Justo Processo

O artigo 209 do CPP e a burla à estrutura acusatória do próprio CPP

Autores

  • Gina Ribeiro Gonçalves Muniz

    é mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra e defensora pública do estado de Pernambuco.

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  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

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  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

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14 de setembro de 2024, 8h00

O presente artigo tem por objetivo fazer uma análise crítica do artigo 209 do Código de Processo Penal brasileiro, que autoriza o juiz, caso entenda necessário, a determinar a oitiva: 1) de testemunhas além das indicadas pelas partes (artigo 209, caput, do CPP) – testemunhas do juízo; 2) de pessoas a quem as testemunhas das partes se referirem (artigo 209, §1º, do CPP) – testemunhas caracterizadas como referidas.

Impende, inicialmente, ressaltar que o artigo 209 do CPP permanece com a redação inalterada desde a edição do nosso CPP em 1941, que foi inspirado, diga-se de passagem, no CPP italiano de 1930, também conhecido como Código Rocco, concebido em plena ditadura fascista de Mussolini.

Esses dados revelam o contexto histórico autoritário de criação do nosso CPP, que trouxe como consequência o enfraquecimento das partes e o fortalecimento do Estado-juiz, elevado à categoria de protagonista do processo penal. Por conseguinte, a pretexto de alguns mitos, em especial o da busca da verdade real, inúmeros poderes foram concedidos ao magistrado, cabendo-lhe, inclusive, a iniciativa probatória com relação à oitiva de testemunhas.

Interpretação conforme, diligências suplementares e protagonismo

Na célebre lição de Henkel [1], o Direito Processual Penal é verdadeiro direito constitucional aplicado. Destarte, entendemos, ladeados por abalizada doutrina [2], que o artigo 209 do CPP não foi recepcionado pelo modelo acusatório de processo penal instituído pela nossa Constituição e consolidado por inúmeras reformas processuais penais, destacando-se a inserção do artigo 3°-A no CPP pela Lei n° 13.964/19, que reafirma expressamente que “o processo penal terá estrutura acusatória”.

Entretanto, quando do julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, em 24/8/2023, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, atribuiu interpretação conforme ao referido artigo 3º-A do CPP, para assentar que “o juiz, pontualmente, nos limites legalmente autorizados, pode determinar a realização de diligências suplementares, para o fim de dirimir dúvida sobre questão relevante para o julgamento do mérito” (vencidos os ministros Cristiano Zanin e Edson Fachin).

Esse posicionamento da nossa Corte Suprema não pode ser invocado, entretanto, como salvo conduto para que o julgador assuma o protagonismo da produção probatória. Portanto, pensamos que não há salvação para o caput do artigo 209 do CPP. A determinação, de ofício, para oitiva de testemunhas além das elencadas pelas partes, não há como ser enquadrada na categoria de “diligências suplementares”.

Contaminação e modelo inquisitório

Diante dos avançados estudos sobre a teoria da dissonância cognitiva [3], podemos concluir que quando um juiz determina oitiva de testemunhas de ofício, há, ainda que inconscientemente, uma contaminação que influenciará sua decisão ao final do processo. De nada adianta separar as funções da acusação e órgão julgador, se for admitida a iniciativa probatória do juiz. Contaminar-se-ia o que o magistrado deve ter de mais sagrado: sua imparcialidade.

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Ademais, entendemos que o artigo 209, caput, do CP viola o princípio da presunção de inocência enquanto norma probatória. A incumbência de demonstrar a culpabilidade do indivíduo é da acusação, vez que o acusado goza constitucionalmente do “estado de inocência”.

Em que pese o argumento de que o magistrado, ao determinar oficiosamente a produção de provas, aja em busca da verdade (o que pode ser caracterizado como mero discurso [4]), sendo-lhe indiferente o resultado da diligência probatória, essa postura se coaduna com um modelo inquisitório e, portanto, em confronto direto com o artigo 3º-A, CPP. Se o magistrado tem dúvidas sobre o aspecto fático, pode (e deve) avocar a regra do in dubio pro reo e absolver o réu. Desta feita, só faz sentindo o juiz determinar provas quando entender insuficiente o arcabouço probatório apresentado pelo órgão acusatório [5].

Necessidade de requerimento e tentativa de burla

No que tange ao §1º do artigo 209 do CPP, sendo pragmáticos, revela-se momentaneamente inócua qualquer discussão acerca da sua (não) recepção pela Constituição Cidadã diante da interpretação conforme que o STF empregou ao artigo 3º-A do CPP, no sentido de autorizar o julgador a determinar “diligências suplementares, para o fim de dirimir dúvida sobre questão relevante para o julgamento do mérito”.

Não obstante, pensamos ser fundamental um debate em torno do melhor cânone hermenêutico para a concretização desse dispositivo legal na perspectiva do processo penal acusatório constitucionalmente arquitetado.

Sobre a temática, corroboramos com as reflexões de Rosa [6]:

“Pode acontecer que juízes inquisidores se valham da abertura do art. 209, I, do CPP, para ampliar a produção da prova testemunhal, manipulando as regras de limitação probatória dos jogadores, principalmente quando partidário da verdade real. Assim, o tratamento igualitário e as balizas de limitação probatória restam superados, tendendo-se a favorecer uma das partes”.

Para que o artigo 209, I, do CPP trilhe a direção acusatória, o juiz não pode determinar de ofício a oitiva das testemunhas referidas, sendo, pois, imprescindível que haja requerimento da parte interessada nesse sentido [7].

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Ademais, defendemos que as partes não podem fazer o referido requerimento como subterfúgio para burlar as regras do devido processo legal. Vamos relatar algumas hipóteses que demonstram a razão de ser da anunciada preocupação.

Por vezes, o Ministério Público arrola uma quantidade de testemunhas além do permitido em lei, requerendo, desde logo, que as extranumerárias sejam ouvidas na qualidade de testemunhas referidas.

Esse pedido não pode ser acatado pelo magistrado. A uma, porque essa prática transgride o devido processo legal. A duas, porque qualquer deliberação acerca da matéria pressupõe a prévia oitiva das testemunhas numerárias para que o juiz analise a conveniência da oitiva de uma pessoa por elas referida em seus respectivos depoimentos [8].

Outrossim, entendemos que o pedido do Ministério Público para oitiva de uma testemunha referida condiciona-se à demonstração de que o órgão acusatório desconhecia sua existência à altura do oferecimento da denúncia.

Duas situações

Imagine-se que, durante a oitiva judicial de uma vítima/testemunha que anteriormente já tinha prestado depoimento em sede policial, ela faça referência a outra pessoa que supostamente tenha algo a relatar sobre o cenário do crime. Caso dos seus relatos, fique claro que somente após o oferecimento da peça acusatória essa informação tenha ingressado na sua esfera de conhecimento, justifica-se – tendo por pressuposto a recepção do artigo 209, §1º do CPP – que o juiz determine a oitiva da testemunha referida a pedido do Ministério Público.

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Situação distinta ocorre quando a vítima/testemunha, em seu depoimento judicial, reporta a outra pessoa que tenha algo supostamente relevante para endossar a hipótese acusatória, e mencione que não se trata de uma informação inédita, mas, sim, de algo que já poderia ter sido explorado quando de sua oitiva em sede policial.

Vejamos um exemplo para melhor elucidar o raciocínio acima desenvolvido: “A”, vítima de um crime de furto, foi ouvida em sede policial, e arrolada pelo Ministério Púbico por ocasião do oferecimento da denúncia. Quando do seu depoimento em juízo, ela revela que, no dia do fato delituoso, seu vizinho lhe telefonou para relatar que, da janela do seu apartamento, assistiu à ação criminosa. Neste cenário, defendemos que o juiz não acatar pedido para oitiva desse vizinho como testemunha referida.

Se a fonte de prova, no caso a vítima que fez a referência à terceira pessoa, já estava disponível para as autoridades encarregadas da persecução penal, defendemos que o juiz (imparcial) não pode substituir a atuação acusatória para suprir suas eventuais falhas. Como é comum afirmar em um modelo mais coligado à vivência democrática: o sistema acusatório impõe mais atenção e responsabilidades às partes. É o ônus característico deste modelo!

A segunda situação pode se tornar ainda mais esdrúxula. Pressuponha, tomando em consideração o exemplo acima, que o Ministério Público oferte peça acusatória com o respectivo rol de testemunhas. Após a apresentação da resposta à acusação, surge nos autos um pedido de habilitação de um assistente de acusação com apresentação em anexo de um rol de testemunhas em que consta o vizinho da vítima.

O juiz, acatando pedido da defesa técnica, admite o ingresso do assistente, mas reconhece preclusa a apresentação do rol de testemunhas. Ato contínuo, durante a instrução, o representante do Ministério Público pergunta à vítima se alguém presenciou o crime de furto, ocasião em que essa faz referência ao vizinho cujo nome constava no rol extemporâneo. O órgão acusatório requer que o juiz determine a oitiva do vizinho na qualidade de testemunha referida.

Pela janela

Pensamos que o juiz não pode se valer do artigo 209, §1º do CPP para fazer ingressar por uma janela (inquisitória) um meio de prova que ele mesmo barrou a entrada pela porta do (devido) processo. Decerto, entendimento em sentido contrário deita raízes no discurso autoritário da busca da verdade real.

Contudo, em um Estado Democrático de Direito, a descoberta da verdade (processual) submete-se às balizas que a legalidade impõe à essa atividade epistemológica [9], não podendo, pois, ser um fim em si mesma.

Em arremate, tendo como ponto de partida – ainda que tenhamos nossas discordâncias – o atual entendimento do STF de que o juiz penal tem poder instrutório suplementar às partes nas hipóteses legalmente previstas, concluímos: 1) o caput do artigo 209 do CPP não foi recepcionada pela nossa Carta Magna; 2) o §1º do artigo 209 do CPP não pode ser interpretado por lentes inquisitórias, em choque direto ao artigo 3º-A, CPP. Assim, o juiz não pode, de ofício, determinar a oitiva de testemunhas referidas, da mesma forma que as partes não podem se valer desse dispositivo legal para burlar as regras do devido processo legal, como extrapolar o prazo para arrolamento ou número de testemunhas admitido em lei.

 


[1] Apud ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre as proibições de prova em processo penal. 2. ed. Coimbra: Gestlegal, 2022, p.14

[2] Dentre outros, vide: Tourinho Filho, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado. 19 ed. Curitiba: Juruá Editora, 2023, p. 453; LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 473.

[3] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 71-74.

[4] SAMPAIO, Denis. A verdade no processo penal: a permanência do sistema inquisitorial através do discurso sobre a verdade real. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

[5] Dentre outros, vide: MORAES, Maurício Zanoide de. Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 168-170

[6] ROSA, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal conforme a teoria dos jogos. 6. ed. Florianópolis: Emais, 2020, p.710-711

[7] Távora, Nestor; Alencar, Rosmar Rodrigues. Curso de Processo Penal e Execução Penal. 17 ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 777.

[8] Eberhardt, Marcos. Provas no processo penal: análise crítica, doutrinária e jurisprudencial. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2018, p. 177-178.

[9] O que foi enfrentado em SAMPAIO, Denis. A Valoração da Prova Penal. O problema do livre convencimento e a necessidade de fixação do método de constatação probatório como viável controle decisório.  1ª. ed. Florianópolis: Emais, 2022, cap. II.

 

Autores

  • é defensora pública do estado de Pernambuco e mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra.

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa, mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ, membro Honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros, professor de Processo Penal e autor de livros e artigos .

  • é advogado criminalista, habilitado para atuar no Tribunal Penal Internacional em Haia, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

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