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A saúde não pode parar: greve da Anvisa e necessidade de diálogo com o ecossistema da saúde

Autor

  • Guillermo Glassman

    é dvogado doutor em Direito Público (PUC-SP) MBA (Insper) mestre em Direito Político e Econômico (Mackenzie) especialista em Direito Administrativo (Cogeae) certificado em Contratos de Infraestrutura (FGV) autor de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo de Medicamentos (Thoth 2021).

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18 de agosto de 2024, 8h00

O direito de greve, assegurado pela Constituição de 1988, é uma conquista fundamental dos trabalhadores. No entanto, no âmbito do direito administrativo, onde se discute o funcionamento de órgãos públicos e a prestação de serviços essenciais, o direito de greve adquire contornos específicos. Especialmente em setores estratégicos como o da saúde, a paralisação de atividades por parte de servidores públicos suscita um debate complexo entre o direito dos trabalhadores (direito de greve) e a garantia da continuidade dos serviços prestados à sociedade. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) é um exemplo crucial dessa tensão, sendo responsável por atividades que impactam diretamente a saúde pública e privada.

A paralisação dos servidores das principais agências reguladoras do país vem ganhando força há meses. Na última quinta-feira, 8/8/2024, o Sindicato Nacional das Agências Nacionais de Regulação (Sinagências) anunciou uma paralisação de 72 horas nos dias 12 a 14 de agosto, com indicativo de paralisação por tempo indeterminado [1]. Recentemente, o governo apresentou uma oferta de aumento salarial que inclui um incremento de 14,4% para o Plano Especial de Cargos e 23% para carreiras específicas, com efeitos previstos para 2025 e 2026 [2]. No entanto, essa proposta foi considerada insuficiente pelo sindicato, que alegou que não atende plenamente às demandas da categoria, cujas reivindicações incluem reajustes maiores, reestruturação dos órgãos, aumento de orçamento e novos concursos. A insatisfação refletida nas negociações sublinha a complexidade da situação e a dificuldade de encontrar um equilíbrio que atenda tanto às necessidades dos servidores quanto à manutenção da continuidade dos serviços essenciais.

A Anvisa e suas funções essenciais

A Anvisa desempenha um papel crítico na regulação, fiscalização e autorização da comercialização de produtos que impactam diretamente a saúde da população, como medicamentos, dispositivos médicos e alimentos. De acordo com a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 81/2008, “somente será autorizada a importação, entrega ao consumo, exposição à venda ou à saúde humana a qualquer título, de bens e produtos sob vigilância sanitária, que atendam as exigências sanitárias de que trata este Regulamento e legislação sanitária pertinente”. A Agência é vital no processo de importação desses produtos, garantindo que atendam aos padrões de segurança e eficácia antes de serem disponibilizados no mercado brasileiro.

O direito de greve é previsto no artigo 9º da Constituição Federal e regulamentado pela Lei nº 7.783/1989, que define as atividades essenciais e estabelece parâmetros para a sua realização. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Mandado de Injunção nº 708, reconheceu o direito de greve dos servidores públicos, mas determinou que tal direito deve ser exercido em conformidade com o princípio da continuidade do serviço público, especialmente nas áreas essenciais.

A questão passa ser, então, quais são esses serviços essenciais no âmbito da Anvisa, já que o exercício do direito de greve pelos servidores da agência deve ser ponderado para evitar o comprometimento do abastecimento de medicamentos e produtos médicos, que são fundamentais para o funcionamento do sistema de saúde brasileiro.

Consequências da paralisação das atividades da Anvisa

O Brasil depende fortemente de importações para suprir a demanda por medicamentos, equipamentos médicos e outros insumos de saúde [3]. Muitos dos produtos utilizados em tratamentos de alta complexidade, como medicamentos oncológicos, vacinas e dispositivos de alta tecnologia, não são produzidos em território nacional ou são insuficientemente fabricados para atender à demanda interna. Essa dependência torna o país especialmente vulnerável a qualquer interrupção no processo de importação.

Num cenário de paralisação da Anvisa, o desabastecimento pode resultar na interrupção de tratamentos medicamentosos e em adiamentos ou cancelamentos de cirurgias essenciais, afetando gravemente os planos de tratamento e a saúde dos pacientes. Isso não apenas prejudica a eficácia do tratamento, mas também pode levar a complicações adicionais, piorando o prognóstico dos pacientes e colocando vidas em risco. Além disso, atrasos na importação de equipamentos diagnósticos podem resultar em diagnósticos tardios, reduzindo a chance de cura e agravando o prognóstico de diversas doenças.

A paralisação dos servidores pode também resultar na expiração da validade de itens sensíveis, como reagentes e medicamentos, que têm prazos de uso limitado. Além de representar uma perda financeira substancial para as empresas, isso resulta em desperdício de recursos críticos que poderiam salvar vidas, encarecendo o custo dos serviços de saúde, tanto públicos quanto privados, uma vez que essas perdas e o custo do armazenamento alfandegário são frequentemente repassados ao longo da cadeia de abastecimento de insumos da saúde, impactando diretamente o preço dos tratamentos e a acessibilidade para os pacientes.

Ainda, a morosidade na análise de processos regulatórios para registro de novos medicamentos, dispositivos e equipamentos médicos ou alterações em produtos já registrados impede a entrada de novas tecnologias no mercado e a realização de alterações importantes nos produtos existentes, seja para a melhoria de sua eficácia ou visando garantir sua segurança.

Proposta de previsão normativa para serviços essenciais em autarquias e agências críticas

Diante da importância das atividades desempenhadas por autarquias e agências como a Anvisa, seria fundamental que houvesse uma previsão normativa específica que definisse, de antemão, quais são os serviços essenciais dessas entidades que não podem ser interrompidos em caso de greve. Essa medida evitaria que, a cada iminência de greve, as associações da indústria afetada fossem forçadas a buscar soluções emergenciais na Justiça para garantir a continuidade dos serviços. A criação de uma norma com a participação do ecossistema da saúde, incluindo indústrias, distribuidores e hospitais, por meio de consulta pública, permitiria a definição clara e objetiva desses serviços essenciais.

Um exemplo positivo da própria Anvisa e que aponta um caminho interessante para a normatização dos serviços essenciais em tempos de greve é a RDC nº 743/2022. Esta resolução, em cumprimento à Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019) estabelece, num único documento (uma tabela) um sistema detalhado de classificação de riscos e define prazos específicos para a resposta aos requerimentos de atos de responsabilidade da Anvisa. Isso representou um avanço significativo em termos de transparência, permitindo que os interessados tenham uma visão clara e objetiva dos processos regulatórios e das expectativas de tempo para a conclusão das análises, reduzindo a incerteza e melhorando a eficiência no setor regulado.

Além de facilitar a fiscalização e a gestão dos processos pela Anvisa, a RDC nº 743 também oferece uma base sólida para a judicialização em casos de descumprimento dos prazos. A tabela com os prazos máximos de análise é de fácil compreensão e pode servir como referência direta em ações judiciais, caso a Anvisa não cumpra os prazos estabelecidos. Essa abordagem contribui para a criação de um ambiente regulatório mais previsível e confiável, tanto para os regulados quanto para o público em geral.

Portanto, a implementação da RDC nº 743 não só aprimora a transparência da Anvisa, mas também estabelece um modelo que pode ser seguido para outras áreas da regulamentação – como na definição de serviços essenciais em tempos de greve. A clareza nos processos e a definição antecipada de prazos é indispensável para garantir que a agência possa manter a eficiência de suas operações, mesmo diante de desafios como greves ou outras interrupções.

Conclusão

A iminência de greve na Anvisa ilustra a tensão entre os direitos dos servidores e a necessidade imperiosa de manter a continuidade dos serviços essenciais à saúde pública e privada no país. Em suma, a greve dos servidores da Anvisa não afeta apenas as operações comerciais e logísticas de empresas do setor, mas tem implicações diretas e potencialmente fatais para a saúde da população. A paralisação das atividades da Anvisa pode interromper a liberação de medicamentos e produtos médicos, adiando tratamentos cruciais e agravando prognósticos de doenças graves. É crucial que medidas sejam tomadas para garantir a continuidade dos serviços essenciais, minimizando os impactos negativos de eventuais paralisações e protegendo a saúde pública. A implementação de uma previsão normativa que defina claramente quais serviços são essenciais e que estabeleça mecanismos para a manutenção desses serviços durante greves é uma ação urgente e necessária para assegurar que a população não seja prejudicada por interrupções no fluxo de insumos vitais para a saúde.

 


[1] SINAGÊNCIAS. Servidores de agências reguladoras rejeitam proposta do governo e aprovam nova paralisação nacional de 72 horas. Disponível em: https://sinagencias.org.br/servidores-das-agencias-reguladoras-votam-nesta-quarta-feira-proposta-de-reajuste-salarial/

[2] TENÓRIO, Augusto. Agências reguladoras rejeitam proposta do governo e declaram greve de 72h. Estadão, 7/8/2024. Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/coluna-do-estadao/agencias-reguladoras-rejeitam-proposta-do-governo-e-declaram-greve-de-72h/

[3] PARANHOS, J. et al. As prioridades de saúde e a articulação com as políticas de indústria e CT&I no Brasil entre 2003 e 2017. Novos estudos CEBRAP, v. 41, n. 2, p. 315–332, abr. 2022. Disponível em: https://www.scielo.br/j/nec/a/K8bFC9gqDp5mnnydctqxnjg/?format=pdf&lang=pt

Autores

  • é professor, pesquisador, advogado, pós-doutorando na Faculdade de Direito da USP, doutor em Direito pela PUC-SP, MBA pelo Insper, mestre em Direito pelo Mackenzie, especialista em Direito Administrativo pela Cogeae e certificado em Contratos de Infraestrutura pela FGV-SP.

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