de abuso infantil) documentos que representem menores de 18 anos ou que aparentem ser menores de idade em atos de cunho sexual. Essa representação pode ser por qualquer meio de mídia, uma vez que a mera descrição de ato sexual envolvendo menor de idade pode ser criminalizada.
As normas australianas qualificam como pornografia infantil material escrito com descrição de menores de idade em relações sexuais. Para a criminalização de material escrito, é usado o argumento de que é possível ao escritor incentivar o cometimento de abuso sexual infantil ou outro delito similar [6]. Há a ressalva de que o material supostamente criminoso deve ser analisado para se observar possível valor artístico e literário. Caso haja essa comprovação, não há crime [7]. A representação de menores de idade em situações sexualmente explícitas não é um fenômeno novo na literatura e acontece em obras pertencentes a diversas culturas.
Exemplos na literatura
Trazemos aqui três exemplos de retratação de crianças ou adolescentes em situações de cunho sexual na literatura. O primeiro do século 19, escrito por um brasileiro, e os outros dois pertencentes ao século 20, assinados, respectivamente por um russo radicado nos Estados Unidos e por um britânico.
Noite na Taverna, escrita por Alvares de Azevedo e publicada postumamente em 1855, relata o encontro de jovens em uma taverna. Eles contam algumas aventuras de suas vidas. No seguimento Gennaro, o personagem-título recorda do tempo em que foi aprendiz de pintor na casa de um famoso artista. Walsh, o artista, tinha uma filha de 15 anos e Gennaro, que à época contava com 18, diz ter tido relações sexuais com a jovem. O texto segue:
“Como eu disse, o mestre tinha uma filha chamada Laura. […]. Laura parecia querer-me como a um irmão. Seus risos, seus beijos de criança de quinze anos eram só para mim. […]
O fogo dos meus dezoito anos, a primavera virginal de uma beleza, ainda inocente, o seio seminu de uma donzela a bater sobre o meu, isso tudo ao despertar dos sonhos alvos da madrugada, me enlouqueceu…
Todas as manhãs Laura vinha a meu quarto [8]…”
O caso mais popular de representação de erótica de menor de idade é o livro Lolita. O romance de 1955 escrito por Vladimir Nabokov narra a história de Humbert Humbert, pedófilo obcecado por Lolita, uma criança de 12 anos.
Em algumas passagens do livro Nabokov expõe os pensamentos libertinos de Humbert com relação às crianças, como por exemplo:
“A sós com a filha de um passageiro afogado, sacudida por calafrios. Querida, estamos só brincando! Como eram maravilhosas as aventuras que eu imaginava, enquanto fingia, sentado num banco de parque, estar imerso nas páginas trêmulas de um livro. Em torno do estudioso circunspecto, ninfetas brincavam à vontade, como se ele fosse uma estátua conhecida ou parte da sombra e do esplendor de uma velha árvore. Certa vez, uma pequena beldade perfeita de saia xadrez apoiou com estrépito a pesada blindagem de seu pé no banco, bem do meu lado, para afundar em mim seus braços delgados e nus e apertar a correia dos seus patins, e me dissolvi ao sol, com meu livro por folha de parreira, enquanto seus cachos acobreados despejavam-se sobre o joelho esfolado, e a sombra das folhas que eu compartilhava pulsava e se derretia em seus braços radiosos bem ao lado do meu queixo de camaleão. Outra vez, uma escolar ruiva segurou-se na alça diante de mim no metrô, e a ferruginosa revelação axilar que captei permaneceu no meu sangue por semanas” [9] (Nabokov, 1955, p. 25-26).
Neil Gaiman conta no texto intitulado Snow, Glass, Apples uma versão da clássica história infantil Branca de Neve. No conto, a narradora é a Rainha Má e Branca de Neve é apresentada como a verdadeira vilã, tendo desde criança um comportamento sórdido e malicioso. Branca de Neve, mesmo com apenas doze anos, seduz um homem para poder beber seu sangue, conforme o texto abaixo:
“Ela tinha doze anos e não era mais uma criança pequena […].
Ela se levantou e andou ao redor do fogo, e esperou, a um braço de distância. […] Ele puxou a corda em volta de sua cintura, e seu manto se abriu. Seu corpo era tão peludo quanto o de um urso. Ela o empurrou de volta para o musgo. Uma mão rastejou, como uma aranha, através do emaranhado de cabelo, até que se fechou na masculinidade; a outra mão traçou um círculo em seu mamilo. Ele fechou os olhos e tateou sob sua saia. Ela abaixou a boca para o mamilo que estava provocando, sua pele lisa branca no corpo peludo e marrom dele” [10].
O Direito brasileiro e a pornografia infantil
No direito brasileiro normas de criminalização da pornografia infantil estão previstas nos artigos 240 a 241 – E do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O artigo 240 criminaliza a produção de pornografia infantil nos seguintes termos: “Produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente”.
O artigo 241-E dispõe que são entendidas como “cenas de sexo explícito ou pornográfico” qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais. O artigo 241-C tipifica a criação por meio de montagem, adulteração ou modificação de cena de sexo explícito ou pornográfico envolvendo criança e adolescente.
Não há criminalização de materiais pornográficos em que haja pessoas adultas que aparentem ser crianças ou adolescentes, já que nesse caso não haveria lesão de nenhum direito a uma criança ou adolescente real. A leitura desses artigos torna claro o objetivo da lei brasileira de criminalizar materiais que produzam dano direto, seja físico ou de imagem [11], a crianças e adolescentes reais.
Considerações sobre moralismo e a criminalização de materiais escritos como pornografia infantil
Yaman Akdeniz afirma que essas leis excessivamente rigorosas não seriam menos efetivas caso não houvesse menção aos materiais escritos. O autor escreve sobre a dificuldade de se demonstrar os danos causados ao menor de idade pelo uso de material escrito. Os materiais correspondentes a imagens e vídeos produzidos com crianças reais causam danos diretos aos menores presentes no material. Entretanto, tal dano não é causado aos menores com a produção de material escrito, uma vez que nenhuma criança ou adolescente é usada para esse fim.
Akdeniz admite a possibilidade de o material escrito ser empregado para o cometimento de aliciamento, porém defende apenas a criminalização do ato de aliciar, e não do ato de escrever o material aplicado para o aliciamento [12]. Em se constatando a ausência de dano, as normas que criminalizam material escrito podem ser consideradas como moralistas, uma vez que tolhem comportamentos inofensivos a terceiros, contemplando a moral vigente em sociedade.
As normas brasileiras se ocupam da proteção da integridade física e psicológica de crianças e adolescentes reais, não criminalizando uma representação ficcional de um menor de idade. A produção de um texto em que haja a descrição de uma cena de sexo com a participação de menores não fere a integridade física e psicológica de crianças e adolescentes reais, uma vez que estes não participam de sua feitura e não são o público-alvo desse tipo de literatura. Não havendo dano para uma criança ou adolescente real, o material não deve ser criminalizado, nos termos do ECA.
Conclusão
As normas com relação à pornografia infantil devem ser rígidas e é compreensível que o tema desperte sentimentos intensos no sentido de proteger os menores de idade, entretanto o legislador não deve se guiar por conceitos puramente moralistas. As leis brasileiras se mostram menos abstratas que australianas, uma vez que tutelam o bem-estar de crianças e adolescentes em situações concretas de risco. Não criminalizando meras representações fictícias feitas por adultos e para adultos.
[1] News.com, News.com, Sydney author Lauren Tesolin-Mastrosa arrested over ‘pedophilia’ book. News.com, 24 mar. 2025. Disponível em: https://www.news.com.au/national/nsw-act/crime/sydney-author-lauren-tesolinmastrosa-arrested-over-pedophilia-book/news-story/5babb82438d7adc5ca699c877b07641a. Acesso em: 29 mar. 2025.
[2] UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Final report, declaration and action plan: protecting children online. Disponível em: unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000119432?posInSet=2&queryId=N-EXPLORE-7d8a93ed-0156-4560-b5b9-d6c497c21754. Acesso em: 18 ago. 2019.
[3] ONU. Optional Protocol to the Convention on the Rights of the Child on the sale of children, child prostitution and child pornography, 2000. Disponível em: https://www.ohchr.org/en/instruments-mechanisms/instruments/optional-protocol-convention-rights-child-sale-children-child. Acesso em: 30 mar. 2025.
[4] Council Framework Decision 2004/68/JHA of 22 December 2003 on combating the sexual exploitation of children and child pornography. Disponível em: http://www.kcik.pl/en/doc/COUNCIL_FRAMEWORK_DECISION_2004_68_JHA.pdf. Acesso em: 15 abril 2020.
[5] Jornal Oficial Da União Europeia. Disponível em: < https://eur-lex.europa.eu/eli/dir/2011/93/oj>. Acesso em: 15 abril 2020.
[6] Associated Press. Child Pronography Writer Gets 10-Years Prision Term. The New York Times, 2001. Disponível em: https://www.nytimes.com/2001/07/14/us/child-pornography-writer-gets-10-year-prison-term.html. Acesso em: 04 maio 2020.
[7] Austrália. Customs Act 1901, 2024. Disponível em: https://www.legislation.gov.au/C1901A00006/latest/text. Acesso em: 30 mar. 2025.
[8] Azevedo, Manuel Antônio Alvares de; Martins, Romeu (org). Medo Imortal: Noite na Taverna, Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2019, p. 136.
[9] Nabokov, Vladimir. Lolita. Trad. Sergio Flaksman. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2011, p. 25-26.
[10] Gaiman, Neil. Smoke and mirrors, Londres: Avon Books, 1999, p. 376-377, trad. nossa.
[11] Desenhos ou representações virtuais de crianças imaginárias, desde que não sejam imagens extremamente realistas, não caracterizam material pornográfico infantil na legislação brasileira. 2ª Câmara De Coordenação e Revisão Criminal. Roteiro de Atuação: Crimes cibernéticos. 3o. ed. Brasília, 2016, p. 293. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Escola_Superior/Biblioteca/Biblioteca_Virtual/Livros_Digitais/MPF%203186_Crimes_Ciberneticos_2016.pdf. Acesso em: 31 maio 2020.
[12] Akdeniz, Yaman. Internet, child pornography and law: National and international responses. Hampshire: Ashgate, 2008.
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