Desafios e oportunidades na colaboração entre o poder público e o setor privado no pós-desastre
3 de novembro de 2024, 8h00
A última década foi marcada por desastres de grandes proporções, que trouxeram sofrimentos intensos à população e desafiaram a capacidade de resposta tanto dos governos quanto das comunidades afetadas. Desastres como os de Mariana e Brumadinho, causados por falhas humanas, e as enchentes devastadoras no Rio Grande do Sul em 2024, evidenciaram a necessidade de uma abordagem mais colaborativa entre o setor público e o privado na gestão de crises. À medida que os desastres se tornam mais frequentes e intensos, fica claro que o poder público sozinho não consegue responder de forma adequada e eficiente às demandas emergentes.
Organizações como a Cruz Vermelha, ONGs e instituições de ensino têm sido tradicionalmente reconhecidas como atores fundamentais nessas situações de crise, oferecendo ajuda humanitária, logística e suporte técnico na avaliação dos danos. Esses atores são indispensáveis no socorro imediato e na distribuição de recursos essenciais, além de contribuírem com expertise especializada que muitas vezes falta ao setor público. No entanto, há cenários em que a participação privada precisa ir além dessas organizações, envolvendo diretamente os próprios causadores dos desastres em ações de resposta e recuperação. Esse envolvimento, por vezes, ocorre antes mesmo que suas responsabilidades sejam juridicamente estabelecidas, o que levanta questões cruciais sobre a governança dessas parcerias.
A participação dos causadores dos desastres na resposta e recuperação pode parecer controversa, mas é uma realidade que tem se mostrado necessária em muitos casos. Em vez de esperar que o processo legal defina responsabilidades, a colaboração imediata entre esses empreendedores e o poder público pode acelerar a implementação de medidas de mitigação e recuperação, beneficiando as comunidades afetadas. Entretanto, essa colaboração não pode ser feita de forma desordenada; é preciso que haja uma estrutura clara e bem definida para guiar essas interações e garantir que os interesses públicos sejam prioritários.
Panorama normativo e os deveres dos empreendedores
A legislação brasileira sobre gestão de desastres, em especial a Lei nº 12.608/2012, que institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC), estabelece as bases para a proteção e resposta a desastres no país. Essa legislação, juntamente com o Decreto nº 11.219/2022 e a Lei nº 12.340/2010, cria um arcabouço jurídico que busca coordenar as ações de resposta e recuperação, definindo as responsabilidades de cada ente federado. A União, por exemplo, é responsável por formular a política nacional e apoiar tecnicamente e financeiramente os estados e municípios, que, por sua vez, coordenam e executam ações em suas respectivas esferas, especialmente em nível local, onde os impactos dos desastres são mais diretamente sentidos.

Além das responsabilidades atribuídas aos entes públicos, a Lei nº 12.608/2012 também impõe deveres específicos aos chamados empreendedores, sejam eles públicos ou privados, em situações de desastres iminentes ou já ocorridos. Esses deveres incluem a emissão de alertas antecipados, a prestação de apoio técnico, a provisão de moradias temporárias e a recuperação das áreas afetadas. Além disso, os empreendedores devem financiar a assistência técnica independente para as comunidades atingidas, assegurando que a participação dessas comunidades no processo de reparação seja informada e efetiva.
Governança das parcerias
No entanto, apesar de sua importância, a legislação ainda carece de detalhes sobre como deve ocorrer essa colaboração entre o poder público e os empreendedores, o que deixa uma lacuna significativa na regulamentação da gestão de desastres no Brasil.
Essa lacuna legislativa faz com que, na prática, os arranjos colaborativos entre o poder público e os empreendedores sejam frequentemente formalizados de maneira convencional, através de acordos judiciais ou administrativos. Esses acordos visam organizar a cooperação entre as partes, estabelecendo direitos e deveres que buscam responder às necessidades emergentes do pós-desastre. No entanto, a falta de uma regulamentação mais detalhada pode gerar incertezas e inconsistências, comprometendo a eficácia desses arranjos e aumentando o risco de conflitos de interesses e outras práticas inadequadas.
A ausência de parâmetros claros para guiar esses arranjos colaborativos destaca a necessidade de aprimorar a governança dessas parcerias. Uma governança robusta, fundamentada em princípios de transparência, accountability e participação social, é essencial para garantir que os benefícios dessas colaborações sejam maximizados e que os riscos associados sejam adequadamente mitigados. A transparência, por exemplo, é crucial para assegurar que todas as ações e decisões tomadas sejam visíveis e compreensíveis para todas as partes envolvidas, incluindo a sociedade civil. Isso inclui a clareza nos termos dos acordos, a publicação de relatórios periódicos e o acesso fácil às informações por parte dos stakeholders.
A accountability, ou responsabilização, é outro pilar fundamental na governança dos desastres. Os acordos de colaboração devem prever mecanismos que garantam que todas as partes envolvidas sejam responsabilizadas por suas ações ou omissões. Isso pode ser feito através da definição clara das responsabilidades de cada parte, da criação de comitês de monitoramento independente e da previsão de sanções em caso de descumprimento dos termos acordados. A accountability é vital para prevenir abusos de poder, garantir o cumprimento das obrigações e assegurar que os recursos destinados à recuperação sejam utilizados de maneira eficiente e eficaz.
Além da transparência e da accountability, a participação social desempenha um papel central na legitimidade desses acordos. Incluir as comunidades afetadas no processo de tomada de decisão não só garante que as medidas adotadas reflitam suas necessidades e expectativas, mas também fortalece a resiliência comunitária, tornando as soluções mais eficazes e sustentáveis a longo prazo. A participação pode ser promovida através de consultas públicas, audiências e da inclusão de representantes da sociedade civil nos comitês de governança, assegurando que as vozes das comunidades impactadas sejam ouvidas e consideradas em todas as etapas do processo.
A necessidade de um marco regulatório mais detalhado
Em suma, a integração do setor privado nas ações de resposta e recuperação a desastres é não apenas necessária, mas inevitável diante dos desafios enfrentados nos últimos anos. No entanto, para que essas parcerias sejam verdadeiramente eficazes e justas, é fundamental que sejam baseadas em uma governança sólida, que priorize a transparência, a accountability e a participação social. Só assim será possível garantir que as ações tomadas sejam orientadas pelas reais necessidades das comunidades e que os recursos sejam utilizados de forma eficiente.
Uma das possíveis soluções para aprimorar esses arranjos colaborativos seria a criação de um marco regulatório mais detalhado, que estabeleça claramente os papéis e responsabilidades de cada parte envolvida, além de prever mecanismos de monitoramento contínuo e a participação ativa das comunidades afetadas. Essa regulamentação poderia incluir diretrizes específicas para a formalização dos acordos, garantindo que todos os aspectos relevantes sejam considerados e que as medidas adotadas sejam consistentes e coerentes com os princípios de boa governança.
Contudo, para que essas propostas possam ser amplamente discutidas e aprimoradas, é fundamental o estabelecimento de uma agenda pública dedicada ao debate sobre a governança de desastres. Esse debate deve envolver todos os setores da sociedade, incluindo governos, empresas, organizações da sociedade civil e as próprias comunidades afetadas, permitindo a construção de soluções mais robustas e inclusivas. Somente através de um diálogo aberto e participativo será possível desenvolver um sistema de governança capaz de maximizar os benefícios da participação privada e mitigar os riscos, resultando em respostas mais eficazes e justas diante dos desastres.
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