Jurisceticismo: implicações da negação da possibilidade de respostas corretas no Direito
24 de agosto de 2024, 8h00
A tese da possibilidade de respostas corretas no Direito se estabelece, na doutrina jurídica contemporânea, sobretudo a partir da consolidação e influência da obra de Ronald Dworkin no contexto de seu célebre debate com o grande ícone do positivismo jurídico anglo-saxão do século 20, H.L.A. Hart. Não é meu objetivo, neste brevíssimo texto, proceder com uma revisão bibliográfica dos bem assentados fundamentos teóricos da tese das respostas corretas [1] – mas sim apresentar algumas linhas introdutórias para uma crítica a um senso comum (duplamente) equivocado, estabelecido em torno da rejeição à referida tese. Farei referência às diferentes abordagens possíveis neste sentido (realismo jurídico, positivismo normativista kelseniano, pragmatismo etc.) usando uma denominação única: jurisceticismo, em razão do “DNA” filosófico que essas diferentes abordagens possuem como elemento comum [2].
Irei sustentar que este equívoco se manifesta em dois níveis distintos, que poderíamos definir respectivamente como “pragmático” e “epistêmico”. No plano “pragmático”, o senso comum teórico dos juristas sobre esta questão (no sentido de refutar qualquer possibilidade de falar em “respostas corretas” no Direito) pode ser bem sintetizado nesta breve ilustração feita por Dworkin em 1985, no prefácio de sua obra Uma Questão de Princípio:
“Se os juristas e juízes discordam quanto a qual é o direito e ninguém tem um argumento decisivo a favor de nenhum lado, então, que sentido faz insistir em que uma opinião é correta e as outras são erradas? Com certeza, assim diz a visão comum, existem apenas respostas diferentes para a questão de direito e nenhuma resposta correta ou melhor” [3].
Lugar seguro e a naturalização do jurisceticismo
No plano epistêmico, o equívoco se manifesta por meio da crença de que, enquanto a filiação à tese das respostas corretas demanda enormes esforços de comprometimento teorético, o ceticismo — em sentido contrário — operaria como uma espécie de “lugar seguro”, uma razão autojustificada, legitimada por algum tipo difuso de “sabedoria do senso comum”. Dito de outro modo: de acordo com esta lógica, crer em respostas corretas no Direito demandaria uma profissão de fé carregada de complexas implicações teóricas e intelectuais — enquanto a rejeição à tal teoria viria acompanhada do bônus de ser essencialmente “livre” de maiores complexidades ou ônus argumentativos. Como se vê, este jurisceticismo não se apresenta como uma antítese propriamente dita à tese das respostas corretas, mas sim como mera negação, desacompanhada de qualquer empreitada epistemológica alternativa. Uma postura antiepistemológica, por assim dizer [4].
Esta postura explica a notável ausência, no debate jurídico pátrio, de uma atenção mais ampla a respeito das implicações (teóricas e práticas) da adesão ao jurisceticismo, que é naturalizado às raias da invisibilidade, como se fosse uma espécie de paradigma teórico axiomático, estabelecido sobre sólidas camadas de tradição autêntica — quando, na verdade, se trata de uma mera práxis atávica, não apenas irrefletida como avessa à reflexão, e estabelecida tão somente sobre razões práticas de conveniência e poder.
Portanto, o primeiro ponto para uma desconstrução crítica do jurisceticismo reside no reconhecimento desta postura, em suas diferentes facetas, não como corolário de um “paradigma estabelecido”, mas sim meramente como uma teoria concorrente à tese das respostas corretas no Direito — e que, portanto, só pode ter alguma pretensão de convencimento, de consistência epistemológica e de valor jusfilosófico ao arcar com os mesmos ônus argumentativos [5], laboriosos e complexos, de qualquer outra teoria jurídica contemporânea.
Não existe, na teoria jurídica, um lugar de fala “privilegiado”, no qual estaríamos livres para crer ou descrer em postulados cruciais da teoria jurídica contemporânea sem prestar contas com a Constituição, com a coerência e com a ciência jurídica [6], ou sem passar necessariamente pelo pedágio da argumentação (que não se confunde com mero adorno discursivo ou retórica justificativa, adotados a posteriori). Não existe “zona de conforto” aqui, nem um “estado de natureza” epistêmico.
Implicações da postura juriscética
Quando nos livramos da ilusão de que o hábito juriscético seria uma espécie de “ponto neutro”, livre de compromissos intelectuais ou aprofundamentos teóricos, podemos compreender com mais clareza as alarmantes implicações teóricas e práticas de se filiar àquela postura. Dentro das limitações do nosso espaço nesta pequena coluna, se faz oportuno examinarmos alguns exemplos bastante ilustrativos.
No plano teórico, o jurisceticismo traz consigo problemas de difícil contorno. Primeiro: se o Direito não assenta sua razão sobre um paradigma epistemológico, o que restará será tão somente o seu assentamento sobre um paradigma de autoridade — o que vem a configurar precisamente aquilo que Geoffrey Samuel denomina falência epistemológica do Direito.[7] Assim, se não existem respostas corretas no Direito, o ato de distinguir proposições jurídicas verdadeiras das falsas passa a ser única e exclusivamente uma questão de exercício de poder.
Em segundo lugar, como corolário lógico de tal axioma, teríamos que admitir a impossibilidade de dar resposta para qualquer questionamento jurídico em abstrato. Questões jurídicas só poderiam ser consideradas “certas”, “erradas”, “verdadeiras” ou “falsas” após submetidas ao Poder Judiciário e respondidas na forma de um pronunciamento judicial. Em tal cenário, seria correto dizer que apenas autoridades judiciais estariam capacitadas a dar respostas no Direito – todos os demais intérpretes do ordenamento jurídico seriam capazes de, no máximo, dar palpites.
Pessoas de inclinação antidemocrática podem até identificar um certo charme autoritário nas consequências que descrevi acima, mas mesmo elas provavelmente ficariam constrangidas diante da ideia de endossar a consequência lógica seguinte, qual seja: se apenas autoridades judiciárias trabalham com a chave certo/errado no Direito, isso automaticamente impossibilita que se trabalhe com distinções de certo/errado em âmbito de salas de aula. Por óbvio, se não existissem respostas corretas em âmbito doutrinário e jurisprudencial (já que o jurisceticismo solipsista não precisa prestar contas sequer com decisões judiciais anteriores), tampouco poderiam existir respostas incorretas proferidas por estudantes ou concursandos – um modelo (anti)epistemológico que, se fosse adotado de forma coerente aos seus postulados, simplesmente resultaria no extermínio instantâneo de qualquer modelo possível de ensino jurídico.
Como sabemos, o ensino do Direito em nosso país, apesar de todos os seus conhecidos problemas, felizmente não se orienta (pelo menos até o momento) por essa lógica própria de um paradigma da autoridade. Mas a prática judiciária brasileira endossa, em grande parte, essa concepção – criando este inevitável paradoxo: a Teoria do Direito, no senso comum jurídico predominante em nosso país, pode ser descrita a um só tempo como cognitivista (no plano do ensino jurídico e dos concursos públicos) e não cognitivista (no plano da aplicação e interpretação do Direito pelos juízes e tribunais).
Uma aparente (porém tenebrosa) solução para este problema seria importar o pernicioso paradigma da autoridade também para o contexto da sala de aula. Assim, a resposta X a um questionamento jurídico Y estaria certa ou errada simplesmente porque o professor (a autoridade) disse que sim – e ponto final. Magister dixit. No entanto, na verdade essa aparente “solução” implodiria a própria lógica do paradigma da autoridade aplicado ao contexto jurisdicional. Isso porque, se reconhecemos autoridade (de distinguir respostas corretas e incorretas no Direito) ao professor, na prática estamos relativizando a autoridade-epistêmica-única dos juízes e tribunais e reconhecendo que existem critérios de conhecimento (para além do exercício de cargos de poder) para análise de problemas jurídicos e identificação do verdadeiro/falso no Direito – o que, por si só, fere de morte o jurisceticismo.
Questão de política
Por sua vez, fora do plano teórico e do ensino jurídico, as consequências do jurisceticismo não se mostram menos alarmantes, e atestam que a tese da possibilidade de respostas corretas no Direito possui implicações que vão muito além da esfera acadêmica. Trata-se de uma questão fundamental de política, entendida no contexto do Estado Democrático de Direito que exsurge do Constitucionalismo Contemporâneo [8].
Explica-se: se o Direito não possui substância epistemológica para estabelecer os parâmetros de sua própria correição (lógica interna, coerência e integridade), então esta funcionalidade estará inevitavelmente fadada a ser capturada pela ação predatória de sistemas exógenos [9] – como o poder político, o poder econômico, o majoritarismo populista e, in extremis, até mesmo a violência bruta ou a força das armas. Na lição de Perelman, “este ceticismo acerca do papel da razão prática apresenta, por sua vez, um duplo inconveniente. Reduzindo ao nada o papel e as esperanças tradicionais da filosofia, ele abandona a fatores irracionais, e afinal de contas à força e à violência, individual e coletiva, a solução dos conflitos concernentes à prática” [10].
Jurisceticismo é abacaxi
Como podemos ver, quem nega a possibilidade de respostas corretas no Direito assume para si, necessariamente, um complexo ônus argumentativo – que vem acompanhado de problemas teóricos e práticos abrangentes e com graves implicações. Na prática, o indivíduo que realmente se comprometa a “vestir a camiseta” do jurisceticismo descobrirá que tem em mãos um abacaxi muito mais difícil de descascar do que a supostamente “polêmica” tese das respostas corretas.
O fato que se impõe é que, em hermenêutica [11] e epistemologia, não há como “subir no muro”. Não existe posição no palco social, nem papel na trama da comunalidade, que esteja fora do debate jusfilosófico. Ao endossar os instintos pragmáticos do senso comum, a glorificação da autoridade e o voluntarismo solipsista, o jurisceticismo até pode representar um efetivo atalho, mas por uma trilha que conduz o Direito diretamente para o abismo da falência epistemológica.
[1] Para um aprofundamento neste tema, recomendamos: DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. págs. 175-266; DWORKIN, Ronald. Objectivity and truth: you’d better believe it. Philosophy and Public Affairs, [S.l.], v. 25, n. 2, 1996. Na doutrina juridica nacional, o professor Lenio Streck já vem, há vários anos, preferindo o uso da terminologia “resposta adequada à Constituição”. Ver: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª edição. Belo Horizonte: Letramento, 2020. p. 385-406.
[2] Em linhas gerais, a postura cética no Direito corresponde àquilo que, em metaética, denomina-se não cognitivismo. Conforme Streck, “[…] um decisionista não se importa com juízos de certo ou errado, mesmo que ele diga que sim. Mas, se decide como quer, naquilo que em seu íntimo acha justo, agirá de forma não cognitivista. Se alguém se diz pragmático no Direito, querendo assim dizer que cada decisão deve levar em conta só aquele caso, só aquele problema, está diante de um não cognitivista, porque é uma espécie de nominalista ou neonominalista. […] Pode-se até adotar as teses não cognitivistas. Mas é impossível esconder seu caráter cético”. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª edição. Belo Horizonte: Letramento, 2020. p. 51.
[3] DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
[4] Ver: ABEL, Henrique. Epistemologia Jurídica e Constitucionalismo Contemporâneo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022.
[5] Dworkin afirma que “O único ceticismo que vale alguma coisa é o ceticismo interior, e é preciso alcançá-lo por meio de argumentos da mesma natureza duvidosa que os argumentos aos quais ele se opõe, e não ser reivindicado de antemão por alguma pretensão à complexa metafísica empírica”. A distinção operada pelo autor, entre ceticismo interior e ceticismo exterior, é crucial para uma adequada compreensão do que chamamos de jurisceticismo. Para Dworkin, ceticismo exterior é uma teoria de contornos metafísicos, de alcance mais amplo, que nega a possibilidade de proposições verdadeiras. O ceticismo interior, por sua vez, seria limitado a uma determinada prática ou a um aspecto da vida. O cético interior, dessa forma, se apoia na possibilidade geral de se fazer distinções do tipo certo/errado para emitir um juízo cético direcionado sobre algo mais específico. Ver: DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 102-108.
[6] “Isso significa que não apenas o processo de formação, mas também o desenvolvimento posterior, revela-se pluralista: a teoria da ciência, da democracia, uma teoria da Constituição e da hermenêutica propiciam aqui uma mediação específica entre Estado e sociedade”. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Sergio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 1997, p. 18.
[7] SAMUEL, Geoffrey. Interdisciplinary and the authority paradigm: should law be taken seriously by scientist and social scientists? Journal of Law and Society, [S.l.], v. 36, n. 4, p. 432, Dec. 2009.
[8] Ver: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª edição. Belo Horizonte: Letramento, 2020. p. 57-70.
[9] “No âmbito do Constitucionalismo Contemporâneo, o Direito assume um elevado grau de autonomia, no interior do qual Direito e moral são cooriginários. Consequentemente, a moral, a política e a economia não podem determinar a correção da aplicação do Direito. Isto é, esses elementos ‘predadores’ passam a estar institucionalizados no Direito. Por isso se está diante de um novo paradigma”. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª edição. Belo Horizonte: Letramento, 2020. p. 59.
[10] PERELMAN, Chaim. Lógica Jurídica. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 152.
[11] É importante ter em mente que, historicamente, o compromisso da hermenêutica com o enfrentamento do ceticismo é muito anterior ao marco revolucionário da chamada “virada ontológico-linguística” que marcou a filosofia do século XX. Veja-se, a título de exemplo, a lição de Dilthey (1833-1911): “Hoje, a hermenêutica está entrando em um contexto que confere às ciências humanas uma nova tarefa significativa. A hermenêutica sempre defendeu a firmeza da compreensão ante o ceticismo histórico e a arbitrariedade subjetiva”. DILTHEY, Wilhelm. A construção do mundo histórico nas ciências humanas. São Paulo: Editora UNESP, 2010. p. 201
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