Embargos Culturais

Duas Fotos, de Marcelo Semer

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2 de março de 2025, 8h00

“Duas Fotos, um romance do Brasil da Lava Jato”, de Marcelo Semer, é um testemunho de nosso tempo. Nesse livro o leitor conviverá com muita gente, que lembra a gente com a qual a gente convive. O leitor sente-se um personagem. É um livro sobre nós mesmos. É um livro sobre nosso tempo, mas que já é um livro de história. Para os historiadores da política e do direito que pesquisarem no futuro, o livro de Semer já é uma preciosa fonte primária.

Spacca

Personagens. Uma estudante de direito que se desiludiu com o curso (ainda que estudasse na São Francisco) e que migrou para o jornalismo. Era crítica, combativa, militante. Seu marido, por outro lado, um promotor que viveu intensamente o lavajatismo. Chefiou o Ministério Público estadual e trabalhou em Brasília, no Ministério da Justiça, no governo tampão de Temer.

Há também um outro promotor que flertou e viveu intensamente com o bolsonarismo, inclusive alinhando-se com o olavismo. Há um professor carismático (da USP) que atritou com colegas, se isolou, que combateu o impeachment de Dilma e que aderiu integralmente ao lulupetismo. Na tensão indireta entre esses dois personagens um pouco do conflito direto de nossos dias.

Há no livro um advogado que teria assinado a “Carta aos Brasileiros”, aquela que foi lida por Goffredo Teles Júnior na emblemática segunda-feira de 8 de agosto de 1977. Nessa noite comemorava-se o sesquicentenário da fundação dos cursos jurídicos no Brasil. Consultando a lista dos signatários da carta (Fábio Comparato, Modesto Carvalhosa, Irineu Strenger, Dalmo Dallari, Tércio Sampaio Ferraz, entre tantos) não consigo saber se o signatário que aparece no livro seria real ou imaginário. O advogado signatário da Carta é o pai da jornalista.

Só o autor para nos desvendar a dúvida, isto é, se o signatário é verdadeiro ou imaginário. Mas talvez nem o autor seja constrangido a fazê-lo. A ficção, ao contrário da história, não tem compromisso com a verdade. A ficção talvez tenha algum compromisso com a verossimilhança, que, por vezes, é ainda mais sedutora do que a própria verdade, embora essa última seja revolucionária, como afirmou certo autor italiano que pensou em revolução durante todo o tempo de sua curta vida (Antonio Gramsci nasceu em 1891 e faleceu em 1937).

A trama

Duas fotos. A primeira foto registra o casamento da jornalista com o promotor. A segunda registra um terceiro na relação, e o leitor descobrirá quem, o que fecha, do ponto de vista iconográfico, mas não menos real, um drama pessoal que é ao mesmo tempo um dilema político. As duas fotos também revelam o dilema da jornalista, que no fundo é um dilema de todos nós.

Nunca sabemos se nossas escolhas são as melhores. Nem o tempo, com o benefício do retrospecto, consegue aliviar a crise moral que marca a maioria de nossas opões. Tenho a impressão de que toda a alternativa seja uma aposta. E mesmo quando o passado se deixa decifrar, persiste a dúvida de que poderia ter sido diferente.

Em “Duas Fotos” o leitor convive com uma sequência inteligente de eventos marcantes de nossa recente história política. Porém, registro aqui um caveat: não se trata de um retrato isento; e nem poderia sê-lo. Se o fosse, o autor teria traído a si mesmo e à sua trajetória pessoal e intelectual. Não haveria como fazer de outra forma. O autor é reconhecido e respeitado crítico do voluntarismo lavajatista. Não pode haver neutralidade onde há posições firmes. Mas também não é um livro de militância explícita. Tudo muito bem balanceado.

São nove capítulos (A foto, Maria, Arthur, Camilo, Dilma, Lula, Moro, Bolsonaro, A segunda foto). Esses quatro últimos personagens, conhecemos. E os outros? De onde o autor os tirou? Da vida real? São substancialmente imaginários? A imaginação pode se substancial? Haveria uma Maria, um Arthur e um Camilo na vida real?

Maria é a desiludida estudante de direito que se tornou jornalista. Em algum momento desencantou-se também com Arthur, o promotor, com quem se casou. É também a história de um casamento, que tem sua parte oculta, e que pode ser de algum modo o casamento de todos nós. Talvez porque todo casamento, no fundo e mesmo na superfície, tenha seus mistérios, suas ilusões desfeitas e suas verdades nunca inteiramente reveladas. Todo casamento tem suas mentiras. Do contrário, não seria casamento, seria um conto de fada, onde vive-se feliz para todo o sempre.

Maria e Arthur conheceram-se ainda na juventude (quando estudavam direito) e religaram-se mais tarde, quando ela já era jornalista e ele um proeminente membro do Ministério Público. Há duas narrativas familiares que sustentam a trama. Ela, paulistana, é filha de um conhecido tributarista, e ele, paulista, de uma família de classe média baixa do interior do estado. Duas trajetórias que, à primeira vista, correm em direções opostas, mas que, entre o acaso e a vontade, encontraram um ponto de convergência onde destino e ambição se entrelaçam.

Camilo (de sobrenome Mascarenhas) é o professor de Direito que denunciava algum pacto de mediocridade que ronda todas as escolas. Alunos que não estudam (e nem querem estudar e nem tem estímulo para estudar) e professores que não ensinam (porque não querem ensinar, ou porque nada tem para ensinar). Viveu altos e baixos. Oscilou entre o brilho do idealismo e a sombra do desencanto, sem jamais decidir se era um reformador solitário ou apenas mais um espectador lúcido da decadência. Assessorou José Eduardo Cardoso na defesa do impeachment. Até o General Newton Cruz (o leitor se lembra dele?) aparece no livro.

O autor de “Duas Fotos” é Magistrado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Tem doutorado e mestrado em criminologia, defendidos na USP, onde se graduou. Presidiu a Associação dos Juízes para a Democracia.  É autor de vários livros que cruzam direito e política, a exemplo de “Paradoxos da Justiça: Judiciário e Política no Brasil”.

Há também (porque necessário) muita gente da vida real: Dilma (a presidenta, necessariamente com essa flexão de gênero), Michel Temer, Bolsonaro, Alexandre de Moraes, a turma da “lava jato” (Moro, Dallagnol), Eduardo Cunha e tutti quanti. A própria pandemia parece desempenhar uma função de personagem, ameaçando os negacionistas, que derrotou fragorosamente: as estatísticas são eloquentes.

São figuras que marcaram uma época em que a realidade muitas vezes se confundiu com ficção. Creio que assim o fizemos porque ficamos horrorizados com o que vivíamos. São páginas da história escritas à revelia de qualquer roteiro previsível. Ainda aguardam seu desfecho definitivo.

Do ponto de vista factual o livro pode ser complementado por muita coisa boa que tem sido publicada. Exemplifico com “O ovo da serpente” (de Consuelo Dieguez), “Nós, os sobreviventes do ódio” (de Cristina Serra), o livro do ministro Zanin sobre lawfare (que já resenhei nessa coluna), “A máquina do ódio” (de Patrícia Campos Mello), “Do transe à vertigem” (de Rodrigo Nunes), “Limites da Democracia” (de Marcos Nobre), “Operação Impeachment” (de Fernando Limongi).

As intervenções de Lenio Streck na ConJur também testemunham esse tempo. São relatos que formam um mosaico inquietante de uma era em que a democracia tem sido testada em seus limites, a justiça tem-se confundido com estratégia e a verdade tem-se tornado um campo de batalha.

Eu vivi muito de perto alguns dos assuntos tratados no livro. Havia sido consultor-Geral da União nos anos imediatamente antecedentes e alguns concomitantes aos fatos narrados, e há memórias que guardo e que algum dia revelaria, ou que misturaria com ficção. Porém, nesse último caso, me faltaria o talento narrativo de Marcelo Semer. Talvez porque certas histórias precisem mais talento do que testemunho e talvez porque algumas verdades só encontrem seu espaço quando já se confundem com a ficção.

“Duas Fotos”, de Marcelo Semer, é um livro provocante, seja para quem vista camisa vermelha (e agora um boné azul), seja para quem use a surrada camisa da seleção (que já foi canarinho). A edição é da Amanuense, dirigida pelo competentíssimo Rodrigo Haidar, um de nossos grandes especialistas na cobertura jornalística do Poder Judiciário, uma tradição que de algum modo remonta a Plínio Barreto e a Noé Azevedo, sobre quem um dia escreverei nessa coluna.

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