Pequenas doses de arsênico e a arquitetura semântica do golpe
8 de março de 2025, 8h00
1. Prelúdio
O título desta coluna refere-se à tentativa de ruptura institucional para manter Bolsonaro no poder, após a derrota nas urnas em 2022. Mas o objetivo do texto não é analisar os aspectos técnicos da denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República ou quais atos representam o início da execução dos crimes de empreendimento previstos nos artigos 359-L e 359-M do Código Penal, os quais se consumam pela “simples” tentativa.
Conforme já analisado pelo professor Lenio Streck, a tentativa quer dizer: fazer qualquer ato que conduza ao objetivo. Em outras palavras, o golpe não se concretizou, mas a tentativa de realizá-lo é um ato típico, criminalmente punível, e isso já é suficiente para que o conjunto do empreendimento possa ser chamado de plano e tentativa de golpe.
Passemos ao texto. Trata-se de um pequeno estudo sobre como o plano golpista estruturou-se a partir de uma determinada linguagem, em que palavras caras à democracia e ao direito tiveram seus sentidos obscurecidos e instrumentalizados para fins criminosos e incompatíveis com a tradição constitucional brasileira pós-1988.
2. De Gadamer à linguagem do Terceiro Reich
No paradigma da hermenêutica filosófica proposta por Hans-Georg Gadamer, a linguagem não é uma terceira coisa que se interpõe entre o sujeito e o mundo, mas, antes, é a própria condição de acesso ao mundo. Trata-se do modo-de-ser (do ser humano) no mundo cuja compreensão ocorre linguisticamente. Daí a sua grande afirmação: “o ser que pode ser compreendido é linguagem”.
Com Gadamer, portanto, entendemos que, inevitavelmente, o nosso ser-no-mundo é condicionado pela linguagem. Mas o que ocorre se a linguagem for capturada por um projeto político autoritário?
Em 1947, o filólogo judeu Victor Klemperer, que viveu sob o horror do regime totalitário alemão, publicou a obra LTI: A linguagem do Terceiro Reich, tendo essa mesma questão como fio condutor:
“[A língua] também conduz meu sentimento, dirige a minha mente, de forma tão mais natural quanto mais eu me entregar a ela inconscientemente. O que acontece se a língua culta tiver sido constituída ou for portadora de elementos venenosos? Palavras podem ser como minúsculas doses de arsênico: são engolidas de maneira despercebida e parecem ser inofensivas; passado um tempo, o efeito do veneno se faz notar” [1].
Mais do que um livro de memória, trata-se de um impressionante estudo sobre a Lingua Tertii Imperii. Para além do empobrecimento da língua – que Klemperer relaciona com o declínio da inteligência e, portanto, da capacidade crítica da população – o filólogo observa como, ao longo de 12 anos, o governo nazista instrumentalizou a língua alemã para seus objetivos políticos.
O mais evidente exemplo, apontado como o principal elemento do veneno nazista, é a identificação entre “alemão” e o conceito de “ariano” [2], da qual decorria um léxico próprio: “estranho à espécie”, “sangue alemão”, “raça inferior”, “desonra racial”.
Entre as palavras capturadas pelo regime, destaca-se o conceito de “povo” (Volk), que passou a ser empregada nos discursos e textos nazistas “com a mesma naturalidade que se coloca uma pitada de sal na comida” [3]. Expressões como “festa popular”, “concidadão”, “compatriota”, “comunidade do povo”, “próximo do povo”, “estranho ao povo” – todas formadas pelo termo Volk –, passaram a ser uma importante ferramenta para o discurso autoritário e antissemita.
Também o conceito de “sistema” (System), em seu uso particular na LTI, referia-se especificamente à Constituição de Weimar no período de 1918 a 1933, contra o qual os nazistas estavam em oposição permanente. Como explica Klemperer:
“Do ponto de vista linguístico-conceitual, por trás da rejeição ao termo System se esconde muito mais do que exclusivamente a significação ao ‘parlamentarismo de Weimar’. Um System é algo ‘elaborado’, construído, executado pelas mãos e ferramentas das pessoas conforme os ditames da razão […] ele [o nazismo] precisa execrar o pensamento sistemático” [4].
Ao tornar pejorativa a palavra “sistema”, o nazismo assume sua forma a partir do conceito de organização, associado ao orgânico (organisch). Daí a sua aproximação com a “verdade orgânica”, diferente da verdade decorrente do raciocínio lógico-sistemático – compreendido como o pensamento filosófico em geral.
Klemperer também analisa como o nazismo, através de discursos (que se aproximavam da linguagem do Evangelho [5]) e da semiótica de suas convenções, transitava da esfera política para a religiosa. Não à toa, muitas pessoas mostravam que sua fidelidade ao regime, mesmo nos dias finais da guerra, estava ligada à fé: “eu acredito nele” [6], referindo-se a Hitler, visto como salvador.
Também termos como “fanatismo” foram capturados, enquanto a palavra “cegamente” (blindlings) passou a ser usada à exaustão. Segundo o filológo, ela indica a condição ideal da mentalidade nazista em relação ao Führer, visto que, para executar uma ordem cegamente, não se deve pesar sobre ela. Trata-se de um conceito-chave para automatizar a execução das ordens do partido.
Com esses exemplos, fica evidente de que modo “as pequenas doses de arsênico” ministradas pelo poder político agem na corrupção do corpo social. Em termos literários, George Orwell traduz a estratégia da LTI na novilíngua de 1984, que se expressa na máxima “quem controla a linguagem, controla o pensamento”, e destina-se à manipulação da sociedade, tornando-a obediente, acrítica e incapaz de distinguir entre fato e ficção.
3. A captura da linguagem e a arquitetura semântica do golpe
Embora a utilização de frases e estratégias estéticas nazistas no Brasil já tenha sido objeto de pesquisas e análises em diversas áreas [7], em vez disso, este texto procura, a partir do aprendizado proporcionado pela obra de Klemperer, analisar como o planejamento e a tentativa de golpe ocorridos recentemente também se valeram de uma instrumentalização da linguagem, e, ainda, da linguagem jurídica.
A mobilização de elementos ideológicos já existentes na sociedade para a construção de um discurso independente de uma interpretação autêntica da realidade não é inédita, e, embora tenha adquirido novas formas com o advento das redes sociais, ainda encontra semelhanças com as formas da propaganda totalitária que marcaram o século 20, analisada por Hannah Arendt:
“os dois movimentos totalitários do nosso tempo […] nunca prepararam uma doutrina nova, nunca inventaram uma ideologia que não fosse popular. […] O que distingue os líderes e ditadores totalitários é a obstinada e simplória determinação com que, entre as ideologias existentes, escolhem os elementos que mais se prestam como fundamentos para a criação de um mundo inteiramente fictício. […] Sua arte consiste em usar e […] transcender o que há de real, de experiência demonstrável na ficção escolhida, generalizando tudo num artifício que passa a estar definitivamente fora de qualquer controle possível por parte do indivíduo” [8].
No Brasil, o slogan utilizado por Bolsonaro – “Deus, Pátria e Família” – consistia em um lema criado pela Ação Integralista Brasileira (AIB), movimento de extrema direita da década de 1930, considerado a versão brasileira do fascismo [9]. Ao lema já existente, e culturalmente disperso em uma sociedade com traços reacionários, acrescentou-se o termo “liberdade”, que passa a ter importância ímpar na arquitetura linguística do golpe.

Extraído de forma vazia do artigo 5º da CF, o conceito de “liberdade” foi semanticamente destituído da relação de coerência com outros princípios constitucionais e isoladamente colocado em situação de risco [10]. Os principais inimigos que ameaçavam a “liberdade”, no discurso bolsonarista, eram: o eventual governo Lula (se eleito), associado ao fantasma da ditadura comunista; e o Poder Judiciário, sobretudo o STF e o TSE, associados a um “sistema” corrompido e ideologicamente cooptado.
Os ataques às cortes, ao longo de quatro anos, mobilizaram grandes atos populares, nos quais as pautas de apoio ao governo eram indissociáveis da hostilidade em relação aos tribunais e seus ministros. Assim, os atos de apoio ao então presidente eram marcados por reivindicações de “impeachment de ministros” e “fechamento do STF” por meio de uma “intervenção militar” das Forças Armadas. Invocava-se, nesse sentido, o artigo 142 da CF, a partir de uma deturpação autocrática já desmascarada, mas que foi imprescindível no planejamento golpista. A justificativa semântica era a proteção da própria democracia.
Como analisam Lynch e Cassimiro, o conceito de democracia, na linguagem bolsonarista, é empregado em um sentido iliberal [11], no qual o “povo” seria composto por “cidadãos de bem” ou “patriotas” (pessoas que se identificam com o slogan já citado) e limitado à maioria que elegeu Bolsonaro em 2018. Desse modo, subverte-se o sentido de democracia constitucional pressuposto no projeto constitucional de 1988 para uma lógica majoritária, que ignora a existência de uma teoria de direitos fundamentais que impõe limites a maiorias eventuais, resguardando materialmente as garantias das minorias [12], onde se insere a própria garantia do pluralismo e da alternância de poder.
Nesse sentido, verifica-se uma apropriação da ideia de que o poder (soberano) emana do povo, expressa no artigo 1º, parágrafo único, da CF, de modo a legitimar, a partir de um recorte do texto constitucional, atos que atentaram contra a própria democracia constitucional. A vontade soberana do povo deveria prevalecer inclusive sobre os poderes constituídos, sobretudo o STF, sendo representada pela formulação confusa e iliberal de que “Supremo é o povo”.
Após a derrota nas eleições de 2022, os atos continuaram tendo como pressuposto o discurso de fraude nas eleições – que vinha sendo mais intensamente construído por Bolsonaro e seus aliados desde 2021, estimulando a descrença de seus apoiadores no sistema eleitoral.
O ápice dos atos mobilizados por essa linguagem foi o 8 de janeiro de 2023. Mas por trás da nuvem de radicais quebrando a Praça dos Três Poderes, havia um engenhoso plano de golpe de Estado do qual a mobilização popular, fruto da manipulação, era parte.
A partir das evidências trazidas à luz pelo relatório da Polícia Federal, a denúncia apresentada pela PGR mostra de que modo o discurso bolsonarista – essa linguagem que envolvia a instrumentalização de conceitos como “liberdade”, “povo”, “soberania”, “patriotismo” e “intervenção militar” – voltava-se à manipulação de seus apoiadores, uma tentativa de criar uma realidade fictícia na qual um golpe de estado seria o instrumento legítimo para preservar a democracia.
A destruição da reputação de instituições e do processo eleitoral foram indispensáveis para fazer uma grande massa popular acreditar que seu líder estaria sendo alvo de uma injustiça do “sistema”, que a vontade do “povo” estaria sendo violada e que as Forças Armadas poderiam salvar o país. A partir dessa linguagem, a construção da tentativa de golpe envolveu, entre outras ações:
– Disseminação de informações falsas sobre a lisura do processo eleitoral e fraudes nas urnas;
– O monitoramento ilegal de autoridades com a utilização indevida da estrutura de inteligência do Estado;
– Pronunciamentos públicos agressivos contra aos poderes constituídos, com o propósito de justificar o recurso à força;
– Reunião com embaixadores para “comunicar” a suposta falta de confiabilidade do sistema eletrônico de votação e apuração adotado pelo TSE;
– Bloqueios pela PRF no dia do segundo turno das eleições;
– Elaboração de minutas de decretos golpistas e reuniões com comandantes militares para convencê-los a aderir ao golpe;
– Pronunciamentos do então presidente sugerindo que poderia tomar medidas contra o processo eleitoral com o apoio das Forças Armadas;
– Criação de um núcleo para “neutralizar” os candidatos eleitos e o ministro do STF, Alexandre de Moraes;
– Incentivos às manifestações e acampamentos golpistas em frente de quartéis do exército. Segundo a denúncia, a nota das Forças Armadas de 11/11 de 2022 foi escrita por determinação de Bolsonaro;
– O 8 de janeiro, com participação direta dos kids pretos.
Visualiza-se, portanto, de que modo as ações apontadas como parte da trama golpista aproveitam-se de uma linguagem internalizada pelos apoiadores do ex-presidente e, sobretudo, da crença na ficção por ela criada.
4. A tradição constitucional como antídoto
Victor Klemperer compara as palavras instrumentalizadas pelo discurso autoritário a pequenas doses de arsênico que, embora pareçam inofensivas, causam efeitos nocivos a longo prazo.
A linguagem bolsonarista, que se valeu do obscurecimento semântico de palavras caras à democracia e ao direito, a fim de construir um plano golpista procurou relativizar conceitos inerentes a uma tradição constitucional. Essa mesma tradição constitucional, sobretudo construída a partir de 1988, é o que permite afirmar que esses conceitos foram gravemente distorcidos.
Isso significa que há uma continuidade histórica por trás da formação desses significados intersubjetivamente compartilhados, a qual não pode ser ignorada para a construção de discursos autocráticos, diametralmente opostos ao constitucionalismo que os sustenta.
Se é verdade que o golpe não se concretizou, não é menos verdade que a linguagem jurídica instrumentalizada nesse empreendimento precisa ser resgatada. O sentido do artigo 142 da CF já foi esclarecido, por unanimidade, pelo STF. Mas enquanto palavras como “povo”, “liberdade” e “poder soberano” continuarem carregando discursos autoritários, como pequenas doses de arsênico, continuaremos correndo risco de novas empreitadas golpistas.
Contra o veneno da relativização semântica, a tradição constitucional pode (e deve) ser um antídoto.
[1] KLEMPERER, Victor. LTI: a linguagem do Terceiro Reich. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009, p. 55.
[2] Ibidem, p. 164
[3] Ibidem, p. 75.
[4] Ibidem, p. 170.
[5] Ibidem, p. 87.
[6] Ibidem, p. 198.
[7] Nesse sentido, cita-se a conferência realizada em 23 de outubro de 2020, pela Professora, pesquisadora e psicanalista, Betty Bernardo Fuks: FUKS, Betty Bernardo. The language of The Third Reich and of the Bolsonaro Government. Revista de Psicologia, Fortaleza, v. 13, n. 1, p. 10-16, jan./jun. 2022.
[8] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo – anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. São Paulo: Companhia de bolso, 2012, p. 496-497.
[9] LOEWENSTEIN, Karl. Brazil under Vargas. New York: The Macmillan Company, 1942 – Reproduction by Permmission of Buffalo & Erie County Public Library Buffalo, NY, p. 32-33
[10] “O que está em jogo é a nossa liberdade”, diz Bolsonaro no 7 de Setembro. CNN, 2023 Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/politica/o-que-esta-em-jogo-e-a-nossa-liberdade-diz-bolsonaro-no-7-desetembro/>
[11] LYNCH, Christian; CASSIMIRO, Paulo Henrique. O populismo reacionário: ascensão e legado do bolsonarismo. São Paulo, SP: Editora Contracorrente, 2022, p. 116-126
[12] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 6ª ed. rev. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2017, p. 113
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