Carnaval: Guia de Sobrevivência Jurídica ou 'trap do impetra'
28 de fevereiro de 2025, 9h39
Há 11 anos, André Karam Trindade e Alexandre escreveram aqui nesta ConJur um texto: “Da carnavalização do Direito ao baile de máscaras no STF”, em que homenageavam Luis Alberto Warat, que nos deixou em 16/10/2010:
“Como festa histórica, o Carnaval é a liberação da carne, mais especificamente, dos prazeres da carne. Há uma suspensão, por assim dizer, da ordem estabelecida, período no qual quase tudo é permitido. As máscaras ocultam a identidade, algumas ações e comportamentos são aceitos somente nesse período, enfim, uma vez oculto, o sujeito se faz ver. Em seguida, surge a repressão da Quaresma e o reestabelecimento da ordem.”
Na origem, o Carnaval (do latim: ‘carnis levare’: afastar-se da carne) representava a celebração da fatura na agricultura, seguida da apropriação pela Igreja como mecanismo de controle, por meio da tolerância temporal de práticas associadas aos ‘prazeres da carne’ consideradas pecaminosas durante o restante do ano, mas que podem se submeter, durante a Quaresma, aos rituais de limpeza, jejum e penitência.
O mecanismo autoriza certo estado de exceção, em que as normas são invertidas (papéis sociais; gênero; seriedade; scripts; purismos de fachada etc.), aceitando-se temporariamente excessos, até Quarta-Feira-de-Cinzas, momento em que convida à reflexão, ao arrependimento, à tristeza, ao tédio do cotidiano, aguardando-se o próximo Carnaval.
Entretanto, durante a folia, além da ressaca, podem surgir outras dores de cabeça vinculadas ao mundo jurídico, motivo pelo qual decidimos abordar os principais crimes, precauções e ações em caso de incidentes.
Diante da aglomeração de pessoas e vulnerabilidade ambiental, as principais ocorrências durante o Carnaval são:
a) Crimes contra a pessoa: (1) Importunação sexual — artigo 215-A do Código Penal: Ato de assediar alguém de forma sexual sem consentimento; (2) Lesão corporal — a 129 do Código Penal): Agressões físicas que causam dano à integridade ou à saúde da vítima; e, (3) Ameaça — artigo 147 do Código Penal: Intimidação por palavra, escrito ou gesto de causar mal injusto e grave.
b) Crimes contra a moral: (1) Ato obsceno — a 233 do Código Penal: Praticar ato obsceno em locais públicos, a depender do contexto e da subjetividade do agente público (o quanto pudico é), objeto do tema 989 do STF, por violação da garantia da reserva legal, afinal, quando o artigo 233 do CP estabelece “praticar ato obsceno”, sabe-se lá o que isso significa. Já se prendeu por urinar em público, relações sexuais na rua e topless, salvo na Marquês de Sapucaí, claro.
c) Crimes contra o patrimônio: (1) Roubo — 157 do Código Penal: Subtração de bens com uso de violência ou ameaça; (2) Furto — artigo 155 do Código Penal: Apropriação de bens sem emprego de violência (celulares e carteiras principalmente); (3) Estelionato e golpes: golpe do Pix, da maquininha falsa para clonar o cartão e de dispositivos que identificam e clonam sinais de RFID e NFC dos chips de cartões por aproximação (basta chegar perto com o “flipper zero” e “perdeu perdeu”: veja aqui como funciona); (4) Golpe da troca de cartões, (5) Boa noite, Cinderela: drogar a vítima para furtar ou coisa pior; (6) Golpe com ingressos falsos, dentre outros.
d) Crimes relacionados às drogas e à direção de veículos: (1) Tráfico de drogas — artigo 33 da Lei 11343/06: Comércio ilegal de substâncias entorpecentes; (2) Dirigir sob o efeito de álcool ou drogas: — artigo 306 do CTB: Conduzir veículos após consumo de bebidas alcoólicas ou uso de drogas.

Esses são alguns dos crimes favorecidos pela concentração de pessoas em ambientes públicos e festivos, potencializando a vulnerabilidade dos foliões perante os infratores, justificando a tomada de precauções básicas pode ajudar a evitar maiores transtornos:
a) Proteção dos bens de valor: Evite levar itens de valor desnecessários, utilizando bolsas com zíper ou transversais que ficam na frente do corpo para guardar telefone e dinheiro, dividindo o numerário e os documentos (use um saquinho plástico e coloque na meia dinheiro e documentos). Qual o motivo de levar a carteira com todos os documentos? Cuidado ao expor o smartphone. O perigo existe, o que você pode fazer é reduzir a exposição ao risco. Imagine um “buraco” como sendo o perigo e o risco o quão perto você chega dele.
b) Permaneça em grupo: A companhia de pessoas de confiança reduz a exposição ao risco e favorece suporte em caso de incidentes.
c) Cuidado com bebidas ofertadas: Se não existe almoço grátis, muito menos bebida. Não aceite bebidas de estranhos e evite deixar seu copo sem supervisão e, se possível, leve seu copo com proteção que dificulte o acesso de terceiros.
d) Confira o pagamento nas maquininhas: Se precisar usar o cartão, mantenha o contato visual e confira o valor antes de digitar a senha.
e) Use tecnologia associada: Ative as funções de localização do seu celular e considere fazer backup dos dados, além de configurar os apps de bancos para notificar transações e monitorar atividade suspeita em sua conta bancária. O aplicativo Life360º é gratuito na versão de entrada (disponível para android e iphone) e serve para localização do grupo, de amigos ou de familiares (permite rastrear a localização em tempo real, compartilhar alertas quando alguém chegar ou sair de locais específicos e enviar um alerta de SOS em caso de emergência. Além disso, o histórico de localização facilita revisar os trajetos percorridos, e o aplicativo consome pouca bateria, favorecendo seu uso contínuo).
F) Configure seu smartphone: Se o seu smartphone for subtraído, o agente irá colocar no modo avião ou desligá-lo. Mas se você configurar seu celular no Android e no iPhone de forma a evitar que consigam desligar o aparelho ou desativar a localização, as chances de recuperação aumentam. Então, siga as instruções: (1) Android: Ativar a Proteção contra Roubo: Acesse Configurações — Todos os Serviços – Proteção contra roubo. Ative as opções de Bloqueio de detecção de roubo – Bloqueio de dispositivo offline, que impedem o desligamento do aparelho e garantem que ele continue bloqueado, mesmo offline. (2) iPhone: Ativar a Proteção de Dispositivo Roubado: Vá para Face ID e Código (ou Touch ID e Código) e ative a Proteção de Dispositivo Roubado. A função exige autenticação biométrica ao realizar ações sensíveis quando o dispositivo está longe de locais conhecidos, dificultando que um agente furtador altere as configurações e desative a localização. Ativar o Modo Perdido: Com a função “Buscar iPhone” ativa, você pode marcar seu dispositivo como perdido ou desativar a maioria das funções do iPhone até que você o recupere, se tiver sorte. Mas pelo menos não será usado. Seguindo essas instruções, você amplia a segurança do seu dispositivo durante o Carnaval.
Se ocorrer algum incidente, antes de falar ou cantar perante a autoridade policial, chame uma advogada ou advogado. Não caia nas armadilhas retóricas de que falar logo é melhor para você. Até o contato com um profissional do Direito, fique em silêncio e beba muita água.
Para finalizar, voltamos à Carnavalização do Direito. Luis Alberto Warat propôs a ideia de carnavalização do ensino jurídico como uma forma de romper com a tradição conservadora orientada à manutenção do “habitus pinguinizado” (Pierre Bourdieu), entendido como a conformidade e a padronização alienante das práticas jurídicas, distanciadas da realidade social, que transforma os “operadores do Direito” em “zumbis” insensíveis às dinâmicas dos outros campos da sociedade, às emoções e à complexidade dos relacionamentos humanos.
Inspirado pelo filósofo russo Mikhail Bakhtin, Warat adaptou a noção de carnavalização para o ambiente acadêmico, defendendo que as aulas fossem transformadas em espaços de criatividade, espontaneidade e lúdicas para com as normas arcaicas, as pompas cafonas dos cenários jurídicos. Para Warat, a “carnavalização” das aulas permitiria a destruição de estruturas autoritárias na relação professor-aluno e a desconstrução de discursos ideológicos consolidados, fomentando a emancipação intelectual e perspectiva democrática.

A ideia central era transformar o ensino jurídico em um processo mais dinâmico, libertador e conectado à prática social, desconstruindo as representações tradicionais do direito e criando formas de interpretar e atuar no campo jurídico para além do jurista pinguim. O livro “A Ciência Jurídica e seus Dois Maridos” (aqui) sintetiza parte da abordagem, na ambiguidade entre Vadinho e Teodoro Madureira, com deslocamentos em prol da polifonia, alteridade, desejo e imaginação, que tomam o lugar da razão puramente lógica e castradora. Quem sabe um diálogo imaginário entre Warat e um “jurista pinguim” possa ajudar a compreender a proposta:
– Luis Alberto Warat: Meu caro colega, vejo que trouxeste teu terno engomado e as tuas fórmulas jurídicas inquestionáveis. Creio que o peso das normas sobre seus ombros só não é maior que o peso da sua conformidade. Não te incomoda viver num sistema moldado pela previsibilidade e pelo sufocamento de todo desejo que não seja regulamentado?
– Jurista tradicional: Warat, tema que sua poesia e surrealismo sejam belas distrações, mas o Direito é, por excelência, a busca pela ordem! Não podemos dar ao luxo de transformar o sistema jurídico em um carnaval. Existem normas para garantir a estabilidade social.
– Warat: Carnaval, diz? E quando a Justiça veste sua toga e pune os vulneráveis com as mesmas leis que protegem os poderosos, isso não é teatro burlesco? Ou prefere chamá-lo de “tragédia bem encenada”? Ah, grande defensor da ordem, diga-me: não seria a ordem que deseja apenas a manutenção das funções?
– Jurista tradicional: A lei é imparcial, meu caro! Ela serve à sociedade como um todo e não pode ser sujeita a desvios emocionais e desejos subjetivos.
– Warat: Imparcial, diz? Isso seria tão ingênuo quanto acreditar que o Rei Momo, no Carnaval, é um monarca legítimo. A lei é escrita por donos do poder, para donos do poder. Mas não temas, estou apenas propondo uma versão temporária: um Carnaval Jurídico, onde as máscaras caem e outras vozes podem ser ouvidas. Por que tanto medo do desejo e da criatividade? Seriam ameaças à sua imaginária segurança normativa?
– Jurista tradicional: Desejo? Criatividade? Warat, o Direito deve reger-se pela racionalidade, pelos princípios sólidos já consagrados ao longo da história. Sem essas bases, o caos reinará.
– Warat: Ah, princípio sólido, o fetiche dos juristas! Agora, quando o Direito fecha os olhos às emoções e às paixões humanas, está sacrificando a sua própria humanidade no altar da razão castradora, insonsa e de baixas calorias. E me diga, com toda a sua racionalidade, como explicar então as decisões absurdas que seguem a lei à risco, mas estão distantes de qualquer critério de justiça democrático?
– Jurista tradicional: Isso seria um mau uso da lei, um erro humano, e não uma falha da própria estrutura jurídica.
– Warat: Erro humano? Vês? Quando o sistema te força a sacrificar o desejo e a imaginação, tu culpas os humanos, mas jamais o sistema. É por isso que proponho não destruir o Direito, mas carnavalizá-lo! Colocar em crise as verdades consagradas, suspender a sua ordem tão adorada para que novas perspectivas, mais autênticas, possam emergir. Afinal, por que temer o caos, se ele é só outra face escondida do seu aparente sistema rígido?
– Jurista tradicional: Warat, você brinca com fogo. Mas e depois do Carnaval? Todos voltam às máscaras e ao caos disfarçado de ordem?
– Warat: Exato, meu caro amigo pinguim! Mas esse é o ponto: o Direito tradicional já é um eterno baile mascarado. Eu apenas proponho que, por um breve momento, possamos despir de tais fantasias e renegociar as regras da dança. E olhe… no fundo, até você deseja uma transgressão. Apenas não tens coragem de admiti-lo.
Seguindo Warat e sendo Carnaval, para embalar a sexta-feira, na voz de Lu Périssé, ocorrendo alguma violação a direitos, cantarole o “trap do impetra impetra”:
“Peri-Peri-Peri-Perisse tá a ensinar
“O trap do impetra impetra
É o trap do impetra impetra
É o trap do impetra impetra
É o trap do impetra, impetra habeas ou mandado de segurança – (impetra, impetra, impetra)
É o trap do impetra impetra
Toma essa liminar direta
Yeah!
Mic the drop!
Petição nos autos, alvará na mão, ninguém vai me segurar!”
Para mais, há muita coisa de Warat na rede (blog dele mantido por Leopoldo Fidyka), os encontros da Casa Warat e gente que faz a diferença, dentre os quais Gisela Warat, Dilsa Mondardo, Rosângela Cavallazzi, Vivian Alves de Assis, Vera Andrade, José Bolzan, Marta Gama, Jéssica Gonçalves, Lenio Streck, Leonel Severo Rocha, Mauro Gaglietti, Pedro Manoel Abreu, Wilson Levy, Paulo Ferrareze, Mariana Veras, Magda Pereira, Andrea Tourinho, Charlise Gimenez, José Alexandre Sbizera, Leilane Grubba, Isabela Borba, Horácio Rodrigues, Angela Espíndola, Juliana Goulart, Simone Malucelli Pinto, Diocelia Martins, Aldacy Coutinho, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, André Copetti, Marcelo Naschenweng, André Trindade Karam, Júlio César Marcellino Jr., Henriete Karam, Thais Prestes Veras, dentre tantas pessoas que sustentam o desejo, o que não é pouco, diga-se de passagem.
Parabéns Rosane de Moraes Teixeira Lima por seu aniversário hoje. Hora de comemorar.
“Talvez boa parte dos magistrados e membros do Ministério Público tenha, quando criança, brincado de mocinho e bandido. A dinâmica era simples: o bem contra o mal. Na luta eterna, idealizada pela mídia e super-heróis, era assim que preenchíamos o imaginário infantil. Flávio Kothe, professor de estética da UnB, aponta que a narrativa trivial encena um ritual banal de vitória do bem contra o mal. Essas dicotomias são dadas desde antes, maniqueisticamente, e beiram ao obsessivo e doentio retorno do mesmo. Diz Kothe: “Sob a aparência de diversão, faz uma doutrinação, em que os preconceitos do público são legitimados e auratizados”.”
Isso nos mostra que a convivência democrática não se faz presente para aqueles cujo retorno é sempre atrelado a ocupar o lugar de mocinho, imaginário por excelência, que ficou retido na vida, aparentemente, adulta. A luta por defenestrar o mal, acabar com os ditos “criminosos”, punir todos que fazem objeção à cruzada pela salvação social é o mote. Nessa luta pelo bem, claro, podem existir juízes que dizem não! Há regras a se cumprir. Sabemos, por Agamben, que a necessidade de purificar a sociedade não encontra barreiras. Tal necessidade faz a sua lei, sempre de exceção, contando, também, com o apoio do público, no espetáculo da destruição subjetiva do outro.
Realinhar a discussão no campo jurídico, e não sob os holofotes, é um caminho importante em tempos de linchamento público e de pessoas amarradas em postes. O Poder Judiciário tem essa função de evitar a vingança privada, colocando-se como barreira. Isto não significa, todavia, que os juízes possam assumir o papel de mocinhos (e nem de bandidos). Sua função é resgatar o processo civilizatório dentro de limites democráticos. Todavia, nos últimos tempos, sua atuação ganhou contornos de Salvação dos Bons.
Agostinho Ramalho Marques Neto nos pergunta: “Quem nos salvará da bondade dos bons?” O perigo de uma cruzada dessas foi representado na história por Robespierre e outros tantos, para os quais o discurso precisa ser forte, entendendo, todavia, que não adianta o querer convencer. Estão eclipsados em suas fantasias de mocinhos eternos, insuflados por eles mesmos, para os quais, nada adianta dizer…
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