Crônicas da Lei e do Mito: a Medusa e o horror dogmático
22 de fevereiro de 2025, 8h00
“Horror tem rosto… e é preciso fazer amizade com o horror” [1]
1) Introdução: o belo é apenas a outra face do horror
Este texto inaugura um novo capítulo da série Crônicas da Lei e do Mito para discutir uma das figuras mais icônicas da tradição greco-romana: Medusa, a Górgona cujo poder petrificava quem ousasse cruzar olhares. Se antes (cf. aqui), o julgamento de Orestes conduziu uma reflexão sobre a forma como a fundação do Areópago antecipou a racionalidade jurídica, nosso olhar agora se volta para uma criatura que encarna não apenas a beleza de uma narrativa ancestral, mas sobretudo a beleza de um horror tão fascinante quanto intangível e que talvez, bem por isso, nos seduz.
A título de prelúdio, cumpre de pronto enfatizar que Medusa não se imortalizou no imaginário coletivo apenas pela estranheza — serpentes no lugar dos cabelos etc. —, tampouco pela capacidade de imobilizar seus adversários. Em algumas versões, teria sido uma mulher de extraordinária beleza, alvo de uma violência sexual cometida por Poseidon em pleno templo de Atena. Em um episódio que ilustra a ambiguidade do panteão grego em que a “honra” parece valer mais que dignidade, a deusa, ao ver sua morada profanada, voltou sua ira contra a vítima e não contra o agressor, castigando Medusa ao privá-la de sua humanidade e concedendo-lhe o poder (e o fardo) de petrificar todos que a encarassem [2]. Nesse contraste, emergindo uma dualidade crucial: a transição de um estado de graça para uma condição monstruosa, evidenciando como horror e tragédia podem nos despertar uma curiosidade quase tão intensa quanto aquela que o belo costuma suscitar. Com razão, um tema que tem sido discutido por milênios e que até hoje não se esgotou.
Nesta crônica, revisaremos os pontos essenciais do mito, bem como exploraremos as estratégias que permitiram Perseu vencer Medusa. Em seguida, buscaremos entender por que Sigmund Freud vislumbrou nesse mito uma metáfora para um terror que, ao se fazer inominável, congela qualquer reação. Por fim, como José Calvo González, em El escudo de Perseo [3], encontrou nessa narrativa um paralelo com as armadilhas da dogmática, mostrando que, tal como Perseu, o jurista precisa de recursos para não se transformar em estátua diante daquilo que se impõe. Afinal, tanto quanto a beleza cativa, o horror desvela dimensões fundamentais da condição humana — e, por extensão, nos oferece um espelho.
2) O mito de Medusa: a anatomia da petrificação
A história de Medusa é mencionada em diversas fontes, revelando variações que influíram na forma como seu mito se moldou ao longo dos séculos. Em linhas gerais, Hesíodo (em Teogonia) apresenta as Górgonas — Esteno, Euríale e Medusa — como filhas de divindades pertencentes a um estrato anterior aos deuses olímpicos. Na versão de Apolodoro (em Biblioteca), Medusa surge como a única mortal dentre suas irmãs, o que explica por que sua decapitação viria a ser buscada por Perseu. Ademais, Ovídio (em Metamorfoses) conferiu ao mito um sentido mais poético, enfatizando tanto a antiga beleza de Medusa quanto a violência sofrida, fator que desencadeia seu castigo e sua metamorfose em Górgona. Por fim, Ésquilo (em Prometeu Acorrentado) menciona as Górgonas como seres temíveis e de aspecto monstruoso, dotados de cabeleiras de serpentes e um olhar fatal.

Em comum, convergem no sentido de realçar o firmamento dessa narrativa: o olhar de Medusa, capaz de converter em pedra quem ousasse encará-la. Característica essa que traduz a maldição de qualquer poder em potencial. Se em Hesíodo a ênfase recai em sua genealogia, em Ovídio ganha força o contraste entre a outrora beleza de Medusa e a condição monstruosa a que foi relegada após ter sido estuprada por um deus. Esse percurso, de um estado de graça a um estado de ruína, tornou-se uma das imagens mais poderosas da mitologia grega e Caravaggio, não por acaso, produziu um dos seus mais belíssimos quadros justamente a partir deste mito.
No desenrolar da trama, Perseu contou com ajuda dos deuses. De Hermes, recebeu sandálias aladas e uma espada adamantina; de Hades, um capacete de invisibilidade; e de Atena, um escudo polido. Com esse conjunto de dádivas, tendo se preparado para a façanha de enfrentar Medusa sem encará-la. Ao chegar à caverna onde as irmãs Górgonas dormiam, Perseu posicionou-se de modo a refletir o rosto da criatura no escudo, evitando o confronto frontal com o olhar petrificante. O herói, então, desferiu um golpe certeiro e decapitou a temida Górgona. Sendo este o instante que a poesia se expressou em fato: do sangue de Medusa nasceram Pégaso, o extraordinário cavalo alado, e Crisaor, um gigante de força incomum, ratificando o paradoxo por trás da tragédia. Nem mesmo o ódio divino ou a maldição que pesava sobre Medusa sepultou sua grandeza latente e da morte o impossível se fez possível — numa prova de que, no universo mítico, a linha entre destruição e renovação podia ser ténue e simultaneamente terrível e sublime. Afinal e ao final, nem mesmo os deuses conseguiram violar a beleza que Medusa carregava em seu íntimo.
Seja como for, Perseu retirou-se em fuga das irmãs de Medusa graças ao capacete de invisibilidade, levando consigo a cabeça decapitada, transformando em uma arma poderosa, e que, em algumas versões do mito, foi oferecida à própria Atena, que a fixou no centro de seu escudo — numa reviravolta que diversos mitólogos já discutiram longamente. Thomas Bulfinch [4] salienta o aspecto simultaneamente fascinante e aterrorizante da Górgona, enquanto Robert Graves [5] percorre diferentes versões e possíveis raízes históricas para mostrar quão complexo e ancestral é esse mito. Em todas as releituras, a figura de Medusa remete ao pavor da paralisia e à engenhosidade necessária para subjugá-la — como atesta o uso do escudo polido numa estratégia que impediu o confronto direto.
3) Freud e o terror paralisante: a “cabeça de Medusa”
Há tanta coisa que torna o mito de Medusa imortal e o horror presente nele talvez seja uma delas. No breve ensaio A cabeça de Medusa — escrito em 1922 e publicado postumamente em 1940 —, Sigmund Freud se detém justamente nessa dimensão aterradora da Górgona, descrevendo-a como a personificação de um temor tão extremo que chega a bloquear qualquer reação, e muito embora Freud se valha do conceito psicanalítico de castração para explicar o mito, o ponto principal ainda recai sobre seu poder. Na interpretação freudiana, o simples ato de “olhar” para a Górgona seria capaz de despertar no sujeito uma sensação primordial, como se medo e sangue se tornassem uno. Ao que este escriba acrescenta: esse efeito aterrador da petrificação não se limita ao campo das lendas, pois reflete, de maneira simbólica, o choque que experimentamos diante de algo que não conseguimos compreender ou enfrentar. É o susto aterrador que imobiliza e que, ao mesmo tempo, desperta uma curiosidade paradoxal — uma mistura de repulsa e fascínio diante do desconhecido e do proibido.

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Freud chega a mencionar que a figura de Medusa condensa esses opostos: é a um só tempo terrível e estranhamente sedutora no sentido de representar a sexualidade inerente ao sujeito. Das três passagens em que discorre sobre o tema em sua obra completa [6], delas se extrai a força dessa imagem como metáfora do temor em que o sujeito, em vez de fugir, se torna estátua, como se o horror fosse capaz de transcender a fuga. Por isso, a cabeça de Medusa permanece uma referência ao medo que não apenas ameaça, mas petrifica, como símbolo de um poder paralisante e pulsante, pronto a emergir sempre que a razão se vê obrigada a encarar o que não quer ou não pode compreender.
4) O escudo de Perseu: a leitura de José Calvo González
Se o mito de Medusa nos alerta sobre as consequências de encarar diretamente — e sem mediações — uma força que pode petrificar, José Calvo González, em sua obra El escudo de Perseo, sinaliza uma saída para o risco de nos tornarmos estátuas diante de um formalismo dogmático e aqui enfim dialogamos com o Direito propriamente dito. O espanhol não vê a dogmática (conceito este que representa um conjunto de cânones mais ou menos difusos e impositivos numa determinada cultura) como algo intrinsecamente maléfico. Ao contrário, reconhece que ela cumpre um papel estruturador, formando a racionalidade jurídica. O problema surge quando, em lugar de constituir um arcabouço flexível e dinâmico, a dogmática se converte numa mordaça que inviabiliza quaisquer releituras ou criações.
González argumenta que a literatura e as humanidades em geral [7], com todo seu potencial crítico e reflexivo, podem funcionar como um remédio para impedir a paralisia do pensamento jurídico. Ressalta que a cultura literária não apenas enriquece a compreensão das normas, mas também afasta o ensino jurídico da mera exegese. O Direito, por sua natureza, reclama interação com histórias e sensibilidades que fogem ao âmbito estritamente dogmático. Com efeito, a leitura de grandes obras insere uma dimensão humanística no processo formativo, trazendo vigor onde as fórmulas jurídicas tendem a perder vitalidade.
Tal proposta, não implica rejeitar a dogmática, mas “olhá-la por reflexo”, tal como Perseu fez diante de Medusa. O escudo de Atena — que, simbolicamente, abrange seu poder — assegura que se possa contemplar a ameaça sem sucumbir ao seu olhar. Da mesma forma, a literatura abre ao jurista um caminho para se distanciar das “fórmulas prontas” e do Direito prêt-à-porter desde há muito denunciado por Lenio Luiz Streck [8], revelando contradições e possibilidades que passariam despercebidas na aridez do discurso estritamente técnico. Contra a rigidez dogmática, a ferramenta literária funciona como um escudo, capaz de refletir a força paralisante dos dogmas.
Contudo, vale deixar claro que, para o autor, a dogmática não deve ser extinta, mas, sim, colocada em perspectiva. No mito, Perseu não destrói o poder de Medusa; ele a subjuga, usando a cabeça decapitada como arma contra inimigos posteriores. Analogamente, a dogmática, quando compreendida (e não idolatrada), pode potencializar a prática jurídica, desde que não se torne um altar intocável. Em vez de petrificação, abre-se o horizonte para a criação e a renovação. Daí a relevância do diálogo constante com a literatura e outras artes, que impede o Direito de sucumbir a um formalismo. Calvo González conclui que o “escudo polido de Perseu” — entendido aqui como literatura e humanidades — é uma estratégia indispensável para observar o fenômeno jurídico sem cair nas armadilhas da dogmática. Afinal, nem tudo se resolve com análises puramente conceituais, e frequentemente é a ficção, com sua narrativa e debate estético que revitalizam a hermenêutica, impedindo que o ensino jurídico se torne estéril. Tal como Teseu se utilizou de um escudo brilhante para enfrentar a Górgona, a literatura oferece ao Direito um instrumental que permite enxergar a complexidade humana subjacente às normas, afastando-se do perigo dos dogmas monolíticos.
Fazendo uma reinterpretação dessa passagem da mitologia em que o Perseu luta contra a górgona, poderíamos entender que Medusa seria a própria dogmática e que Perseu precisava ficar atento para não ser derrotado por esse ser que tinha a capacidade de petrificar quem a olhasse. E uma vez que Perseu apenas conseguiu vencer o embate em razão do seu escudo tão bem polido que conseguia refletir o olhar da górgona, o que González nos ensina a partir dessa metáfora é que precisamos ficar atentos para lidar com a dogmática sem sucumbir a ela, de forma com que não sejamos convertidos pedra. No limite, devendo ela que nos servir e não nós a ela.
5) Conclusão: quando a beleza toca o abismo
Medusa, portanto, não se limita a uma lenda do passado remoto. Ela representa, em grande medida, a possibilidade de paralisia que surge quando o medo se impõe de modo avassalador. Na leitura freudiana, é um símbolo do terror que bloqueia a ação; já na interpretação de González, encarna o risco de sermos reduzidos a nada diante daquilo que nos parece absoluto. Mas ainda assim o mito nos oferece um antídoto: Atena não conduziu Perseu pela mão, pois, na realidade, lhe ofereceu subterfúgios para que o herói encontrasse seu próprio caminho.
De maneira similar, desenvolver um olhar reflexivo em relação aos dogmas não implica sua recusa total. Ao contrário, conhecer tanto seus perigos quanto suas potencialidades é essencial. Esse duplo aspecto — fascínio e temor — aparece no horror mítico, mas também na convivência diária com normas e tradições. Por acaso, você nunca se revoltou ou pensou por que tantas vezes o Direito recai em normas que, na prática, acabam punindo a vítima em vez do agressor? Que poder é esse que se faz tão injusto e ainda assim tão presente em nossas vidas?
Se, no texto anterior, acompanhamos Orestes para pensar a transição da vingança à justiça, agora, com Medusa, refletimos sobre como o jurista pode enfrentar fórmulas prontas sem se petrificar. Em uma época de transformações céleres, resgatar essas narrativas milenares nos recorda a importância da crítica e da coragem. Não é apenas a beleza que nos impressiona, pois o horror também ilumina esferas ocultas da nossa alma e indica caminhos para reinventar a vida e o Direito — algo tão vital à sua perenidade quanto as jornadas heroicas em que a humanidade se encontra e reencontra, geração após geração.
[1] Walter E. Kurtz, em Apocalypse Now
[2] Paradoxalmente, Atena — deusa da sabedoria — puniu a vítima em vez do agressor, priorizando a “honra divina” acima da dignidade humana. Numa interpretação quiçá mais iluminista, ressoando a célebre advertência de Goya — em El sueño de la razón produce monstruos — pois, ao se ausentar a razão, até a guardiã da justiça foi capaz de gerar terríveis inversões, transformando beleza em tragédia
[3] GONZÁLEZ, José Calvo. El escudo de Perseo: la cultura literaria del derecho. Granada: Editorial Comares, 2012
[4] BULFINCH, Thomas. O livro da mitologia: a idade da fábula. São Paulo: Martin Claret, 2022
[5] GRAVES, Robert. Os mitos gregos. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018
[6] LOPES, Anchyses Jobim. Cabeça de Medusa: de Caravaggio a Freud e Lacan-sobre pintura e psicanálise. Estudos de Psicanálise, n. 51, p. 25-46, 2019.
[7] Para compreender o autor, vale conferir uma conferência entre Lenio Streck e José Calvo González no saudoso programa Direito & Literatura. Nesse sentido, cf. https://www.youtube.com/watch?v=WgtS8GDKGAU
[8] Nesse sentido, cf. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário Senso Incomum: mapeando as perplexidades do Direito. São Paulo: Editora Dialética, 2023
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