Teoria do Direito para lidar com as raposas do cotidiano
19 de abril de 2025, 8h00
O direito é disciplina que se relaciona com as demais, mas sua interdisciplinariedade não deve prejudicar sua autonomia. Assim, deve resistir ao dualismo metafísico entre teoria e prática, de modo a superar o abismo entre o direito das universidades e o direito praticado cotidianamente pelos tribunais. Na medida em que o direito é um saber prático, a sua autonomia e teoria importam para além do que os tribunais dizem que é, pois na teoria serão encontradas as explicações para as nossas compreensões acerca do mundo. Ou seja, a teoria do direito visa a solucionar problemas.
Tais considerações resumem o instigante texto “A função social da Teoria do Direito” do colega Josenilson Rodrigues, que foi mais enfático ao escrever que a teoria do direito “Não se trata, evidentemente, de uma defesa de masturbações intelectuais inócuas ou de uma dogmática criterialista deletéria”. À guisa de conclusão, inclusive, vale mencionar que o colega menciona justamente a responsabilidade dos juristas por manter autonomia do direito e a importância de sua teoria para a solução de problemas.
Hoje, o diário de classe constitui mais um humilde esforço de demonstrar como a teoria do direito deve constranger a prática, fazendo-o a partir de um exemplo que explora as contradições de assumir o hábito de definir o direito. Em colunas recentes o professor Lenio Streck abordou o problema da tese de que o direito é o que os tribunais dizem que é (especificamente sob a ótica da aprovação de súmulas pelo Tribunal Superior do Trabalho) e de como a aplicação dos entendimentos dos tribunais por eles mesmos é problemática (examinando a origem de uma súmula no âmbito cível e sua indiscriminada aplicação para tolher liberdades no processo penal). O Judiciário está habituado a definir o direito, mas se comporta como uma raposa [1] (trata-se de referência a Dworkin, conforme nota de rodapé, e o autor será retomado ao final do texto) ao apresentar definições contraditórias acerca do mesmo tema, agindo sem amarras ou, para ficar nos termos do professor Lenio Streck, alheio ao constrangimento epistemológico.
Neste texto, será apresentado o contexto da “Gratificação Anual de Desempenho” no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia a fim de exemplificar o comportamento do judiciário brasileiro e instigar o leitor a avaliar as situações cotidianas sob a ótica da teoria do direito.
Referida gratificação esteve prevista na Lei Complementar n° 568/2010, revogada recentemente pela Lei Complementar n° 1.257/2024, mas que disciplina a gratificação com redação semelhante:
“Art. 18. Ficam instituídas as seguintes gratificações aos servidores do Poder Judiciário:
(…)
V – gratificação de desempenho;
(…)
§6° A gratificação de desempenho será concedida para reconhecer e recompensar o trabalho de servidores visando a melhoria dos indicadores e índices do PJRO e do Conselho Nacional de Justiça, com ênfase no cumprimento de metas e implementação da gestão por resultados no PJRO.”
Especificamente no que diz respeito à Gratificação Anual de Desempenho, foi editada a Resolução nº 265/2022:
“Art. 1º Instituir a Gratificação Anual de Desempenho (GAD) como instrumento de gestão do desempenho institucional.
§1º A Gratificação Anual de Desempenho será concedida uma única vez ao ano.
§2º O pagamento da GAD não se integra e nem se incorpora aos vencimentos, proventos ou pensões para nenhum efeito.
Art. 2º A GAD será concedida a servidores e servidoras ativos(as), efetivos(as), comissionados(as) e cedidos(as) com ônus a este Poder Judiciário considerando a contribuição das suas respectivas unidades de lotação para a missão e o desempenho institucionais, desde que haja disponibilidade orçamentária e financeira.”
Referidos atos normativos foram interpretados pelo Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia no julgamento do Mandado de Segurança de competência originária nº 0812661-23.2022.8.22.0000, no qual restou definido que a Gratificação Anual de Desempenho foi instituída:
“como instrumento de gestão do desempenho institucional exclusivamente em razão do resultado do PJRO perante o Prêmio CNJ de Qualidade, de acordo com a contribuição das respectivas unidades de lotação para a missão e o desempenho institucionais, com critérios a serem mensurados em ato do Presidente” [2].
No mesmo decisum, o tribunal especificou que o direito à percepção da gratificação está vinculado à efetiva contribuição para com os resultados alcançados pelo Poder Judiciário, delimitando a natureza jurídica da gratificação em voga. In verbis:
“a GAD tem natureza de vantagem pro labore faciendo, concedida por ato discricionário do Poder Público (Ato do Presidente do TJRO), que só se justifica enquanto o servidor se encontrar diretamente relacionado ao desempenho institucional, para incentivar zelo na realização do trabalho e, por consequência, promover o incremento da produtividade necessária ao Prêmio CNJ de Qualidade” [3].
A decisão mencionada data de 05/07/2023 e foi exarada pelo Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia. Pouco tempo depois, contudo, o Poder Judiciário do Estado de Rondônia editou o Ato nº 871/2024 a fim de conceder a Gratificação Anual de Desempenho (GAD) referente ao ano de 2024, com redação que afronta expressamente a natureza jurídica da gratificação:
“Art. 1º Conceder a Gratificação Anual de Desempenho (GAD), referente ao ano de 2024, a servidores(as) ativos(as), efetivos(as), comissionados(as) e cedidos(as) com ônus a este Poder Judiciário.
§1º Os(as) servidores(as) elencados(as) no caput farão jus à GAD, na base de 1/12 (um doze avos) por mês de serviço prestado neste ano, considerando para cômputo o efetivo exercício, excluindo-se da base de cálculo, o período de gozo de afastamentos não remunerados.
§2º Os(as) servidores(as) que, por qualquer motivo, deixem de ter vínculo com este Tribunal antes da outorga do Prêmio CNJ de Qualidade, não farão jus ao recebimento da GAD.”

Por óbvio, o destacado §2º serviu de motivação para atos administrativos que negaram pedidos de pagamento proporcional formulados na seara administrativa por servidores que se afastaram do tribunal durante o ano de 2024. Dentre os servidores prejudicados estão tanto os exonerados como os que requereram a vacância por posse em cargo inacumulável, situação comum entre os servidores que seguem participando de concursos públicos e se encontram em estágio probatório no novo cargo, mas que mantém a prerrogativa de ser reconduzido ao cargo anteriormente ocupado. Ou seja, a redação “por qualquer motivo, deixem de ter vínculo com este Tribunal”, convenientemente, permite que o tribunal negue a gratificação mesmo a quem, bem ou mal, mantém relação com o Poder Judiciário de Rondônia.
De todo modo, para além das nuances da redação, o elemento que mais chama a atenção é a frontal e escancarada violação aos princípios da isonomia e da impessoalidade na administração pública, inclusive viabilizando o enriquecimento sem causa do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia com base em ato normativo por ele mesmo editado.
Conforme exposto anteriormente, a decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia definiu que o elemento necessário à configuração do direito a perceber a gratificação é o efetivo labor e contribuição para a avaliação do desempenho institucional. Condicionar o recebimento da gratificação à manutenção do vínculo, como pretende o artigo 1º, §2º, do Ato nº 871/2024 consiste em violação à própria natureza do instituto. Ainda que se trate de benefício concedido discricionariamente pela administração pública, a exclusão refletiria direta violação aos princípios da isonomia e da impessoalidade, na medida em que apenas parte dos servidores que contribuíram para os resultados já alcançados pelo Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia serão remunerados na forma da lei.
De mais a mais, a distinção se deu por ato unilateral do mencionado Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia após se beneficiar do trabalho e da dedicação de seus servidores. Tem-se, portanto, um cenário em que os servidores, pautados em uma expectativa legítima de serem remunerados pelo seu esforço, laboram de boa-fé e geram o benefício esperado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia ao definir a gratificação. Este, por sua vez, edita unilateralmente a norma que o permite se beneficiar do trabalho alheio sem a remuneração estipulada anteriormente, o que claramente configura o enriquecimento sem causa vedado pelo ordenamento jurídico.
Eis o artifício da raposa (prometi que retomaria a referência a Dworkin). Ela sabe muitas coisas. Ela conhece os escritos da doutrina acerca da natureza jurídica das gratificações e as registrou em decisão judicial especificamente sobre a Gratificação Anual de Desempenho. Ela também sabe, contudo, que detém a autoridade para disciplinar o pagamento da referida gratificação, aproveitando-se da prerrogativa para se beneficiar em detrimento de quem já lhe foi útil.
Dworkin é um dos autores que influenciam a Crítica Hermenêutica do Direito do professor Lenio Streck. Ambos desenvolvem teorias interpretativistas a respeito do direito e rejeitam a manutenção de interpretações contraditórias a respeito do mesmo tema. A seguinte passagem de Dworkin é importante e evidencia as inconsistências da postura do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia:
defendo a ideia de que, na moral política, a integração é uma condição necessária da verdade. Não é possível sustentar concepções definitivamente persuasivas dos diversos valores políticos a menos que essas concepções de fato se encaixem entre si. Quem ganha fácil demais é a raposa: é a sua vitória aparente, hoje tão celebrada, que é oca [4].
Tratei do holismo interpretativo de Dworkin no meu último texto aqui no Diário de Classe e, ao passo que remeto à leitura, tomo a liberdade de reiterar a seguinte passagem do autor americano: “(…) as razões que temos para pensar que estamos certos em ter nossas convicções são exatamente as mesmas que temos para pensar que nossas convicções são certas” [5].
O Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia passou longe da responsabilidade moral de buscar circularidade em seus argumentos e definições, como visto. Assim procedendo, também não observou seu dever de coerência e integridade, para ficar nas categorias incorporadas à redação do artigo 926 do Código de Processo Civil de 2015 mediante intervenção do professor Lenio Streck. Tudo isso conspurca as bases do Estado Democrático de Direito contemporâneo na medida em que fere a autonomia do direito, entregando-o à influência de seus predadores “naturais”, exógenos e endógenos, como a política, a moral e a economia [6].
Enfim, a teoria do direito veda as contradições praticadas por raposas. A conduta do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia é apenas mais um exemplo que serve para instigar os leitores (em alguma medida, fiz algo semelhante neste texto). O texto é um convite para que os juristas sigam atentos às raposas e com elas lidem a partir da função social da teoria do direito.
[1] Dworkin refere-se ao seguinte verso de Arquíloco: “A raposa sabe muitas coisas; o porco espinho sabe uma só, mas muito importante”. DWORKIN, Ronald. A Raposa e o Porco-espinho: justiça e valor. São Paulo: Wmf Martins Fontes, 2014. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. p. 01.
[2] TJ-RO – MSCIV: 08126612320228220000, Relator.: Des. Miguel Monico Neto, Data de Julgamento: 05/07/2023.
[3] TJ-RO – MSCIV: 08126612320228220000, Relator.: Des. Miguel Monico Neto, Data de Julgamento: 05/07/2023.
[4] DWORKIN, Ronald. A Raposa e o Porco-espinho: justiça e valor. São Paulo: Wmf Martins Fontes, 2014. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. p. 10.
[5] DWORKIN, Ronald. A Raposa e o Porco-espinho: justiça e valor. São Paulo: Wmf Martins Fontes, 2014. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. p. 57.
[6] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: 50 questões fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2020. p. 26.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!