O Segredo do Bonzo e o reencantamento do mundo no imaginário jurídico
15 de fevereiro de 2025, 8h00
A ideia do presente texto surgiu pela leitura do conto machadiano O Segredo do Bonzo, publicado na coletânea de histórias Papéis Avulsos, em que o Bruxo do Cosme Velho nos brinda com uma história discreta, que por vezes pode passar despercebida em meio a tantos textos geniais, mas que a meu ver ajuda-nos a ilustrar a crise vivida pelo ensino jurídico. Como Dworkin disse no texto How Law is Like Literature [1], propor uma metodologia adequada da leitura do fenômeno artístico também pode nos dar os fundamentos para interpretar o fenômeno jurídico. Nesse caso, porque também não poderia nos ajudar a compreender a crise de seu ensino?
1. Sobre a história
O conto narra os acontecimentos na cidade de Fuchéu, capital do reino de Bungo, no ano de 1552. Machado encarna e romanceia o personagem de Fernão Mendes Pinto, uma figura icônica do período das grandes navegações, pois foi de escravo e corsário até se tornar um jesuíta e missionário peregrino. O eu lírico Fernão, na companhia de outro personagem, Diogo Meireles, passeia pelas ruas de Fuchéu até se deparar com uma pequena multidão que circulava ao redor de um homem chamado Patimau, O discurso do homem foi, então, traduzido por Meireles, que era médico em Fuchéu e conhecia a língua local.
O teor do discurso do nativo versava sobre o descobrimento da origem dos grilos, “os quais procediam do ar e das folhas de coqueiro, na conjunção da lua nova” e que tal descobrimento, obtido após “anos de aplicação, experiência e estudo”, seria “impossível a quem não fosse, como ele, matemático, físico, filósofo” [2]. A tese de Patimau, segundo o narrador, causou furor na multidão, que aclamou o douto cientista que descobriu a origem dos grilos e o providenciou muitos regalos.
Seguindo o caminho, um caso muito semelhante foi avistado pela dupla quando avistou um segundo orador, chamado Languru, declamar com grande admiração e aplauso da gente que o cercava que enfim descobrira o princípio da vida futura, quando a terra houvesse de ser inteiramente destruída, e era nada menos que uma certa gota de sangue de vaca; daí provinha a excelência da vaca para habitação das almas humanas, e o ardor com que esse distinto animal era venerado na região no momento da morte. Intrigados com a repetição das histórias e com o sucesso dos homens com os populares, Fernão e Diogo continuaram sua jornada até se encontrarem com Titané, um alparqueiro, que os recebe com efusivo entusiasmo e conta-lhes sobre uma doutrina profetizada por um certo bonzo (uma espécie de sacerdote) que estaria sendo utilizada pelos oradores da cidade por eles testemunhados.
No dia seguinte, a dupla então é conduzida por Titané para a casa do tal bonzo, de nome Pomada, um ancião de 108 anos, que os acolhe com honrarias e, após ouvir a suplica dos visitantes, ávidos para conhecer a doutrina, enfim revela seu segredo:
— Mal podeis adivinhar o que me deu ideia da nova doutrina; foi nada menos que a pedra da lua, essa isigne pedra tão luminosa que, posta no cabeço de uma montanha ou no píncaro de uma torre, dá claridade a uma campina inteira, ainda a mais dilatada. Uma tal pedra, com tais quilates de luz, não existiu nunca, e ninguém jamais a viu; mas muita gente crê que existe, e mais de um dirá que a viu com seus próprios olhos. Considerei o caso e entendi que, se uma coisa pode existir na opinião sem existir na realidade, e existir na realidade sem existir na opinião, a conclusão é que, das duas existências paralelas, a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente [3].
O bonzo Pomada conclui, então, que “a virtude e o saber têm duas existências paralelas, uma no sujeito que as possui, outra no espírito dos que o ouvem ou contemplam”. Por isso as teorias de Patimau e Languru, embora carecessem de sentido, conquistaram os ânimos da multidão com a aplicação dessa arte e agora os distintos senhores desfrutam dos prazeres provindos do reconhecimento.

Após terem ouvido atentamente os ensinamentos do bonzo, Fernão, Diogo e Titané se retiram da “sala de aula” com o título de pomadistas, o que segue com os novos adeptos da doutrina tentarem aplicá-la com rigor em novos empreendimentos.
Titané, o alparqueiro, trata de divulgar pela cidade que suas alparcas eram demasiadamente cobiçadas no exterior e que isso elevava a honra da cidade, passando a ser reverenciado pela opinião pública e procurado para encomendas frequentes. Já Fernão, utilizou a doutrina para se passar como um brilhante músico, cuja genialidade se apresentada apenas com seus gestos, provocando uma ilusão coletiva em quem o assistia.
Mas o maior feito realizado pela doutrina foi o empreendimento de Diogo, que notou que os cidadãos de Fuchéu vinham sofrendo de uma espécie de doença que tornava o nariz do paciente inchado e horrendo e que para se livrar da moléstia bastava que se amputassem os narizes. Acontece que os enfermos se negavam a realizar a operação. Sendo Diogo um médico conhecido, convocou uma assembleia com a alta sociedade do Reino e anunciou sua proposta de solução: os narizes amputados deveriam ser substituídos por “narizes metafísicos”. Na opinião do agora graduado pomadista, como a própria metafísica, a existência do nariz se dava no domínio suprassensível, ou seja, a presença do nariz não poderia ser identificada pelos sentidos, mas unicamente pelo entendimento abstrato das pessoas. Um filósofo, ao ouvir a proposta, inclusive, evitando ser ofuscado pela genialidade do médico, enalteceu sua teoria, afirmando que a natureza do nariz é compartilhada pelo homem: “visto não ser o homem todo outra cousa mais do que um produto da idealidade transcendental; donde resultava que podia trazer, com toda a verossimilhança, um nariz metafísico”.
A história termina, enfim, com Diogo Meireles sendo requisitado para muitas operações para o implante de narizes metafísicos pela população local. Pouco importava se não existissem na realidade, desde que uma ideia respaldada em uma conjectura complexa afirmasse sua existência definitiva. Fica assim comprovada, portanto, a tese do bonzo que privilegia o valor da opinião em face da realidade.
2. As críticas e as antecipações de Machado em O Segredo do Bonzo
Ao lermos um conto de tal maestria, notamos que a literatura, de fato, sempre chega antes. Machado, neste texto, nos apresenta uma fábula que ilustra bem como teorias e doutrinas podem ser subterfúgios para fundamentar eminentemente qualquer coisa que se queira defender, por mais absurdas que sejam.
Na história, a doutrina do bonzo é apresentada como uma sobreposição da opinião sobre a verdade, o que demonstra em Machado, uma crítica que em muito anos antecede os debates que hoje estão sendo travados quando se fala em notícias falsas e em desvalorização do conhecimento científico como um todo, algo que no século 21, em tempos de inteligência artificial e uso crônico das redes sociais, ganha contornos trágicos com a produção estrutural da ignorância, chamada pela literatura pelo neologismo agnotologia [4].
Tal produção sistematizada da ignorância é denunciada já por Machado no século 19 em todas as suas “fases” de produção: começando por quem produz, de fato, a mentira, representada aqui pelo próprio bonzo Pomada [5], que “revela” seu segredo a qualquer um que o procura, o que denota uma crítica de Machado mediocridade e ao desejo de poder de alguns intelectuais que se valem da hierarquia social, demonstrando um conhecimento que não possuem, visando unicamente à admiração alheia e aos bons tratos. Além disso, Machado também critica os protagonistas da obra, que são os aproveitadores — pomadistas — que se utilizam da doutrina para seu proveito pessoal, em um verdadeiro solipsismo existencial. Resta, portanto, a crítica machadiana a alienação dessa sociedade solipsista.
3. O ‘segredo’ e o reencantamento do mundo no imaginário jurídico
Com a crítica de Machado, podemos traçar uma série de paralelos com o que vivemos hoje no direito. Podemos aproximar, por exemplo, a crítica machadiana do pomadismo da crítica waratiana sobre a dogmática jurídica e sua produção de “próteses para fantasmas”. Como afirma Lenio Streck, em Ensino Jurídico e(m) Crise [6], a crise do direito começa porque há uma crise do ensino jurídico, mas a crise é eminentemente dogmática: uma crise de projeto pedagógico, pois os fundamentos teóricos do direito são cada vez mais vistos como descartáveis, ou utilizados como instrumento para fazer avançar alguma agenda específica.
Um exemplo desse tipo de agenda é a jurisprudencialização do direito, um fator de destaque, tendo em vista que há uma tendência geral no direito brasileiro a aderir a uma versão do sistema de precedentes peculiarmente brasileira e os reflexos no ensino jurídico dessa tendência são autoevidentes. Desde que se deu essa crescente uniformização jurisprudencial, o ensino jurídico seguiu a tendência, com seus currículos alterados, incluindo abordagens sociológicas e céticas da decisão judicial — caso do behaviorismo, da análise econômica, do consequencialismo, entre outras — ganhando um espaço cada vez maior em desfavor de teorias que buscam uma racionalização das decisões, como é o caso da hermenêutica.
Isso ilustra, assim como em O Segredo do Bonzo, um processo de “reencantamento do mundo” [7], na paráfrase que Streck faz ao conceito de Max Weber. O sociólogo alemão elaborou tal metáfora do “desencantamento do mundo” para descrever a “demagificação” da realidade social, que ocorreu em duas fases: primeiro, com um desencantamento religioso, onde a magia vai sendo eliminada no interior das religiões e vai sendo substituída por uma prática religiosa fundada na ética; e segundo, com o desencantamento científico do mundo, que acompanha a formação da ciência moderna no século 16 [8].
Segundo alguns autores, no entanto, por mais que o desencantamento seja um processo social consolidado, há até hoje resistências a esse processo típico da modernidade. Um desses processos pode justamente ser denunciado quanto à dogmática jurídica brasileira e sua tendência de querer “reencantar o mundo”, apresentando diversas “inovações”, como a simplificação de teorias complexas, a negação de uma recepção adequada do conceito de precedentes e a adoção de uma doutrina que favorece a glosa à jurisprudência a uma dogmática verdadeiramente crítica. Esses seriam exemplos, nas palavras de Streck, de tentativas de “reencantamento do mundo” pelo imaginário jurídico, que encontram na crítica machadiana, uma ilustração perfeita. Com Machado, Warat e Streck, portanto, rogamos por doutrinas que carnavalizem o direito e emancipem seus alunos, ao invés de formarem mais pomadistas que enclausuram a racionalidade jurídica a um realismo estéril.
[1] DWORKIN, Ronald. How Law Is Like Literature. In: Id. A Matter of Principle. Cambridge, MA.: Harvard University Press, 1985.
[2] MACHADO DE ASSIS. Obras Completas: coletâneas de contos. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
[3] Ibid., p. 68. Ênfase minha.
[4] PROCTOR, Robert N.; SCHIEBINGER, Londa. Agnotology: The Making and Unmaking of Ignorance. Redwood: Stanford University Press, 2005. Sobre a manisfetação desse fenômeno no direito, ver STRECK, Lenio Luiz. Agnotologia jurídica: a produção da ignorância no Direito. Revista Consultor Jurídico, 3 out. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-out-03/a-agnotologia-juridica-a-producao-da-ignorancia-no-direito/. Acesso em: 13 fev. 2025; STRECK, Lenio Luiz. E surgem livros milagrosos para a cura da ignorância jurídica. Revista Consultor Jurídico, 21 nov. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-nov-21/e-surgem-novos-livros-para-a-cura-milagrosa-da-ignorancia-juridica/. Acesso em: 13 fev. 2025.
[5] A palavra “pomada” era utilizada na época como um sinônimo de “mentira”. Um “pomadista” era tido como um charlatão.
[6] STRECK, Lenio Luiz. Ensino Jurídico e(m) Crise. São Paulo: Contracorrente, 2024.
[7] Ibid.
[8] WEBER, Max. Science as a Vocation. In: GERTH, H. H.; WRIGHT MILLS, C. From Max Weber: Essays in Sociology. Oxford: Oxford University Press, 1946 [1922]. p. 129-156.
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